A Garganta da Serpente
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Antes da chuva

(Paulo Valença)

Chega a casa de rosto fechado, a testa vincada por rugas, os lábios comprimidos, como se contendo, prendendo o que ele sente.

A mulher entende-o: algo o preocupa e, quando assim, o melhor, o sensato é lhe evitar a palavra, deixá-lo com seu mundo íntimo.

Ele se senta à cadeira de balanço, no terracinho. A vista nas residências do morro defronte, na inclinação do terreno. As escadarias estreitas, longas. Os panos secando nos varais. Uma voz feminina falando com alguém. O céu cinzento-escuro, no prenúncio da chuva. E agora, o que será dele, Jurandir, da mulher e do filho pequeno, o Júnior? Cadencia-se. Mas, tudo na vida tem um jeito. Não há problema que não tenha uma solução. Boa ou má ela virá.

- Virá.

Repete, dando ênfase ao que sente. Continua (desde que saiu da fábrica) sentindo o vazio... As palavras do chefe-encarregado voltam no aviso:

- Jurandir você não precisa vir mais trabalhar. Venha daqui a oito dias para acertas "suas contas".

- Mas?

Atônito apenas se resumiu na indagação. O homem moreno-fechado prossegui falando:

- Você não é o primeiro da "lista", com você sairão mais dez. A indústria passa por uma "crise" e, se continuar assim terminará fechando!

Os colegas também perplexos ao lado, seguindo a cena. À noite caindo. As lâmpadas-mercúrio do salão acesas. As máquinas paradas. Operários passando na pressa natural de "largar" para o descanso do final da semana.

Cabisbaixo, sentindo já o "vazio", com dificuldade, tornou a falar:

- Tudo bem, Seu Tomé.

- Vai com Deus, Jurandir.

Evitou os colegas e devagar se afastou. Desempregado... Por que de repente isso mais uma vez lhe ocorria? Parecia-lhe estar num pesadelo, do qual necessitava acordar, para se reentregar à vida. Fora, viu ao lado, o trator amarelo, na condução do bagaço-de-cana; os operários também se movendo em direção da portaria, onde "carimbariam" os cartões; o bueiro comprido expelindo a fumaça; a sirene anunciando o início do próximo expediente... Imagens conhecidas, mas que naqueles instantes, se lhe apresentavam como o último adeus. É, mas não fora e nem seria a última vez que se via desempregado. Contudo, é sempre dolorosa essa realidade.

- Sempre!

A mulher adentra no terraço e solidária ao silêncio do companheiro, nada fala. Ele então se erguendo:

- Vou me banhar para jantar.

- Vai Jurandir.

Com os olhos apiedados ela fica vendo o corpo magro, de cabeça grisalha, braços longos, deixar o terracinho, cruzar a sala, entrar no corredor e sumir na outra sala, com a cozinha e o banheiro conjugados.

Senta-se na cadeira e com a atenção no morro, busca apenas se prender ao que presencia, enquanto à noite em sua eterna indiferença, aos poucos, envelhece.

Cadencia-se. E fica a espera da voz lhe pedindo o jantar.

A chuva então desaba. Forte. Ritmada. Molhando tudo. Tudo.

A mulher cochila.

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