Entrego-te o meu corpo renegando-te o espírito. Podes disparar essa arma,
espalhar o meu sangue pelos cantos do quarto. E podes-me violar a seguir, mutilar
ferozmente e comer-me as entranhas com molho bechamel.
O meu sexo pinga do teu sémen, estremece de frio em meio às pernas
que se estendem inanimadas pelo chão. Ainda vivo, sei que do alto deste
apartamento, desta jaula onde certamente perdeste o juízo por não
conseguires viver com a solidão e com a dor da falta de liberdade, desta
caixa de sapatos onde as peles mortas da tua consciência jazem abandonadas
pelos cantos da divisões, sei bem que ainda vivo.
Não há-de ser esse gatilho que me há-de levar. O meu corpo
não é nada, a entrega é um segredo mais antigo que o mistério
da inteligência e do sonho. O teu caralho murcho desassombra-me, repõe-te
na fragilidade que se esconde por detrás de uma arma, de um jogo de cordas
que me prende os pulsos a esta cama sem lençóis.
És apenas um homem, um menino assustado abandonado pela mãe. Um
produto inacabado e imperfeito. Não conseguiste assimilar todas os procedimentos,
não és daqui, sentes-te indefeso e impotente.
Compreendo-te , não to levo a mal. A realidade, esta realidade mata.
Em meio á penumbra ténue que envolve este quarto vejo na tua cara
a inocência perdida de quem foi obrigado a crescer. Sinto pena de ti,
uma certa ternura pela tua figura patética. Quase que me apetece abraçar-te
e sossegar-te o espírito. Tenho as mãos amarradas pela tua cegueira.
Se me querias, se me desejavas de forma tão psicótica, tão
violenta, tão patológica, melhor teria sido pedir-mo abertamente.
Um tiro aqui trará os vizinhos, os vizinhos trarão a polícia,
a polícia os juizes e o juizes a pena máxima. Além disso
a tua consciência, que por pouca que possa ser, roer-te-á os olhos
até ficares cego. É como te digo, o meu espírito é
livre, não me custa dar-me. Nem à morte. Nem a ti.
Arrepias-me pela decadência sem estilo, sem classe, com que me violaste.
Os teus gestos foram animalescos, o teu cheiro é uma mistura de micose
e adrenalina. A descompensação que sofreste quando te vieste deixou-te
aí, patético, encurvado, corcunda sensual com um pénis
em cada mão. Deprimes-me, fazes-me agudizar a capacidade de empatia e
de desprezo.
Juro-te sem nenhuma necessidade, bastava teres-me pedido e eu seria tua sem
todo este festival de fantasia e de demência mental.
Que meteste tu na cabeça todos estes anos? Que pensamentos, que delírios
maquinaste em silêncio, amordaçado por ti mesmo durante todos estes
anos? Serei eu para ti o sonho perdido que nunca se realizou, a curva do destino
que acabou repentinamente, numa estrada sem início sequer? A rejeição...
como te tornaste nisto?
Como podes suportar o vazio em que estás agora, o sofrimento pela desilusão
daquilo que mais querias? Tenho pena de ti.
Tudo, tudo o que vês, tudo o que sentes, tudo o que pensas, tudo isso
só existe para ti. Eu só existo para ti, nas tuas masturbações
escondidas, nos teus ataques de pânico em meio ao deserto que não
soubeste aproveitar, às tuas mãos quando me forçaste o
caminho da intimidade, à tua alma que julgava que assim me poderia ter.
E tu não existes. És simplesmente construído pelo que te
rodeia, dentro e fora de ti. Bem no centro não és nada, o vácuo
que nunca foi sequer desvirginado pelo caos.
Podes-me ter fendido o corpo, podes ter maculado este templo em que poderias
entrar sem arrombar os portões, se tivesses o nariz aberto. És
homem, és estúpido. Julgas que é o corpo que me define.
Este universo é-te imperscrutável, inenarrável. Este mundo
é para os eleitos. Só uma pessoa me teve e só uma pessoa
me terá. O meu corpo até podia ser vendido pelas esquinas cinzentas
da cidade. A entrega nunca será total, a entrega do corpo é como
o refluxo das ondas, gratuita e de uma violência consentida.
A tua violação mais me não causa além de uma profunda
tristeza pela raça humana, por estas crianças do efémero
e do eterno que insistem em partilhar todos a mesma pele podre.
A entrada do teu sexo em mim, a animalidade canina, a sofreguidão com
que rapidamente ejaculaste dentro desta boca do corpo, não mais me provocou
que desprezo. Nem repulsa, nota. O teu sexo é igual ao dos outros homens.
Nada me perturbas. Nada.
Por isso dá lá o último passo e tem a coragem, uma vez
na vida toma uma atitude, deixa esse indicador escorregar suave pelo gatilho,
retira-me a esta vida.
Carrego já dentro de mim experiência e criação suficiente
para a próxima vida. As minhas cicatrizes já me tatuam com a história
do que vale a pena levar daqui. Sou velha, sou nova e sou eterna. Morra às
tuas mãos, pois então.
Podes-me violar de novo antes do perecimento. Pessoalmente sempre achei a necrofilia
um tanto quanto pouco higiénica. Não preferirás certamente
foder-me morta quando me podes ter viva. Ou serás daqueles que costuma
enrolar o sexo em grandes bifes para que a masturbação seja mais
real? Um buraco onde te possas esconder do mundo? Anda, vem, possui-me uma vez
mais.
Não escondeste de mim todos estes anos esse teu desejo avassalador? Não
alimentaste com achas petrolíferas esse fogo imenso que te consumiu o
espírito e te levou a este abismo? Sopra, pois então, ateia essas
labaredas com um bocado de carne quente. Sente os meus pentelhos roçarem
nos teus, vê as minhas mamas a ritmarem com os nossos corpos, beija-me
a cara como se estivesses a beijar uma bola de futebol, sente nas tuas mãos
as minhas ancas de mulher madura. Porque não me fodes também pelo
cú? Nunca deves ter experimentado, aposto. Não sabes como é
bom, apertado, a sensação de posse que os homens têm quando
nos fodem pelo cú. Coitados, animais cegos e iludidos.
Que se passa, choras? Estas palavras que te digo saem-me mecanicamente. É
o transformar de um acto marginal ao teu mundo numa obra de arte, no registo
da realidade tal como ela é. Tens esse privilégio, aproveita,
goza o momento, não te esvaias em baba e ranho.
Mas, que fazes, desamarras-me? Pedes-me para fazer amor contigo? Abomina-te
ímpia criatura. Nem a força da loucura te consegue manter hirto
e determinado. Estás arrependido? De quê? Já outros me violaram
mais do que tu, descansa, e não o admitiram. Confesso que é a
primeira vez que o faço com uma arma apontada à cabeça.
Até isso é irrelevante. A vida é a morte a descansar, e
neste momento a morte está à porta, acordada, a reclamar o que
é seu de direito. És um puto grande, um grande puto com medo.
Enterneces-me, já disse, metes-me pena.
Anda cá, meu estúpido. Bastava ter-me pedido e eu podia ser tua.
Quem sabe se não seríamos o amor da vida um do outro. Tiveste
a ousadia de ir contra ti próprio, de não ter a coragem de seres
o que sentias. Arrependes-te agora do que não fizeste, matas-te com o
ácido das tuas mãos humanas.
Anda cá, meu anormal, homem parvo. Deita-te sobre mim para que te possa
abraçar, acolher no perdão sibilino que dou por dever de feitio.
Chora lágrimas de grosso sal sobre os meus seios, molha-me os mamilos
erectos e sente o meu corpo suado contra o teu. Sente o teu sexo a crescer contra
o meu ventre, as palpitações de um desejo normal, os carinhos
que te dou. Perdoo-te a violação do corpo.
Entra de novo dentro de mim, isso, diz-me que sempre me amaste, que perdeste
a cabeça, que a solidão te enferrujou a mente e te corroeu a razão.
Suplica uma resposta para a razão da minha partida, para o debandar das
tartarugas que suportam os elefantes que suportam o universo. A razão
é simples, fui para a terra em que as tartarugas se apoiavam. Por uma
razão qualquer de que já me não lembro.
Entra dentro de mim, sente o meu sexo húmido e escorregadio, a lubrificação
do teu sémen que tu confundes com o meu desejo. Mexe-me, toca-me, como
vês sou tua, é fácil. Queres o meu corpo, tem-lo.
Faz-me vir com a tua falta de jeito, com essa tesão anormal de quem se
reprimiu toda uma existência. Sente os meus espasmos. Agora sim, a lubricidade
dos nossos corpos também tem o meu sumo, o suor mistura-se partindo dos
dois corpos.
O medo impede-te de vir, não te preocupes, agarra-me com força,
abraça-me, chama-me mãe ou amor, tanto faz. Concentra-te, não
notes no meu braço esquerdo que te abandona e que se dirige serpenteante
para o revólver com que me fendeste pela primeira vez.
Sinto o teu descontrole, vem-te meu amor, amo-te agora também, para a
vida e para a morte. Tens-me, o meu corpo é teu, estamos finalmente juntos
ao fim de tantos anos. Abraça-me, dá-me beijos de morte no pescoço.
Os meus olhos estão largamente abertos, a minha mão dirige a morte
para o porto das tuas têmporas.
Com o teu primeiro espasmo, o primeiro jacto de esperma quente que sinto na
entrada do útero, rápido e forte, suspiro de satisfação
e lambo com a impressão digital o clitóris do revólver,
que se vem abundantemente para dentro da tua cabeça.
Podes ter o meu corpo. O meu espírito pertence a uma só pessoa,
nunca poderá ser teu.
Olho pela janela e a aurora começa a fender a treva, rósea como
o meu sexo sedento. Adormeço e acordo num sonho, no meio de um campo
de girassóis alucinados que se beijam freneticamente.