Diante do espelho, o ar carregado do vapor do banho, maquiou-se como uma boneca
francesa. Caprichou no blush das bochechas e abusou do lápis e do rímel,
para criar um clima noir. Em seguida, com a tesoura pontiaguda, cortou os cabelos.
A mão trêmula deixava a nuca exposta, a franja irregular, um talho
na orelha. Olhou-se, sorriu, abriu a lâmina e delicadamente lambeu com
o aço afiado a lateral macia do rosto. Sentiu o sangue escorrer, um arrepio
gelado tomou-lhe por dentro. Tremeu, balbuciou um choro e fez o segundo corte,
uma ponte entre o canto esquerdo da boca e o maxilar. O último toque
foi uma incisão delicada por baixo da pálpebra, que contrastou
magnificamente com o azul tirquesa de sua íris lacrimejante. A tesoura,livre
no ar, atingiu o chão com o som de um milhão de sinos. Abriu a
torneira, molhou a ponta dos dedos e tornou a fecha-la. Com a palma da mão,
espalhou o sangue sobre a face, pescoço e peito. Um choro convulsionado
subia-lhe pela garganta, tomando de assalto as pernas, que bambearam, um pouco
sob o efeito do álcool, um pouco por causa da dura sensação
da realidade suja, e lhe puseram de joelhos no azulejo manchado de gotas vermelhas.
Nua por baixo da toalha, sentiu o calor pegajoso do sangue que lhe cobria o
corpo. Recompôs-se. Abriu um vidro de perfume - presente do canalha -
e despejou Chanell nº 5 sobre as feridas, que queimaram ao toque do álcool
odorizado. O grito foi forte, mas inaudível - explodiu na garganta e
desceu de volta ao coração, que batia saudável, apesar
da dor que lhe corroia o sentido poético. Com um lenço úmido,
retirou o excesso do rubro mel que lhe escorrera das feridas carnais, misturandoo
sangue e as lágrimas á maquilagem recém feita. Olhou-se
no espelho e riu, primeiro um sorriso tímido, depois uma gargalhada quase
histérica, mas parou quando se sentiu ridículamente teatral. Deixou
o banheiro ensaiando uma valsa solitária, contendo um riso infantil.
No quarto, vestiu seu melhor vestido de festa, tirou a aliança do dedo
e guardou numa pequena caixa de papel, junto dos recém-descobertos bilhetes
apaixonados da tal "gatinha manhosa".
Uma última olhada no espelho, Satisfeita, pegou as chaves do carro e
partiu para a festa de natal na casa da sogra, onde ele provavelmente já
deveria estar bêbado. Por via das dúvidas, colocou na bolsa a tesoura,
ainda manchada de sua dignidade matrimonial. A noite promete ser longa.