A Garganta da Serpente
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Condicionamento físico

(R. Carvalho)

O copo sobre a mesa, música embala o vento, suor escorrendo na pele dela, um sofá perdido na sala, na janela o adesivo quase ilegível, um gato cinzento escondido entre as cortinas.

Um ambiente calmo, um momento entre paredes e ele. Suando sempre mais, mais exercitava seus músculos, contorno perfeito dos braços, pernas, tórax. Um brilho de pele satisfeita com a saúde a lhe sair dos poros. Revezava-se em apoios e barra. Já havia corrido meia hora sem intervalos.

Sua respiração era forte. Inspirava silenciosamente, mas ao liberar o ar dava alguns gritos ofegantes. Olhava para o nada, tudo sentia, mas nada naquele momento, o tempo parecia estancar. Parecia ileso ao mundo. Suas vestes eram o próprio corpo suado e brilhoso. Seus olhos vagavam em paz.

A música inspirava seu sentir e vez ou outra quebrava o nada e desenvolvia espectros da rotina ou do passado. Outras vezes tentava ir ao futuro, mas se detinha, não queria fazer esforço mental. Todo seu esforço estava direcionado ao delinear de seu corpo ao condicionamento físico.

Tentara, certa vez, ser acompanhado por um personal, porém em uma semana desistiu. Não conseguia dividir com ninguém este seu momento sagrado assistido pela evasão de todos seus sentimentos. Único momento que o vazio consegue abraçar sua mente, deixando-o em plena harmonia.

Um som específico do celular acorda seu vazio e todo seu rosto se transforma numa expressão de retirada de paz. O desconforto lhe ataca a alma. Vai até a mesa, o gato foge, ele olha o visor, parece não gostar de quem lhe ligou. Fica olhando o celular tocando e não atende. Volta aos exercícios com o olhar preocupado. A paz se dissipou.

Pára novamente, abre um suco e toma um copo sem interromper o grande gole. Cada vez mais preocupado, mas mesmo assim não deixa seus exercícios. Agora, faz tudo mais rápido e mais forte. Solta o ar com mais força.

Sai de novo, troca a música, aumenta o volume. Não é mais uma canção tranquila, ao contrário, um som metálico, estridente, o gato se esconde atrás da geladeira.

O interfone tenta gritar mais alto que a música, mas não consegue. Ele sabia que só assim não ouviria o interfone. A pessoa desiste. Ele espera mais uns dez minutos e desliga o som. Senta-se na poltrona e se entrega ao abandono do corpo. Descansa.

Após semanas, encontraram seu corpo intacto na poltrona, sem nenhuma respiração. O corpo perfeito. Sem suor. Brilhoso. Em pleno silêncio, em plena harmonia. O gato miava sem parar. Estava magro e faminto. Alguém o levou. Levaram também o corpo do morto. Um caso misterioso.

Ligaram as sirenes e saíram pelas avenidas. Seu corpo estava lá atrás da ambulância. Parecia vagar no vazio, na paz. Era levado pelas pela luz e pelo som. Atravessara da vida para a morte sem qualquer convite. Sem qualquer testemunha.

Ao chegarem no IML o susto foi bem maior. Os dois funcionários públicos ficaram inertes ao abrirem a ambulância, olhando a maca sem qualquer cadáver. Só um vazio imenso sem qualquer sinal dele. Os dois homens se olharam sem qualquer noção do que ocorria.

Ela acordou suando, brilhando a pele, assustada agarra os braços malhados do marido e o chama insistentemente, acorda! Tive um pesadelo contigo. Era tudo tão real.

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