Os olhos vermelhos na escuridão. Calmos, serenos, flamejantes, como fogo.
Sim, pareciam dois pontos, duas pintas de fogo, duas fogueiras acesas no meio
do nada, da escuridão, do vazio.
Como se fosse um bicho, saiu do meio do mato onde estava. Era alto, cerca
de 1,85 cm de altura. Pele bem clara, quase albino. Ausência total de
cabelos no corpo. Magro, bem magro. Dava para contar suas costelas de longe.
Aquela escada de ossos no seu abdômen. Seu pomo-de-adão subia e
descia frenético. Suas mãos tremiam. Parecia sentir frio. Boca
fina. Olhos vivos, ainda pegando fogo. Pés descalços. Unhas brancas.
Dentes brancos. Apático.
Diante dele, ao lado do pequeno bosque mitológico cortado por uma estrada
asfaltada, uma planície bucólica demais para o Amor. Primeiro
colocou sua cabeça para fora da mata. A lua, então cheia, brilhou
na sua careca lisa, mostrando quão branca era sua pele. Ninguém
por ali. Saiu ainda com medo - ou seria receio? ou seria loucura? - e foi iluminado
pela luz prateada do luar, revelando seu corpo nu. Nenhum orifício, nenhum
membro fálico. Nem mulher nem homem. Andrógino.
Saiu e correu curvado pela estrada, pisando em pedras e pequenos insetos.
O pé, ora sujo, ora machucado, se contorcia. Os olhos baixos, as mãos
protegendo a cabeça de algo que não sabia o que era. Medo fanático,
rosto fantástico. Mesmo feio, era belo. Mesmo sem cor, era arco-íris.
Mesmo nu, era realeza. Mesmo mudo, gritava com os olhos que saltava em fogo.
Correu até a planície, e lá deitou na grama. Observou
a lua e ficou deslumbrado com a beleza do céu. Não sabia que o
firmamento era espelho.
Até que ouviu um barulho. Uma espécie de automóvel, sem
luz e sem cor, vindo pela estrada. Roncava - ou urrava? - estridente. O ser
andrógino - ainda sem nome - correu pela planície em desespero.
Dentro do carro, dois sorrisos - medrosos? loucos? - soltavam gargalhadas e
gemidos. De um lado um homem, meia idade, cabelos grisalhos, pele cuidada e
olhos cansados. Do outro, uma mulher, cabelos negros e olhos cor de céu
de noite. Mãos balançavam pela janela. Mãos dançavam
pelas peles dos dois. Bocas e mãos se encontravam em lugares promíscuos.
Sexuais. Fálicos e orifícios desconhecidos para o ser que corria
- com medo e loucura - pela planície iluminada pela lua.
Corria desesperado, como um homem fraco corre de um demônio que deseja
ardentemente destruir sua santidade. Corria feito pássaro, como demônio
que foge de um santo munido de cruz. Corria como Jesus não correu. Corria
como Romeu correria. Correu como anjos no Dia do Juízo. Correu feito
a morte.
O casal no carro estranho começou a gritar mais alto. Queriam alcançar
aquilo que não enxergavam. Não viam o vulto branco de olhos de
fogo correndo pela planície. Não viam uma luz prateada sobre a
careca pálida. Não enxergavam nada. E quando o homem se debruçou
sobre a mulher e disse duas palavras no seu ouvido, fazendo-a chorar duas breves
lágrimas, o fogo nos olhos do ser andrógino se apagou. Ele mesmo
não via mais nada. Ele mesmo não enxergava mais lua nem estrelas,
nem a escuridão do céu nem o verde da planície. Não
enxergava nem a si mesmo, nem sua insanidade, nem sua doçura. Não
enxergava mais a vida e a morte.
Gritou um grito mudo medo - ou seria de receio? ou seria de loucura? -, caiu
de joelhos no chão. Ouvia o carro se aproximando. Ouvia os gritos de
loucura - ou seria de medo? ou seriam de receio? - chegando cada vez mais perto.
Sentiu um breve calor na pele. Pensou que poderia ser o sol nascendo. Pensou
na vida que poderia ter, pensou no sonho que poderia ter. Pensou no sentimento
que poderia ser.
O casal continuou não vendo o ser andrógino com os olhos sangrando
ajoelhado na planície. Nem mesmo quando sua cabeça nua e lisa
tocou no pára-choque do estranho carro, fazendo um baque estridente de
dor e sangue. Não ouviram nada, nem mesmo quando as rodas do estranho
carro passaram por cima do corpo nu e branco. Não olharam para trás
quando o carro passou por ele, largando-o deitado, corpo branco e vermelho,
sob a luz de um luar que testemunhou tudo.
Em seus olhos uma última chama, pequena e breve, incendiou e se apagou,
apagando seu resto de quase vida. Ainda abertos, seus olhos pareciam fitar o
alto, a lua, o céu negro. Ainda abertos, seus olhos eram poças
de sangue, onde houve, um dia, fogo. Agora, cegos - seria de medo? de receio?
de loucura? - fitando o vazio. Cegos... para sempre.