Ontem ele havia passado o seu paletó marrom com listras brancas bem
fininhas, suas calças e engraxado os sapatos. Tirou do armário
aquele chapéu novo, de feltro, e deu uma bela escovada, colocando-o nas
costas da cadeira, junto com o paletó e as calças. Tudo isso para
de manhã, bem cedo, partir.
Foi dormir como um garotinho na véspera do Natal. "Amanhã
vai ser diferente", disse ele antes de cair no sono. Mas sua noite de descanso
não foi nada tranquila. Pesada, sufocante e gélida. A esposa
insistia em lhe descobrir, enroscando-se nas cobertas. Ele odiava quando ela
fazia isso.
A manhã nunca lhe pareceu tão triste. O galo, da casa da vizinha
ao lado, não o acordou, tinha sido atropelado ontem pelos garotos, enquanto
brincavam com seus carrinhos de rolimã. Outra vez, sua esposa babara
em seu travesseiro, justamente onde fica seu rosto. Levantou aborrecido. Os
mosquitos o devoraram vivo. Aquela manhã estava difícil.
Queimou a mão enquanto fazia o café e ferveu o leite além
da conta. O rapaz do jornal tacara novamente o matutino na cisterna do quintal.
Ele bocejou, tomou seu banho, cortou-se enquanto se barbeava e escovou as dentaduras.
Frodo, o gato, borrifara de urina suas meias novas, obrigando-o a calçar
as velhas. Furadas, claro. A sua esposa não as cosera. Maldita!
Antes de partir, todo alinhado, conferiu se o dinheiro da prestação
e o carnê estavam em cima da cômoda (não queria ela falando
para todos que ele fora embora e só lhe deixara dívidas). Verificou
os documentos no envelope, na mesa da cozinha, e sentou-se para escrever um
bilhete. Em um papel de pão. Era muito conservador: bilhete de despedida
só em papel vagabundo! A caneta falhou três vezes. Largou tudo
para lá e foi embora. Melhor assim, pois vai parecer rebeldia, dando-lhe
um ar mais jovial, depois de tudo.
Seguiu direto para uma passagem, na rua de trás, que dava para a linha
férrea. Um buraco feito no muro da ferrovia, há muitos anos, onde
as pessoas entravam só para não pagar a passagem. Depois de quinze
anos indo para o centro de trem, todo santo dia, sem errar o troco, ele só
veio a descobrir a passagem há duas semanas. Quinze anos...
O tempo prometia uma tempestade, e ele esquecera o guarda-chuva na mesa da
cozinha. Era a pressa. Olhou para os dois lados da linha e avistou a estação,
lá embaixo. O lugar estava deserto. Escolheu um dormente bem limpo e
se deitou, colocando a cabeça em um trilho e cruzando as pernas sobre
o outro. Repousou o chapéu no peito e pôs um lencinho debaixo de
sua cabeça. Sua baixa estatura lhe conferia um conforto esplêndido.
Coube certinho no intervalo entre um trilho e outro.
Fechou os olhos, respirou fundo e pigarreou. Trinta e nove anos de cigarro
consumira-lhe os brônquios. Sentiu aquele cheirinho peculiar de terra
molhada. A chuva vêm vindo, resmungou.
Uma vibração repentina nos trilhos fez seu coração
disparar. Cerrou os olhos com força e trincou os dentes. Apertou o chapéu
contra o peito com muita força, amassando-o. Maldição,
detestava chapéus amassados. Rapidamente meteu a mão por dentro
e concertou o desnível. Não abrira os olhos.
A vibração aumentava, assim como o som que mais e mais se aproximava.
Começou a tremer todo, ao ponto de não saber o que era vibração
do trem e o que era tremedeira mesmo. Dava até para ouvir os trocados
da passagem tilintarem em seu bolso. Deu a suar. Seu coração já
estava incomodando-o dentro do peito. A cabeça quicava no trilho.
Trincara com tanta força a mandíbula, que sua dentadura superior
estalou. Sentia, agora, uma forte dor de cabeça. Pôxa vida, lembrou-se
que deixara a porta do armário do banheiro aberta! A desgraçada
vai ter assunto para o mês inteiro...
A locomotiva vinha a todo o vapor. As pedras batiam umas nas outras, trazendo
uma perturbação inaudível. Esquecera como se começava
o "Pai Nosso". Já deveria estar bem próximo, não
tinha mais forças para abrir as pálpebras.
"Ele vêm aí", pensa repetidas vezes. O trem vinha se
aproximando de tal maneira, que ele teve a impressão do ar à sua
volta estar se deslocando. Está apavorado. Têm um palitinho de
picolé espetando-o nas costas. Sente uma brisa quente e a poeira em seu
rosto. Começa a chuviscar.
À essa altura não havia mais volta, o trem estaria perto demais
para que ele tentasse levantar e correr. O som o ensurdece e ele solta um gemido
de horror. Em suas vistas, um clarão. O trem passa. Na outra linha, um
pouco mais acima de sua cabeça.
O deslocamento de ar leva seu chapéu para longe. O barulho e o tremor,
explodindo quase ao mesmo tempo, desgoverna-o. Sua postura e pensamentos parecem,
agora, os de um bêbado. Todo amarrotado, trêmulo e suado. Encharcado
da cabeça aos pés. Inferno! O trem está alcançando
a estação, ao longe.
Então ele ouve, bem distante, a voz do funcionário da estação
dizer que aquela composição indo para o centro, somente circularia
pela Linha Auxiliar. Justamente a que ele NÃO estava deitado. O destino
lhe pregara outra peça. Daquelas!
Levantou-se e foi para a estação, esperar o trem que serve para
ele que, segundo o funcionário da estação, passaria com
meia hora de atraso. Chegaria tarde ao serviço...
Definitivamente, aquele não era o seu dia.