A Garganta da Serpente
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Patrícia de Cordovil

(P. R. Bertonselli)

I

São Pedro olhou mas não reconheceu. Chamou anjo Gabriel, que também desconheceu a mulher plantada no Grande Portão Celestial. Então convocaram anjo Rafael. Este olhou uma, duas, várias vezes pelo olho mágico e nada. Do lado de fora Patrícia começava a irritar-se com a demora. Nem no Céu as coisas são rápidas. Se soubesse que iria demorar tanto tempo do lado de fora, pediria pra aguardar na terra mesmo, no salão onde frequenta, aliás, frequentava todo final de semana. E esta hora deve estar cheio de fofoca. Cada uma mais cabeluda que a outra. Será que Patrícia vai se habituar sem as facilidades do homem, os inventos que tornam a vida um descanso, a magia dos bisturis e cremes? Será?

Ela nasceu bonita, como a maioria das mulheres brasileiras. Bumbum, seios e rosto perfeitos; nada a mexer. Onde chegava, os pais se orgulhavam dos elogios de bonitinha, já que Patrícia ainda era criança e não lhe cabia bem o adjetivo na forma adulta. Até as brincadeiras, comportadas, recebiam elogios. Patrícia representa o sonho de qualquer casal: casar e ter filhos bonitos e perfeitos, cópias idênticas dos genes.

A mãe aproveitava os elogios para cada ano realizar festa mais bonito e luxuosa. Com uma filha perfil atriz, comemorar o aniversário só em família é um sacrilégio aos Céus.

- Mas Margarida, eu já expliquei que o governo não está pagando em dia...

- Eu já falei pra você mudar de profissão! Tá sempre dependendo do governo! Nós vamos realizar a festa e pronto.

Contumaz, a mulher contradizia o marido e pronto. Se danasse as contas, as obrigações. Naquele momento só queria realizar a festa da filha, e mais bonita e luxuoso do que foi o ano passado. Nascimento já não sabia mais o que dizer ou fazer para convencer a esposa da situação financeira. Muito mal conseguia pagar as contas, não estava sobrando nem pra cerveja de sábado. O cigarro, que vinha diminuindo paulatinamente até parar, voltou a fumar dois maços diários: um do vício, outro da preocupação, já que a mulher estava encomendando rasos e fundos no cartão de crédito.

Protegida das brigas domésticas, Patrícia crescia ligeiro, despertando inveja e ciúme nas amiguinhas, que as mães nem queriam mais as filhas brincando com a Patricinha do bairro.

- Julieta! Entra! Amanhã tem prova e você precisa estudar! Gritou uma mãe do portão de casa.

A outra mãe que já havia posto a filha pra dentro com desculpa parecida, aproximou-se de Creusa:

- Você também, Creusa?

De todas as mulheres da rua, Creusa era a que mais conversava ainda com Margarida, frequentava a casa dela, trocava confidências. Só começou a se distanciar, quando ouviu Margarida desdenhar das meninas da rua. Ouviu porque os anos de convivência romperam a cerimônia de bater na porta. Creusa foi entrando, transpondo o corredor lateral da casa, em direção a porta da cozinha, onde elas normalmente papeavam quase toda à tarde. Margarida levou um susto, ao dar com Creusa no patamar da porta.

- Creusa, você estava aí?

O não esperado por Margarida não saiu da boca de Creusa. Se ela se visse naquele momento, iria finalmente saber como o branco se sente quando fica envergonhado, o rosto afogueado de sangue. Era demais ouvir da boca de Margarida o adjetivo negrinha para explicar Patrícia que Julieta não servia como dama de companhia. 15 anos é o momento mais importante da mulher antes do casamento. Uma negrinha na foto para sempre não ficará bem. O que seus filhos vão dizer: mamãe, a senhora era amiga duma preta? É isso que você quer, Patrícia?

Não só o não como a voz de Creusa embargou. Quando tentou falar, uma tosse forte e continua atrapalhou a ira contra Margarida, que de tudo vez para ouvir, ter certeza se a amiga ouviu ou não.

Tossi, tossi, tossi....

Água, batidas nas costas, assopro na testa, susto de repente; nada conseguiu desengasgar Creusa que resolveu retornar pra casa. Mas ao ultrapassar o limiar de casa, o engasgo expeliu a ira. Julieta sofreu sem culpa alguma. Sobrou até pro marido uma saraivada de ira.

- Mas do que você tá falando, afinal de contas? O que aconteceu?

Creusa não via nem ouvia mais nada. Enquanto não pusesse pra fora o osso entalado na garganta ninguém teria explicação de tanto nome feio, tanto arrependimento em se tornar confidente de branco. O que mais doía em Creusa eram as confidencias, os segredos da cama que compartilhou com aquela vaca. Aquela ordinária! Aquela branca azeda!

Algumas vizinhas apareceram no portão e gritaram Creusa, porque os gritos davam a impressão duma briga feia, conjugal.

- Entrem, entrem. Mandou Marcos.

Quem sabe a esposa diante delas de nome a vaca. E entraram 4 mulheres. Uma branca. Quase Creusa a expulsa. Marta só não correu, porque soube se defender, dizer a Creusa que não compartilha dos pensamentos de muitos brancos e pretos também. Só então Creusa foi se acalmando, acalmando. Mas o nome da vaca, o marido ficou às cegas. Relatar pra quê? Violento, seria bem capaz de tirar satisfação em prol dela com mulher de policial. E viúva, era a última coisa que queria. Engoliria os sapos. A vida é assim mesmo, não adianta levá-la a ferro e fogo.

II

Depois deste incidente, Margarida perdeu a última aliada da rua. Saber se Creusa ouviu, nunca soube, mas o comportamento, as saudações secos não deixavam dúvida no ar. A única coisa agora a fazer é tornar Patrícia o ícone da beleza, fazer o mundo conhecedor que em Cordovil também nascem mulheres bonitas e inteligentes.

Ser contra as ideias da esposa, o policial Nascimento não era, só achava dispendioso demais o futuro duma atriz.

- Precisa mesmo investir todo este dinheiro em cremes e cirurgia, Margarida?

- Claro. Você acha que a mulherada toda da televisão não vive acertando defeitinho aqui e ali. É o preço da beleza, meu marimbondo.

- Já falei pra não me chamar assim!

- Então ficar andando pra lá e pra cá, de moto, só multando, ferroando o contribuinte...

- Eu cumpro ordens, Margarida..

- Mas não deixa de ser uma ferroada. Só espero que as ferroadas não ultrapassem a multa, porque tem muita mulher se oferecendo para não pagar multa. O seu ferrão é só meu? Fala meu amor. Fala dengoso que seu ferrão é só meu.

III

O sétimo anjo acabava de sair do olho mágico com a resposta cópia de todos: ninguém conhecia a mulher, aliás, mulherona, plantada no Portão Celestial. São Pedro começava a preocupar-se. O mal sempre se disfarçando para corromper o bem. Se permite uma desconhecida entrar no Céu, o que poderia advir?

- Vocês têm certeza de que nunca viram aquela mulher? Apesar dela falar português, pode ser de outro País.

Os setes anjos negaram tal possibilidade, porque verificaram todos os registros de vivos e até de mortos e ninguém se parecia com ela. São Pedro voltou a caminhar dum lado pra outro, muito preocupado. Há anos DEUS não tirava férias. Sempre labutando, indicando aos ímpios que ele existe, que o mundo tem duas estradas. Uma da vida, outra da morte, do sofrimento eterno, que não adianta dinheiro, pôs no Céu todos usam calças e blusas sem bolso, justamente pra isso, pra corrupção não esconder nada e nem barganhar perdão eterno. Uma luta, um sofrimento a labuta de DEUS estes anos todos. Principalmente no Brasil, onde permitiu um povo misto desenvolver-se para exemplar o mundo de generosidade, de compaixão, de humildade, de compreensão, mas fracassou. A fila da morte, do sofrimento eterno tem aumentado e muito no Brasil. Infelizmente a da vida é muito pequena, imperceptível do alto. Mas DEUS tinha esperanças de igualar a fila com as muralhas da China, nem que descesse ele próprio para organizar a fila. Descesse disposto a tudo para quem de fato arrepender-se dos pecados, como um ladrão que foi crucificado com ele. Entretanto é difícil, trabalhoso incutir no homem que toda tecnologia, saber, invento são nada comparados ao amor, a simplicidade que ensinou para o mundo funcionar. Como é difícil e trabalhoso. Então precisava sim dumas férias, renovar os pensamentos porque o Rio de Janeiro está prestes a dar-se descarga.

Este e outros pensamentos passavam pela cabeça de São Pedro quando recebeu a incumbência de dirigir o Céu sozinho, enquanto DEUS tirava férias.

- Tem gente aí dentro?! O de casa! O de casa! Gritou mais uma vez Patrícia.

Os gritos arrepiaram são Pedro. Não podia deixar Patrícia eternamente esperando, porém não podia deixar uma desconhecida entrar no Céu.

- Vamos mandá-la pro purgatório! Bradou anjo Rafael.

A princípio não era uma má ideia. A desconhecida ficará aguardando lá até encontrarem uma solução definitiva. E desta vez São Pedro próprio checará o livro de registros. Impossível nascer alguma coisa no jardim sem ter sido plantada por DEUS.

"No purgatório não! Esqueceu os anos que sofri pra convencer os políticos de que no Céu não existe partido, conchavo..."

São Pedro quedou de supetão.

- No purgatório não.

Anjo Rafael franziu a testa e cheio de dúvidas questionou São Pedro. Há dois segundos atrás achou a ideia excelente e de repente...

- Não entendi, São Pedro. Achou ótimo a desconhecida ficar no purgatório aguardando e de repente diz no purgatório não?

- DEUS que tu vê e ouve lembrou-me de que temos muitos políticos lá. Não sabemos o partido que esta desconhecida defendia na terra. Todo o trabalho que DEUS teve pode minar, se pormos ela lá.

- Tem gente aí dentro?! O de casa! O de casa! Novamente gritou Patrícia e desta vez bateu no Grande Portal Celestial.

Anjo Gabriel resolveu falar:

- E se a gente mandá-la pra aquele um, o dito cujo, o brasa e fogo.

Fazia meses que havia sido repreendido justamente pela falta de esperança que deposita nas pessoas. Não é porque a senhora é desconhecida que será despachada fácil para o brasa e fogo. Antes disto acontecer, muitos dias e noites vão trabalhar, rever minuciosamente os registros de vivos e mortos do mundo inteiro, do mundo inteiro, sem exceção. Contrafeitos, os anjos seguiram para o Depósito Celestial, remexer novamente nos pesados e empoeirados livros. Já São Pedro, cauteloso, aproximou-se do Portão.

- Quem bate?

Patrícia levou um susto. Há dias aguardando uma resposta.

- Sou eu, a Patrícia de Cordovil.

Antes de responder, São Pedro chamou um anjo e disse que a desconhecida era Brasileira, Carioca e morava em Cordovil. O anjo voltou correndo ao Depósito avisar aos demais que bastava a poeira dum livro, o de Cordovil.

- E o que aconteceu com a senhora, Dona Patrícia de Cordovil?

- Eu é que pergunto. Estava corrigindo cirurgicamente um defeitinho no nariz e não acordei mais. Será que o senhor pode me arranjar um banquinho, senão vou ter que operar novamente as varizes.

- Claro.

São Pedro pegou um banco, entreabriu o Grande Portão Celestial e empurrou-o pra fora. Ele nem olhou pra ela. Patrícia sentou e respirou aliviada. Há dias em pé.

- Também estou com uma sede. Tem champanhe?

- Champanhe?

Repetiu São Pedro assustado e pensativo. Será que a desconhecida, aliás, Patrícia de Cordovil sabe que morreu? Que está no Portão do Céu? Será?

São Pedro repetiu a mesma estratégia para dar a ela o de beber.

- Água!

- E a melhor do mundo. Anjos e Santos bebem dela, Patrícia de Cordovil...

- Só Patrícia, por favor. Cordovil é um bairro muito chinfrim, só vereador é que aparece por lá.

A pergunta quase pulou da gutural de são Pedro. Apesar de descobrir a nacionalidade, o bairro, infelizmente os anjos continuavam debruçados no registro de vivos e mortos de Cordovil e até agora nada, nenhuma menina se assemelhava a Patrícia de Cordovil.

- O de casa! O senhor continua aí? Não vai me deixar sozinha novamente, vai? Averiguou ela em consequência do silêncio prolongado.

- Eu estou aqui, Patrícia de Cord... Perdão, só Patrícia.

Os Anjos Rafael, Gabriel mais três se aproximaram de São Pedro cobertos de poeira. Repousaram o grande livro de mortos na mesa do grande salão de recepção e abriram na página onde foi sacramentado a estadia de Patrícia Silva Juramir, no jardim. A poeira levantada os fez tossir.c - O de casa! Tem mais de um aí? Tão gripado? Eu conheço um médico muito bom, em Ipanema. Querem o endereço? Eu não posso ficar gripada. Toda vez que fico, gasto um dinheirão corrigindo as bolsas dos olhos.

Reeeeeeeeeee. Fez o Grande Portão Celestial abrindo-se todo.

De imediato, Patrícia cegou com tamanha claridade jorrada de dentro. Aos poucos foi enxergando ao redor, a maravilha de Portão com dois leões enormes, um de cada lado. Embora em mármore, eles pareciam verossímil, vivos, que amedrontava. No meio deles a palavra CÉU, desenhada, grafada como se fosse os 7 continentes do mundo. E distante um pouco, outro portão menor, sem brilho e guardiões, com purgatório escrito acima. Ao longe, a escuridão cobria tudo. Das entranhas gritos de pavor, medo e dor. Vez ou outra uma labareda cortava o escuro como navalha. Então os gritos triplicavam. Ela correu em direção a São Pedro que a acolheu nos braços. Os anjos rapidamente puseram-se diante da entrada, de braços erguidos para o mal quedar lá fora, no seu lugar.

Minutos depois, com tudo serenado e explicado, São Pedro interrogou-a:

- Por que você mudou tanto, Patrícia? DEUS a fez tão bonita, igual a qualquer outra flor do jardim.

- Igual não, São Pedro...

- São muitas espécimes, Patrícia, e cada uma tem seu valor, beleza.

- É o homem, São Pedro, o homem que é culpado. Toda hora inventam isso ou aquilo e nós, fracos de espírito e cabeça, acabamos seguindo as estradas tortas da vida. Vai acontecer alguma coisa comigo?

- O fato de admitir os erros aliviou em muito seus pecados, minha filha. Mas ainda existem outros a pagar. Anjo Gabriel, leve Patrícia para o purgatório, e de a ela a tarefa de cuidar dos negros. Durante 10 anos ela vai passar, cozinhar e limpar a casa de todos os negros. Depois a traga aqui para nova tarefa. Ponha-a longe dos políticos.

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