1
As luvas azuis. A navalha. O repentino suor na testa larga, do rosto de traços
corretos, bonito. O lábio inferior que treme, denunciando-lhe o estado
de aflição. As mãos também trêmulas. O suor
que agora desce nas faces brancas, pálidas... Ah, tem de se conter. Parar.
Está doente, é um anormal. Precisa se dominar antes que...
A voz do quarto conjugado então o chama, libertando-o do perigoso mundo
de subjugado à tara que...
- Querido você não vem?
Com a voz mais grossa pelo que sente, ele responde:
- Tou indo.
Fecha a porta. Escondendo os apetrechos utilizados de quando pratica o "ato"
e enxugando a testa com o dorso da mão larga se encaminha ao leito, onde
despida, a jovem loura sorri, no convite ao pecado.
- Tava demorando...
- É, tava me enxugando do banho.
Ela continua sorrindo, inocente do perigo que provavelmente a espera e, com
os braços longos envolve as costas do homem, na convocação
às cenas do prazer carnal, na curtição do presente, nesta
alta madrugada.
De fora, chega-lhes o som de um carro ou moto cruzando a avenida embaixo.
Logo, saciados os corpos se desgrudam exaustos, realizados, enquanto o homem
torna a pensar. Não, precisa se conter! Contudo, seus olhos fixam o pescoço
alvo, a veiazinha azul, saliente da jovem que respira devagarzinho, adormecendo.
Entre o desejo e a razão ele se debate, entretanto, sabendo que, à
semelhança de vezes anteriores, terminará cedendo... e praticando
o "ato".
2
O sargento Manuel larga o jornal sobre seu birô com a reportagem de mais
um assassinato, ocorrido durante a madrugada, num edifício na Avenida
Herculano Bandeira, próximo a praia de Boa Viagem.
Sim, a reportagem de outra jovem assassinada após (ao que tudo indica)
se entregar aos prazeres sexuais. A garganta com a veia cortada, o sangue sobre
o travesseiro, o lençol do leito branco. E a indignação
da matéria: quem será o "maníaco" que assassina
as mocinhas, após lhes usufruir os corpos esguios, bonitos? Com essa
morte, a soma já chega a oito as vítimas e a polícia se
mostra incapaz de solucionar a "aberração" humana, que
reina nas madrugadas da cidade grande. Causa a perplexidade e a revolta da população.
Até onde irá tudo isso, sem uma solução prática?
- Puta que pariu!
O soldado Bastião, seu auxiliar de quando em trabalho de investigação,
então se volta da cadeira à frente do computador:
- Qual é a "bronca" sargento?
Miguel encara-o e responde, libertando o que sente com o que acaba de saber
pelo matutino:
- O "tarado da navalha" voltou a atacar!
- O quê? Tava demorando...
Miguel puxa a cadeira próxima e sentando-se, continua:
- "Tava demorando"... Mas, tornou a atacar as meninas bonitas, geralmente
de classe pobre.
O auxiliar após desligar o computador, volta a falar:
- Agora, sargento vamos ter de aguentar outra vez a imprensa contra nós
e, até o governador também, interferindo, se defendendo. Ah, se
a gente pegasse esse safado...
- Ele iria comer da "banda podre!".
Silenciam, entregues às reflexões de como fazer para conter os
crimes, prender o "tarado da navalha", livrar a sociedade desse verdadeiro
filho do demônio.
Sim, pensa Miguel. Ele e o Bastião se entregarão às investigações
e, numa hora obterão o sucesso com a prisão do "maníaco".
- Numa hora, a gente pega o safado!
- Pois é, sargento. Tudo na vida tem uma hora, um fim, e o carinha cairá!
Aí se erguendo apressado Bastião pega o jornal sobre o birô
para ler com atenção a matéria do crime, que como sempre,
ocorreu pela madrugada.
3
O homem grande está adormecido, após as cenas sexuais com a jovem
morena, que se ergue devagar da cama, para não o despertar.
Afinal, foram muito quentes aquelas posições... Sorri maliciosa,
lembrando-se.
De pé ao lado do leito, fita-o numa análise crítica. O
cara é alvo, alourado, magro, alto, o rosto de traços corretos,
tipo galã americano, bonito. Mas, ela que é uma menina "vivida",
apesar de seus 18 anos, sente que há qualquer coisa errada nele que a
previne, como se lhe fosse um "aviso"... E, quando "sente"
isso, geralmente se engana. Acontece. Contudo, pode-lhe ser tudo uma falsa impressão.
Bom... Agora, tomar aquele banho para ficar em ordem e daqui a pouco sair com
o parceiro de prazer, deste quarto. Onde estão mesmo? "Esperta"
pela luta de enfrentar a vida difícil de "garota-de-programa"
observou bem o endereço: Rua Visconde de Correias, 41, Candeias, em uma
casa afastada do centro da cidade.
A madrugada vai alta.
- Bom...
Aí vê a pasta preta na mesinha próxima à entrada
do banheiro. Será o cara um industrial, vendedor ou um executivo? Curiosa
como toda mulher inteligente, então se aproxima da pasta, querendo saber,
descobrir.
Abre-a, procurando não fazer barulho e vê sobre papéis o
par de luvas azuis, e a navalha prateada, fina, longa.
Perplexa ante a descoberta, fecha a pasta e trêmula, se volta ao leito,
para se certificar de que o outro continua dormindo. Está. Suspira baixinho,
enquanto no cérebro se lhe desenham as manchetes lidas nas colunas policiais,
com as quais segue com interesse há meses. "Nova vítima do
maníaco da navalha". "Adolescente é morta pelo tarado
da navalha". "A polícia continua a busca do maníaco"...
As mãos tremem. O suor molha-lhe as costas desnudas. E assim nesse estado
de espírito ela entende. Fez amor com o assassino, o "maníaco",
o "tarado" que após amar as jovens, as assassina, cortando-lhes
a veia do pescoço com a maldita navalha! Determinada como sempre, então
toma a decisão de se comunicar pelo celular, com a polícia. Dizer
o que sabe e suspeita.
Corta em passos cautelosos o ambiente do quarto e, no banheiro, abrindo a bolsa
que conduz ao ombro quando sai em busca do próximo amante, retira o celular
e disca. Denunciando. Em seguida, rápida se veste e deixando o banheiro
e o quarto, encaminha-se à sala conjugada, onde abrindo a porta, e lá
fora, na calçada oposta à residência, espera os policiais.
Nervosa torna a discar:
- Como é vocês vem ou não vem? Tá certo. È
ele tá dormindo, tomou umas doses reforçadas... Mas, pode acordar
e não me vendo, descubra tudo e caia fora! Ok, tudo bem.
A madrugada vai alta. Aqui na calçada e também na outra defronte
à casa, ninguém passa. Até mesmo os veículos não
transitam. Reina o grande silêncio de uma falsa quietude. Sim, porque
ali, naquela residência há o mal que dorme (dorme?) e que pode
de repente despertar.
A zoada de um carro se aproximando.
A moça se vira e reconhecendo a viatura diz baixinho, num alívio,
em desabafo:
- Graças a Deus!
4
- Sargento, agora a gente pode festejar: o "tarado" tá engaiolado.
O homem negro, baixote, gordo, sorri, aquiescendo:
- Pois é, Bastião. O "maníaco" tá seguro!
Eu bem que dizia que numa hora, ele seria pego.
Bastião enche os copos de cerveja e após tomar um gole longo,
provando-a:
- É, pra tudo nesse mundo, tem à hora certa. E, o que se faz na
terra, aqui mesmo se paga.
O sargento então mais uma vez se lembra do celular com a denuncia da
voz trêmula da "menina-de-programa" e da pressa dele em ir com
o Bastião e mais dois soldados ao local indicado. A prisão do
sujeito branco, alourado, alto, magro. A pasta preta sobre a mesinha, com as
luvas, a navalha. E o mutismo do cara na confissão sem palavras. Tudo
enfim, solucionado. Tudo!
- O senhor vai querer o quê de tira-gosto chefe?
- Peça camarão fritado.
- Tudo "joia".
O braço se ergue e a mão aberta acena, chamando o garçom.
- Pra tudo tem a hora certa, Bastião.
- É, o senhor tá mais do que certo.
Solícito o garçom se achega.
5
Três meses depois.
A mocinha exausta pelo amor praticado, vê de repente, a mão enluvada
com a navalha aberta e, perplexa, sem ação, recebe o golpe rápido
e certeiro que lhe atinge a veia do pescoço. Então sua viste se
escurece e, tremendo seu corpo tomba para trás para aos poucos, contorcer-se
e se aquietar.
Frio, analítico, o sujeito forte, mulato fecha a navalha. E retirando
as luvas guarda-as com a navalha na pasta preta. Por instantes, prende a atenção
ao corpo moreno, despido, com o sangue que saindo em golfadas fortes da veia,
inunda o travesseiro e o lençol branco do leito.
- Essas putinhas...
A voz grossa, sussurrada, como numa justificativa ao terrível "ato"
praticado. "Ato" que agora se renova por meio de outro "tarado
da navalha".
Fora, a madrugada mais uma vez cúmplice, vai amadurecendo para ser substituída
pelo novo dia.
6
- Quando eu pensava que a navalha estava aposentada, que os crimes não
mais ocorreriam... Aparece agora outra menina morta!
A voz aí se eleva. Num grito de protesto:
- Puta merda!
O subalterno Bastião fita o sargento, sem nada dizer. Entende-o. Tudo
recomeçará! As manchetes. As cobranças no meio de comunicação.
O governador irado, convocando-os. A repercussão da opinião pública...
O inferno novamente. Até quando tudo isso continuará?
O sargento Miguel nada mais comenta, e, assim calados, se voltam às reflexões,
que são angustiantes.
Sobre o birô do sargento, o jornal aberto exibe a manchete com a foto
da morta, do leito, do quarto e a reportagem detalhada.
Detalhada. Bem detalhada.