Entre choro e palavras não entendidas. Assim mesmo, como crianças,
homens que ainda não pudessem pronunciar. Mas pronunciavam. E as palavras
morriam no meio de lágrimas que de tão salgadas faziam-nos tossir.
Tossiram, quase ao mesmo tempo, como se fossem gêmeos. E, ao contrário
das outras vezes, não riram juntos. Calaram-se. E permaneceram calados
durante tanto e tanto tempo que aqueles dois minutos parecem aquela eternidade
na qual ambos acreditaram um dia. Não estamos mais dando certo, foram
as palavras que fugiram das lágrimas assassinas e foram entendidas. Não
estamos mais dando certo, meu amor. O maior paradoxo já dito, pensou
o outro. O amor sempre tem que dar certo. Sonho dos plebeus. Imposição
dos reis. E nós, que não somos nem príncipes nem mendigos,
fazemos o quê?
Seu pensamento foi interrompido por mais uma tosse. E de uma forma tão
triste, percebera: se aquilo terminasse, não sofreria. Digo triste pelo
óbvio: ele não queria que aquilo terminasse. Digo aquilo, pelo
igualmente óbvio: ele não sabia o que era. Ouviu um barulho vindo
do apartamento ao lado. A furadeira entrava na parede em uma pluralidade de
barulhos que se perdiam em seus pensamentos e quando percebia estava dando nomes
a cada ruído. Achou que talvez isso fosse amor. Nomear as coisas. E percebeu,
com mesma tristeza e impotência, que o possível amor possivelmente
estaria morrendo ou, quem sabe, já morto, apenas dizia adeus.
Calaram-se, ambos, mais uma vez. Um ouviu a respiração do outro
como se estivessem lado a lado numa trincheira. E estavam. Do outro lado - o
outro lado de cada um deles - uma bomba explodia tão próxima que
fazia a terra tremer. Tremeram. E choraram, juntos, pela primeira vez.
Eternamente comigo agora, pensou um.
Eternamente... pensou o outro.
E decidiram: se amavam. Mais do que nunca se amou, mais do esperaram, e aquele
relacionamento, outrora baseado em verdades, seria ainda assim. Por isso teria
que acabar, ao menos por enquanto.
Perfeito começou, e para perfeito continuar, terminou.
Era isso, e mais nada. Nada mais precisava ser dito. O silêncio dos amantes
dizia tudo, mesmo na falta do olhar. Ah, a distância, que faz o olhar
ficar ausente, era talvez ... não, não, talvez não, mas
com grande certeza era a razão de todo aquele silêncio naquela
hora. Toda a certeza inexistente naquela decisão.
Foi percebendo o fim que o começo voltou. As mensagens deixadas escondidas,
refletidas depois, e muito, refleti muito o dia todo e repensei cada coisa e
fato e sentimento, diria um deles. Enfim... as mensagens deixadas escondidas
atrás de quadros, gavetas e dentro de cuecas com cheiro de confort. As
mensagens deixadas na caixa de e-mail, sms que não eram frias, por Deus,
nem um pouco frias, ao contrário, recheadas de palavras concretas que
definiram por um tempo aquele sentimento tão estranho e tão novo
ao mesmo que tão sonhado e tão antigo. Amar foge do tempo, como
foge do espaço. Não temos mais tempo, disse um. Nem espaço,
completou o outro. Ou temos espaços demais. Para acabar com essa coisa
que nos mata, precisamos nos matar. Só assim sobreviveremos a essa enchente.
E poderemos um dia, quem sabe, quem vai saber, nos encontrar de novo no meio
de uma outra multidão, e olhar novamente nos olhos um do outro e dizer
oi, meu lindo, meu anjo lindo, que saudade de você. E te abraçar,
e dizer baixinho no seu ouvido que sim, vai ficar tudo bem, tudo bem, tudo bem.
E então a súplica: me liga de vez em quando? me manda uma mensagem,
dizendo que está bem, dizendo que está vivendo, dizendo que não
morreu? Me liga pra dizer que tomou a vacina, que ganhou um aumento, que fugiu
de uma briga. Me liga, imploro, para dizer que está feliz, que está
triste, que viu um filme bacana. Sim, bacana. Do deus Baco. Lembra? Não
lembra... Lembra das coisas que te disse às duas da manhã? Não
lembra... Lembra das coisas que prometemos, quando éramos, ainda, quase-namorados?
Não lembra. Acho que nem eu mesmo lembro.
Nossa história dá uma história, disse um deles. Queria
você aqui comigo, agora. Fica comigo essa noite? Eu teria te amado tanto
nessa noite...
E a tristeza superabundou a graça. E tudo o que era triste se tornou
insuportavelmente estranho. Longe. Estava longe e não poderia ficar com
ele naquela noite. Estava longe e se odiou por isso. Se odiaram. Num ódio
que misturava carência e raiva de tudo, principalmente do outro.
Só tinha as palavras, quase mortas em lágrimas. Recebe o carinho
de minhas palavras. Receba-os enquanto não posso tocar-te a face suada
com a mão cansada de um dia de trabalho. Receba-os como se fossem beijos,
carícias e delicados dedos adentrando em seus cabelos. Consegues sentir?
Tentes. Não vos peço mais nada além disso, pois só
assim poderemos amar de longe, nos dias de solidão colocando na velha
garrafinha nossas carências. Receba-os, até o dia em que nos encontraremos,
num abraço quase eterno, como se fosse a primeira vez. Abraça-me
mais que forte. Ama-me. Ama-me nesse segundo, e eterniza esse segundo em que
te amo pra sempre. E promete-me, e eterniza esse segundo perdido no tempo e
no espaço, mas que encontro quando me achego nos seus braços,
num beijo de olhos abertos para ver teus músculos se contraindo. Ri tímido,
ri, meu amor..
Riu tímido.
Silêncio. De ambos os lados.
Aquela conversa deveria acabar. Sabiam os dois. Fim. Adeus. Boa noite.
Mas não. Tinha no canto do quarto a mochila preta, daquele dia no zoológico,
ou nas serras, ou no santuário, ou no parque, não se lembra. Em
algumas dessas viagens ou dos planejamentos de viagens a mala havia permanecido
esquecida, agora ali, brilhando e gritando que estava ali, droga, estava ali,
um rastro dele deixado para trás quando deveria haver só deserto
e um oásis para o amanhã, só para o amanhã. Um oásis
de esperança, de grito que grita que nunca é tarde demais.
Sua bolsa. Bolsa? Está aqui.
Te mando pelo correio.
Não. Use-a, como pretexto, para vir, quando quiseres.
E serás a última vez. O último abraço. Por Deus,
o último beijo... O último aceno que de longe te dou. Mas antes...
O olhar, e nesse olhar o adeus. No mesmo olhar, o azul do céu. O amarelo
do sol. As cores todas numa aquarela de lembranças e sonhos, parte despedaçados.
E a dúvida, a incerteza, foi tudo em vão? foi tudo um sonho? foi
tudo algo sem nome que nunca poderá ser nomeado ou foi algo real? mas
que simples e subitamente acabou? Acabou.
Pensaram, os dois juntos.
Acabou. Num misto de dor e desespero.
Acabou, como começou, numa tarde de junho.
Era dia de Santo Antônio, um lembrou.
O outro riu.
Riram, quase gêmeos.
E logo depois, o silêncio. O silêncio morto, vivo, zumbindo e frequente.
E em silêncio separam seus pertences. Discos, livros, roupas, meias ligadas
a cuecas num nó desfeito facilmente. Em silêncio, arrumaram a bagunça
do quarto, um por obrigação, outro por companhia. Em silêncio
jantaram e lavaram a louça. Um silêncio pela taça - a única
taça - quebrando no chão, espalhando milhões de pedaços
brilhantes de cristais. Cristais de gelo, um pensou. Cristais diamantes, pensou
o outro.
Refletem mil luas, mil sóis, como naquele poema de Quintana.
Talvez seja esse o lado bom do término de algo: quando esse algo se quebra,
tem a capacidade de refletir mais coisas e mais vezes e mais beleza se espalha
pelo mundo. Sim, tudo fica bem, um pensava. Ou não vai ficar nada bem,
o outro pensou, quase em voz alta.
Olharam-se durante alguns segundos calados. Só a música de clipes
na televisão. E de repente, como que por destino, a música deles.
Um era a aura do outro, de tão próximos. Sem suportar, se abraçaram,
e por um momento ambos acreditaram sonhar, que tudo havia sido um sonho ruim,
e que estava tudo bem tudo bem tudo bem meu amor, chora comigo, vive comigo,
permanece aqui pra sempre enquanto toco sua cabeça com minha mão
cansada de tanto apanhar e proteger minha face que é a única forma
de te ver quanto me olho no espelho sujo daquele hotel.
Abraçados, pensaram que iriam se beijar. Mas não se beijaram.
Ouviram a música toda naquele abraço forte, espremido, abraço
mais que forte. Um deles chorou mais fundo. O outro quis demonstrar força.
Inútil. Ambos sabiam que o fim nunca era momento para ser forte. E não
foram.
Ah, por Deus, percebi que te amava como um pôr do sol, quando menos percebi,
havia anoitecido. Não estou para metáforas hoje. Eis o problema:
não é uma metáfora
E no final de tudo, terminaram, como tinha de ser. Cada um para um lado. Sem
pernas para caminhar, um deles seguiu adiante, até o metrô. Sem
cabeça para pensar, o outro entrou no chuveiro, e deixou o corpo chorar.
Sem memórias, ambos queriam ser.
Queria comunicar a alguém essa dor, mas, por Deus, essa dor é
minha, só minha, e não consigo descrevê-la em palavras e
outros signos, só em lágrimas pesadas e doloridas, cansadas e
imaculadas, ou maculadas? não sei. Queria dizer para alguém como
é esse vazio, essa saudade, esse estado de lodo.
Tomou banho. Passava a bucha vegetal pelo corpo - como o outro havia ensinado
- como se tirasse da sua pele o lodo.
Lodo... solidão é estar mergulhado no lodo.
E tiveram os dois ao mesmo tempo, como se fossem gêmeos, um certo teor
de ódio. E perguntas surgiam freneticamente e todas sem respostas. E
sem respostas voltavam para o lugar de onde vieram e explodiam, as ideias, as
perguntas, as respostas e a falta delas.
Vontade de te abraçar de novo e esmurrar suas costas.
Vontade de te abraçar de novo e te fazer cócegas, e te lavar debaixo
do braço e te fazer rir tão lindo gostoso livre.
Queria te fazer livre.
Vontade de te jogar no lixo, rasgar nossas cartas, esconder nossas fotos. Tirar
nossos quadros da parede, o que fazer com esse porta-retrato?
Tiveram medo. Tenho medo de você ser mais forte do que eu, e quando eu
ainda estiver pensando em você, você se virar e dizer que já
me esqueceu.
Um tentou pensar em Deus. O outro foi direto rezando. Enfim. Ambos procuravam
alguém que estava ocupado, acho. Ele queria realmente pensar em Deus,
em cores, em flores, em borboletas amarelas e azuis e verdes voando num jardim
estilo japonês, sabe? Sei que sabe. E ao fundo um chalé com uma
chaminé, e de lá uma fumacinha tão linda sai tão
tímida e voa tão alto até se misturar ao ar. Queria pensar
em coisas assim. Coisas bonitas, que fizessem bem. Esqueceu mas logo se lembrou:
a beleza não existe mais.
Jogaste fora nossas músicas. As palavras ditas se perderam no vento.
Lá se vão elas, todas elas, cantando melodias tristes por si só,
sem perceber que aqui choramos. Jogaste pela janela fechada nosso retrato, quebrando
vidro e vidraças. O espelho já não está mais na
parede, percebi. Jogaste fora as roupas compradas juntos, as receitas, as panelas,
as taças que te dei. Jogaste fora nossas memórias, nossos sonhos,
nossas vitórias. O que nos resta? Jogaste fora nossas vidas, não
há mais forças, nem vácuo, nem fresta. Jogaste fora nossa
alegria, antes mesmo de começarmos a festa.
Cada um em sua cama. Olhando pro teto, como se fosse o céu. Como gêmeos,
deitados na mesma posição, com o mesmo olhar molhado.
Não consigo dormir.
Ele não conseguia dormir. Pensamentos vinham sem que ele quisesse, sem
que ele escolhesse lembrar. Não escolheria. Não queria. Mas eles
vinham. Como cordeiros pulando a cerca para a fuga. Lembrava da primeira noite,
da primeira paquera, o primeiro olhar, o primeiro espelho, refletindo mil olhos
fitando os outros mil olhos em mil faces brilhantes. Lembrou-se do primeiro
beijo, sabor morango, sim sim, aceito o morango, então vem cá,
e fui.
E foi. Fomos todos com ele naquele beijo, que todos viram e todos aplaudiram.
O casal do século, alguém diria. Mais aplausos. Devotos olhares
amigos. Inocentes. Esqueceram que o mundo era real.
O outro estava sentado no beiral da janela. Observava as estrela. Idênticas
àquelas primeiras estrelas, observadas enquanto estavam deitados em almofadas
grandes e coloridas. Alguém tirou uma foto. Faça um pedido para
essa estrela, já fiz, faça outro, será o mesmo, então
vou fazer o meu, faça, fiz, pediu? pedi, e... vamos rezar para acontecer.
Naquele momento, nenhuma estrela cadente apareceu. Apenas uma vaga luz no fundo
negro do céu. Um avião chegava na cidade de São Paulo.
Ou partia? E dentro dele, a triste certeza: nenhuma cor no céu.
nossos sonhos plantamos
regamos com palavras
e antes de colhermos futuro
enterramos nossa vontade