A Garganta da Serpente

Renan Barbosa

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A poesia do homem comedido

(Renan Barbosa)

Nunca havia pensado ser capaz de escrever. Avesso à tecnologia, jamais imaginara que a tela do computador, fria e estéril aos seus olhos céticos, pudesse jorrar poesia com tanto vigor e fluência. Arriscara-se a enviar seus poemas para um daqueles milhares de sites dispersos na rede mundial, que reuniam bons e maus poetas, pretensos escritores, projetos de duvidosa literatura.

Quem é o verdadeiro poeta? Perguntara-se sempre. E agora se via tomado como referência: descoberto pela elite dos leitores de poesia, cultivado pelos críticos, dois livros publicados com impressionante vendagem, seus versos circulando livremente pela Internet.

Como a escrita se instalara em seu cotidiano? Por que ele, um simples gerente de concessionária? Vender carros fora até então o seu leitmotiv. Não viera da academia, nem mesmo era um bom leitor. E de repente a escrita se derramara em sua pele. Surpreendia-se por ter sobrevivido ao primeiro livro.

Já não vendia carros, dava conferências. E a editora cobrava os originais do terceiro livro. Recebera adiantamento, tinha um compromisso moral e financeiro. A poesia resiste aos contratos? Perguntava-se.

Um dia os seus dedos ganharam força no teclado. E suas dores e fantasias, que acreditava inferiores e diluídas no veio coletivo, projetaram-se na tela ganhando forma, ritmo, estrutura, beleza. Por que a poesia o escolhera?

Sua escrita era tão simples, tão despretensiosa. De manhã, padaria e banca de jornal, caminhada ao final da tarde, futebol às quartas, cinema aos sábados. Não bebia, nem se drogava. Não se aventurava na madrugada de Sampa, não conhecia artistas nem escritores. Ia ao teatro de vez em quando. Isso antes de lançar seu primeiro livro. Mas depois dele, sua vida mudara tanto assim?

Agora vendia biografia. A sua. Pagavam-lhe para contar sua vida a universitários e funcionários medíocres e ambiciosos de empresas globalizadas. A plateia o escutava fascinada. E o talento de vendedor nessas horas vinha em seu socorro. Era pura retórica. Falava-lhes da glória da escrita, do prazer de ser invadido pela literatura, sobre a descoberta da criatividade. Se ele alcançara o sucesso, por que isso não poderia também lhes suceder?

Agora frequentava o círculo dos escolhidos: tivera um ensaio publicado na BRAVO. Sua poesia de cidadão comum caíra no agrado do país. Pasquale Cipro Neto o convidara para entrevista, Hebe transformara em sarau seu programa na noite em que ele lá esteve. Era apontado como o novo Drummond. Especulava-se sobre a sua indicação para a Academia Brasileira de Letras.

As aparições públicas o enfastiavam. Cansara-se dos recitais, das tardes de autógrafos, recusara-se a estrelar um comercial de uma revista e a participação numa novela. Algumas vezes era cumprimentado na rua, perdera-se do anonimato. Desde quando o país aprendera a reconhecer seus poetas?

De resto, descansava. Respondia ele mesmo os e-mails que lotavam o seu site. Participava de eventos interativos, procurava saber o que era arte digital. E lia. Cada vez mais. A leitura devorava suas horas. E só vez em quando lembrava que tinha um corpo, um sexo, necessidades, desejos. Mas não era dado a orgias e experimentalismos eróticos. Trepava, quando possível. Namorava, às vezes. Apaixonava-se tardiamente, em descompasso: poucas vezes retribuído, mas sem rasgos d'alma ou sofrimentos desmedidos. Aprendera a esperar. Que o amor viesse, não lhe fecharia as portas, não se furtaria aos sobressaltos. Ao fim, concluíra que o amor não era um terreno fértil para sua inspiração.

"A poesia do homem comedido", dissera Fernando Bonassi, num artigo sobre a sua obra, publicado no caderno Mais. Frase inteligente e elegante, que tanto podia ser elogio como ironia. Não tinha as medidas exatas do êxito, mas não as aspirava. Também não era um homem prático. Fragmentava-se num caleidoscópio de dúvidas. Era capaz de ficar horas contemplando vitrines, gôndolas de livros, sem conseguir decidir-se. Oscilava entre estantes de pensamentos, embora não fosse afeiçoado ao caos. Mas talvez nisso se parecesse com a maioria das pessoas: nem louco, nem santo.

Foi então que recebeu a caixa. Deixada em seu escritório por um motoboy anônimo. Sem recibo de entrega, sem identificações, sem remetente. Uma caixa quadrangular, na qual caberia um boné mas não um chapéu, com tampa, de papel cartão branco. Lisa, limpa, clara. E dentro, o vazio. Uma caixa em branco. Após examiná-la detalhadamente, procurar pistas, quem sabe algum bilhete dobrado e oculto, sinais de elementos tóxicos, e nada encontrar, teve um primeiro ímpeto de jogá-la fora. A caixa do nada, foi como apelidou-a naquele momento. Ia amassá-la, para que coubesse no cesto de lixo, quando subitamente desistiu. A caixa do nada já o cativara.

Foi para casa segurando firmemente a caixa. Nunca mais a largou. Divertia-se a contemplar suas paredes brancas, seu interior bem delimitado e cheio de ar. Quando oprimido, fechava-a. Quando ansiava por liberdade, deixava-a respirar.

Nada havia de original na sua caixa, mas sua convivência com ela trouxera-lhe energia e ímpeto desconhecidos. Tornou-se em pouco tempo o seu objeto de estimação. Desistira de procurar o remetente. Possivelmente, alguém preocupado em agradá-lo. A caixa mudara sua vida. Nela cabiam seus sonhos, suas angústias, suas verdades novas, seu passado e seu futuro.

Foram os abundantes poemas sobre a caixa que lhe deram o seu terceiro volume. Sucesso imediato. Nunca um livro de poesia vendera tanto na primeira edição. A editora pagara-lhe férias na Europa, o provedor do site lhe enviara um carro popular, que ficou solitário na garagem. Preferia andar de táxi e de metrô. Sempre com a caixa junto de si.

Estivera no programa do Jô, para explicar ao balofo sua estranha relação com o retângulo de papel. Um dia recebera proposta, recusada, para exibir sua caixa na capa de Caras. Os outros escritores faziam comentários malévolos, invejosos e debochados, publicados amplamente, da coluna da Joyce à Cult. Todos tinham algo a dizer sobre o poeta da caixa, como passou a ser conhecido. Em geral acusavam-no de impostor e golpista, chegou a ouvir insultos nas ruas.

A caixa não resistia imune a tantos trajetos. Estava suja, amassada, velha, mas ele a protegia. E a amava. Era o seu desdobramento, sua outra metade. Uma noite, foi com sua caixa ao cinema. Descendo a Augusta em direção ao Espaço Unibanco, viu-se jogado ao chão por um raio e constatou, ao recobrar-se, que estava só. O raio, um menino de rua, corria numa velocidade impressionante e logo desapareceu, enquanto ele jazia aturdido em frente ao Frevo. Ninguém o ajudou a levantar-se. Poucos viram a cena e nem sequer captaram a dimensão trágica do fato. Sua caixa fora covardemente roubada.

Era um homem sem posses, sem companheira, sem esperança. Tudo se fora com a caixa. Daí à depressão foi rápido. Não saía de casa. Desligou o telefone para fugir do assédio da imprensa. Seu editor o visitou, arrastando-o em seguida a um psiquiatra. Não fez uso das medicações prescritas, deixou de comer. Espalharam-se os boatos de que enlouquecera. Outros garantiram tratar-se de uma covarde estratégia de marketing. A vendagem dos seus livros caiu. A editora exigiu de volta o dinheiro adiantado para o quarto livro, o provedor retirou o seu nome da lista de personalidades. Esqueceram-no em pouco tempo, mas o anonimato não o incomodava.

Um dia conseguiu sair da cama e se atirou do alto do prédio, onde havia um terraço. Do bolso, enquanto voava rumo ao solo, caiu um bilhete: "Abstinente da poesia e convencido de que só os poetas conhecem os mistérios de Deus, resolvi encontrá-lo, antes que a morte em vida me subtraia o que tenho de mais precioso: a memória da caixa. Não me lamentem".

Nem os obituários dos jornais mencionaram sua viagem.

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