A Garganta da Serpente
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Castelo de criança

(Ricardo A de Lima)

Ele ainda tinha o ar angelical de criança. Não deveria passar dos sete anos. Pele clara, cabelos dourados, olhos bem verdes, talvez devido ao reflexo do gigante Atlântico diante dele. Vestia uma sunguinha amarela, que brilhava na sua fibra ao seu andar rebolado. Nas mãos um pequeno balde em formato de peixe vermelho. E ele sorria. Caminhava e sorria. Ele e seu brinquedo, diante do gigante. Tão pequeno ficava, mais do que já era aos olhos adultos. E ali, diante do Atlântico, ele também se mostrava frágil.

Se ajeitou num canto da areia e começou a arquitetar um complexo de grãos. Tirou do balde suas ferramentas. A areia estava seca demais. Precisaria de água. Levantou-se sereno, sério, maduro. Olhou para o mar com olhar-capitão-velho-lobo-do-mar. E teve medo. Foi então até sua mãe. A mulher estava estirada na toalha, torrando ao sol que estava à pino. A pele brilhava na sua cor de jambo, dourada, fina. O garoto abriu uma caixa de isopor ao lado da barraca armada na areia. A mulher com fone de ouvidos ouvindo música sertaneja nem percebeu que o filho estava ali. Ele tateou em busca de água. Nada.

Novamente ele se pôs em pé diante do mar. Observou as ondas, estudou o vento, mediu a temperatura do ar. Não entendeu nada. Para ele aquilo tudo diante dos seus olhos era um grande manto, um monstro, um outro mundo. Imaginou tentáculos saindo das águas e agarrando seus pés. Imaginou um polvo se erguendo, como nos desenhos animados. Imaginou um navio fantasma surgindo do nada. Imaginou tudo, menos a realidade.

Voltou para o seu monte de areia e tentou criar com a areia seca seu desejo. Porém, a cada toque por mais leve que fosse tudo desmoronava. Não saiu do calabouço que imaginou para o seu grande castelo.

Assim, com as de coragem e força, pegou seu baldinho vermelho e se dirigiu ao mar com passos pesados e firmes. Sentiu a areia esfriar, umedecer. O andar não era mais tão difícil. As ondas tocaram seus pequenos pés. Ele tremeu. Água fria. Tentou pegar água ali, bem no raso. Mas não teve sucesso. Seu balde ficou com mais areia que água. Entrou mais no fundo. A mãe ainda ouvia o sertanejo. A água agora batia no meio de suas canelas. Tremia de frio e de medo. Olhou para o gigante e lá estavam os tentáculos saindo da água, vindo em sua direção, cheios de gosma e mucosa. Num único golpe giratório com o bracinho encheu o balde vermelho e correu de volta para a areia.

Cerca de meia hora depois finalizou seu belo castelo. Havia torres, portas, túneis, janelas. Era perfeito. Era o seu castelo.

A tarde passou. E o sol já estava mais calmo. Ao contrário do mar, que ainda urrava. Continuava na areia quando viu sua mãe começar a ajeitar as coisas. O mar estava mais próximo. As ondas vinham mais rápidas e fortes. Ouviu seu nome, e foi atender. A areia ainda quente nos pés fizeram que ele corresse para a sombra.

Tudo ajeitado, só faltava seu baldinho vermelho. Olhou em volta e o viu no meio da praia, próximo ao seu feudo. Caminhou sem pressa até lá. A areia quente foi esfriando, umedecendo, fácil de se caminhar. Voltou-se para o gigante, que o hipnotizou na sua beleza de fim de tarde. Viu uma onda se formar enorme, crescer, levantar-se. De repente tombou no manto do mar. E veio.

Ele correu. Os tentáculos pareciam estar de volta. Foi para junto da mãe. O baldinho balançando nas mãos. Abraçou tremendo as pernas da mulher e olhou para o gigante, que continuava vindo. E veio até seu castelo. Uma única onda, um único golpe. Tudo ao chão. Em segundos o seu magnífico feudo, seu feito sem nome, havia desmoronado. Agora não passava de areia molhada e espuma. Ele olhou pasmo para aquilo. Não acreditava que o gigante tinha feito aquilo. Imaginou e pensou se sua vida seria assim. Teve medo.

Sua mãe o puxou pela mão. A cada passo ele olhava para trás, na esperança de ver o mar de recuar e seu castelo subir novamente. Afinal de contas ele era criança e poderia sonhar. Mas nada aconteceu.

Entrou no carro e percebeu o quanto sua sunga estava gelada e cheia de areia. Olhou pela última vez para o mar. Aqueles braços, tentáculos, gigantes. E pensou: por quê existem polvos tão maus?

Decidiu parar de ver desenhos animados.

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