A Garganta da Serpente
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Ansiedade

(Pacha Urbano)

Ontem ele havia passado o seu paletó marrom com listras brancas bem fininhas, suas calças e engraxado os sapatos. Tirou do armário aquele chapéu novo, de feltro, e deu uma bela escovada, colocando-o nas costas da cadeira, junto com o paletó e as calças. Tudo isso para de manhã, bem cedo, partir.

Foi dormir como um garotinho na véspera do Natal. "Amanhã vai ser diferente", disse ele antes de cair no sono. Mas sua noite de descanso não foi nada tranquila. Pesada, sufocante e gélida. A esposa insistia em lhe descobrir, enroscando-se nas cobertas. Ele odiava quando ela fazia isso.

A manhã nunca lhe pareceu tão triste. O galo, da casa da vizinha ao lado, não o acordou, tinha sido atropelado ontem pelos garotos, enquanto brincavam com seus carrinhos de rolimã. Outra vez, sua esposa babara em seu travesseiro, justamente onde fica seu rosto. Levantou aborrecido. Os mosquitos o devoraram vivo. Aquela manhã estava difícil.

Queimou a mão enquanto fazia o café e ferveu o leite além da conta. O rapaz do jornal tacara novamente o matutino na cisterna do quintal. Ele bocejou, tomou seu banho, cortou-se enquanto se barbeava e escovou as dentaduras. Frodo, o gato, borrifara de urina suas meias novas, obrigando-o a calçar as velhas. Furadas, claro. A sua esposa não as cosera. Maldita!

Antes de partir, todo alinhado, conferiu se o dinheiro da prestação e o carnê estavam em cima da cômoda (não queria ela falando para todos que ele fora embora e só lhe deixara dívidas). Verificou os documentos no envelope, na mesa da cozinha, e sentou-se para escrever um bilhete. Em um papel de pão. Era muito conservador: bilhete de despedida só em papel vagabundo! A caneta falhou três vezes. Largou tudo para lá e foi embora. Melhor assim, pois vai parecer rebeldia, dando-lhe um ar mais jovial, depois de tudo.

Seguiu direto para uma passagem, na rua de trás, que dava para a linha férrea. Um buraco feito no muro da ferrovia, há muitos anos, onde as pessoas entravam só para não pagar a passagem. Depois de quinze anos indo para o centro de trem, todo santo dia, sem errar o troco, ele só veio a descobrir a passagem há duas semanas. Quinze anos...

O tempo prometia uma tempestade, e ele esquecera o guarda-chuva na mesa da cozinha. Era a pressa. Olhou para os dois lados da linha e avistou a estação, lá embaixo. O lugar estava deserto. Escolheu um dormente bem limpo e se deitou, colocando a cabeça em um trilho e cruzando as pernas sobre o outro. Repousou o chapéu no peito e pôs um lencinho debaixo de sua cabeça. Sua baixa estatura lhe conferia um conforto esplêndido. Coube certinho no intervalo entre um trilho e outro.

Fechou os olhos, respirou fundo e pigarreou. Trinta e nove anos de cigarro consumira-lhe os brônquios. Sentiu aquele cheirinho peculiar de terra molhada. A chuva vêm vindo, resmungou.

Uma vibração repentina nos trilhos fez seu coração disparar. Cerrou os olhos com força e trincou os dentes. Apertou o chapéu contra o peito com muita força, amassando-o. Maldição, detestava chapéus amassados. Rapidamente meteu a mão por dentro e concertou o desnível. Não abrira os olhos.

A vibração aumentava, assim como o som que mais e mais se aproximava. Começou a tremer todo, ao ponto de não saber o que era vibração do trem e o que era tremedeira mesmo. Dava até para ouvir os trocados da passagem tilintarem em seu bolso. Deu a suar. Seu coração já estava incomodando-o dentro do peito. A cabeça quicava no trilho.

Trincara com tanta força a mandíbula, que sua dentadura superior estalou. Sentia, agora, uma forte dor de cabeça. Pôxa vida, lembrou-se que deixara a porta do armário do banheiro aberta! A desgraçada vai ter assunto para o mês inteiro...

A locomotiva vinha a todo o vapor. As pedras batiam umas nas outras, trazendo uma perturbação inaudível. Esquecera como se começava o "Pai Nosso". Já deveria estar bem próximo, não tinha mais forças para abrir as pálpebras.

"Ele vêm aí", pensa repetidas vezes. O trem vinha se aproximando de tal maneira, que ele teve a impressão do ar à sua volta estar se deslocando. Está apavorado. Têm um palitinho de picolé espetando-o nas costas. Sente uma brisa quente e a poeira em seu rosto. Começa a chuviscar.

À essa altura não havia mais volta, o trem estaria perto demais para que ele tentasse levantar e correr. O som o ensurdece e ele solta um gemido de horror. Em suas vistas, um clarão. O trem passa. Na outra linha, um pouco mais acima de sua cabeça.

O deslocamento de ar leva seu chapéu para longe. O barulho e o tremor, explodindo quase ao mesmo tempo, desgoverna-o. Sua postura e pensamentos parecem, agora, os de um bêbado. Todo amarrotado, trêmulo e suado. Encharcado da cabeça aos pés. Inferno! O trem está alcançando a estação, ao longe.

Então ele ouve, bem distante, a voz do funcionário da estação dizer que aquela composição indo para o centro, somente circularia pela Linha Auxiliar. Justamente a que ele NÃO estava deitado. O destino lhe pregara outra peça. Daquelas!

Levantou-se e foi para a estação, esperar o trem que serve para ele que, segundo o funcionário da estação, passaria com meia hora de atraso. Chegaria tarde ao serviço...

Definitivamente, aquele não era o seu dia.

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