A Garganta da Serpente
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Sol da angústia

(Paulo Valença)

1

A faixa amarela com a propaganda da locadora em letras vermelhas tem o pau, em cada lateral, que é sustentado por as adolescentes.

O sinal fecha e as duas se põem à frente dos automóveis com a faixa no anúncio promocional da compra do carro. O sol, nascido há pouco, queima no céu azul, de verão. O sinal abre e as jovens lado a lado recuem à calçada à direita.

- Trabalhinho para quem não tem mesmo outra coisa para fazer.

Lamenta-se a aloirada, de nome Graças, e a outra morena, tipo índia, alisando a cabeleira negra, escorrida, com a mão livre da faixa, sem fitá-la:

- Você falou e disse. Mas, colega, quê jeito? A necessidade obriga.

Sim, tem a mãe doente, numa cama, o pai tomando cachaça nas vendas, o irmão pequeno, necessitando de tudo... A oportunidade surgiu e concordou com a líder comunitária:

- Eu "topo", Dona Ritinha. Tou precisando mesmo.

Então a mulher baixa, gorda, amulatada, sorriu e lhe deu o telefone da locadora.

- Ligue pra esse número. Diga que fui eu que falei com você.

- Sim, vou ligar.

Agradeceu, ligou e, quando na locadora, o homem grande, forte, vendo-a, sorriu e falou:

- O trabalho é este: Você fica segurando a faixa de um lado e a outra menina do outro, para fazer a propaganda. Entendeu?

- Entendi: a gente mostra a faixa quando o sinal fechar.

- É isso aí.

- O senhor paga quanto?

Então o homem mantendo o sorriso (havia malícia nesse) no rosto corado:

- Dez reais por dia. Estamos combinados?

- Estamos. Quando começo?

- Agora mesmo, essa menina... Como é mesmo que se chama?

- Ana das Graças. Gracinha pra os amigos...

Ele prático, sem mais querer perder tempo com ela, então gritou para o funcionário gordo, brancoso, que atendia no balcão aos fundos do grande salão repleto por automóveis.

- Pedro, dê à faixa a moça que ela começa a trabalhar.

- Sim, Seu Augusto.

Aí ela dirigindo a atenção ao rapaz, viu a sua companheira de trabalho, ao lado deste, a morena Ivoneide que, em silêncio, seguira a entrevista com o proprietário da casa. Assim iniciou o trabalho de expor a faixa no sinal, quando fechado, aos veículos que estacionavam. Há duas semanas se expõe, com a outra jovem, ao sol, tendo como proteção o boné contra a luz forte do sol durante o dia.

Às dezoito horas, retorna a casa. As pernas doloridas, o rosto mais vermelho (apesar de proteção do boné), os braços também avermelhados e, pensativa, toma o ônibus lotado, com um sujeito se aproveitando disso para se "esfregar" nela:

- Cara se afasta, "descola"!

O sorriso amarelo do desapontamento do outro, alguns sorrisos maliciosos, olhares maldosos e, sem o contato do corpo quente e do órgão do homem, ela segue a viagem. Ao deixar o coletivo, caminha, entrando na rua defronte, de residências conjugadas, terracinhos, moradores nas calçadas conversando, meninos correndo aos gritos, motos transitando, um carro buzinando, pedindo passagem. Afasta-se.

Adiante, à esquerda, entra na travessa estreita, com a escadaria longa que a conduz ao morro, onde está à casa pequena, com sua família. Ah, se conseguisse outro emprego! Mas, enquanto não o consegue, o jeito é ficar no que está, ou seja, expor-se de pé ao sol com a faixa de propaganda e, como pagamento, receber dez reais por dia... Enquanto sobe os degraus estreitos, vai ouvindo as vozes características da noite: crianças que choram; latidos de cães presos, exigindo a liberdade; som de rádios com a música sucesso do momento; alguém gritando, em xingamento... E chega ao alto. À frente a casinha de porta e janela, com o irmão esperando-a.

- Gracinha!

O mano grita alegre e vem correndo ao seu encontro. Abaixando-se ela o acolhe, num abraço, como se ele lhe fosse o porto de segurança, a força para continuar no trabalho estafante e que tanto a humilha.

- Vamos entrar. Mãe tá bem, João?

- Tá dormindo.

- Sim, dormindo...

De mãos dadas adentram na sala pequena, de mesa, quatro cadeiras e na parede, o quadro com a imagem do Cisto crucificado.

Do quarto conjugado, vem os ruídos no leito e em seguida, a voz fraca:

- Graças a Deus a filha chegou!

A jovem sente uma coisa... Com as costas da mão esfrega os olhos, buscando se esconder, enquanto liberto da outra mão, o menino sai correndo para o terreiro da residência.

Devagarzinho Graças entra no quarto.

2

A Graça, ou Gracinha, como é tratada por os mais íntimos (conforme ela mesma revelou) é realmente uma "graça": alta, esguia, de cabelos aloirados, longos e, com o boné vermelho, blusa branca, as calças azuis...

- É uma artista. Poderia se tivesse chance, até trabalhar como modelo, ser artista de televisão.

Mas, a pobreza castiga muito as pessoas, as diminui, na humilhação, no sofrimento! Ele, bem sabe disso, também foi pobre, conhece a luta pela sobrevivência, o quanto amargurou na infância e adolescência. Se não fosse sua "vivacidade", os "meios" usados...

- Estaria ainda na merda!

Sim, os honestos são medíocres. O dinheiro eleva o homem. Sem o dinheiro ninguém é nada... Essa é que é a dura, cruel realidade. O resto é enganação, falsa aparência.

Ergue-se da cadeira de couro, confortável e encaminha-se à entrada do salão, onde fica olhando as jovens com a faixa no sinal que fecha. Uma menina interessante essa lourinha. Com um "banho de loja"... Malicioso, sorri, imaginando as cenas que curtirá em companhia da adolescente que, inocente de tudo, segura o pau que prende o plástico com a propaganda da locadora e tem a adolescente morena, na outra lateral, na mesma função.

O sinal se abre e elas retornam à calçada.

Silenciosas, fitam os veículos passando, passando... sob o sol quente da angústia.

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