Henrique passou pela rua na qual havia a casa de terraço, porta e janela
à frente e hoje, em seu lugar há o edifício que ocupa também
o terreno que circundava a residência. E lembrou-se dos moradores da antiga
casa: o avô e as duas filhas solteironas. Naquela época ele era
um menino e, ao chegar, dirigia-se ao avô, pequeno, sentado numa cadeira
de balanço logo à entrada da sala conjugada ao terraço:
- Bênção, vovô.
- Deus lhe abençoe.
A voz fraca, baixinha, o rosto cabisbaixo, as mãos entrelaçadas,
e a cadeira na cadência impulsionada pelo corpo magro, de pernas finas,
canelas alvas.
- Cadê o teu pai?
- Chega já, avô.
Respondia e cruzava a sala, a outra e, na cozinha, também falava às
tias:
- Bênção tia Ângela; Bênção tia
Antônia.
- Deus lhe proteja.
- Deus lhe abençoe.
Então, uma das tias procurava lhe agradar:
- Quer um docinho de leite, Henrique?
Sorrindo, ele aquiescia:
- Quero tia Ângela.
Sentava-se à mesa e aguardava o prato com o doce e o copo d'água
que as mãos gordas lhe trariam, enquanto a outra tia mexia numa panela
no fogão.
Fora, ao lado esquerdo da casa, os frangos no galpão cacarejavam impacientes,
ante a hora de se alimentarem. E, a tia, pondo o prato e o copo d'água
à mesa:
- Seu pai não veio não?
- Chega já, tia.
- É, porque está na hora da ração desses frangos.
O pai cuidava da criação dos frangos. O sol da tarde brilhava
sobre a lagoa atrás da casa, um pouco afastada e que era vista pela porta
aberta da cozinha. Logo findava o lanche e retornava à sala, onde o avô
cochilava, na cadeira que se balançava devagar. Então, a figura
do pai assomava à porta:
- Bênção papai!
- Deus lhe abençoe. Demorou hoje...
O pai se justificava:
- É, um serviçinho de última hora, mas, tudo resolvido.
O pai o fitava e ordenava-lhe:
- Henrique vamos pra o galpão.
Em silêncio erguia-se e acompanhava o pai baixo, forte, de andar apressado,
em direção ao galpão, enquanto o avô permanecia cochilando
na cadeira e, o pai:
- Seu avô está se "entregando"... Com o tempo ninguém
pode!
Adentravam no galpão.
Tantos anos disso tudo. Parece-lhe não terem existido aqueles dias, com
cenas que tanto lhe marcaram a existência...
- É, mas, eu as vivi.
Depois, o avô morreu vítima de um ataque do coração
e em seguida, a tia Ângela, de câncer, e a outra tia Antônia,
esclerosada, viveu ainda uns quatro anos, auxiliada pela negra Severina. E a
casa herdada, com o terreno, o galpão e a lagoa, o pai um dia, vendeu.
- Já trabalhei muito. Já fiz o que tinha de fazer, agora, preciso
de paz, descanso.
Ele, Henrique, rapazinho, conseguiu o emprego no banco através de concurso
e, com sua mãe, D. Helena, acompanhou mais tarde a velhice do pai, cada
vez mais magro, menor, assemelhando-se ao avô.
- Teu pai tá que é a cópia fiel do teu avô, Henrique.
- Também acho mamãe.
Aquiescia emocionado, sentimental. E buscava se ausentar da cena que lembrava
a outra, bem antiga.
O pai pouco se alimentando... Em seguida, o diagnóstico do câncer
na próstata. Os dias de angústia, a dor da família de presenciar
a doença vitimando o enfermo...
Sim, meu Deus: há sempre o inesperado, para nos alertar do quanto somos
pequenos, nos reduzimos na dor!
A mão nervosa busca o lenço e, apressada, enxuga as faces, na
tentativa inútil de esconder o que as lágrimas dizem.
Ao seu lado, Celina, a esposa, finge não lhe ver o gesto, o disfarce...
O automóvel aproxima-se da residência murada. O portão então
é aberto e o carro adentra.
Henrique salta. Mantendo-se silenciosa, Celina o segue. O que há com
o marido? Algo o perturba: conhece-o bem. Mas, depois, com jeito, descobrirá.
Chegam ao terraço largo, onde a senhora de cabeça alva, balança-se
na cadeira, com o olhar ausente, como se estivesse noutro mundo... Devagarzinho
Henrique se chega e, curvando-se, abraça-a, em silêncio. Celina
acompanha a cena, com os olhos inteligentes, entendendo. E respeitando o que
presencia, desvia a atenção, seguindo com interesse a borboleta
que pousa no jarro próximo e, intranquila, rápida, alça
o voo.
Alça o voo.