A Garganta da Serpente

Pablo Luz

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A arte pós-psicosurrealmodernélica

(Pablo Luz)

...porque a fascinação do vício atira um véu sobre a beleza moral,
e o movimento das paixões mina uma alma ingênua...
Sabedoria 4.12

Esse cheiro, ah esse cheiro!... não recordava de ainda ter um desses sabonetes aqui em casa, provavelmente está aqui endurecido há alguns meses, pois faz tempo que não uso esse banheiro... A última vez que senti essa confortável fragrância lavava meu rosto após a noite do último e impetuoso corte. Ainda agora sou tomado também pela deliciosa e tênue lembrança da primeira vez que pude sentir esse odor floral em um de meus demorados e demorados banhos de minha feérica puberdade... Nem a aparência desagradável do meu cabelo incomodava-me naqueles dias ignaros. Meu cabelo nunca ficou com um penteado que me agradasse, acho que devido ao volume nas laterais desproporcional à discreta, porém visível, calvície que apavora esse rosto "chupado" desde a juventude bem no centro da cabeça. Sempre gostei bem mais do formato oval e da imagem límpida desse espelho daqui dos fundos, mesmo nele não há acordo entre eu, meu cabelo enferrujado e o velho pente de madeira ofertado pela minha sogra ainda quando desfrutava dos laços matrimoniais. Boas lembranças...

Lembro dos meus primeiros fios de barba, pensava em um dia poder cultivar bigodes, cavanhaques, barbichas e usar todos aqueles apetrechos afiados que meu pai usava antes de ir para o chuveiro... Mal sabia do rosto sempre "sujo" que teria de suportar mesmo me barbeando três vezes ao dia, dos cortes inevitáveis e a irritação que deixa a área do meu pomo-de-adão feito papo de peru. Mas meu cavanhaque acabou mais popular que minhas tantas esculturas. Sim... minhas esculturas que por tantos anos em suas confecções, confortavam-me, expelindo todas minhas mágoas, cansaço e tristeza pelo desprezo e desamor que consumia os que me cercavam naqueles dias, pelas pontas dos meus amarelados dedos... Digo isso, pois quando expunha uma ou duas de minhas obras, sempre se ouvia o comentário "- Ah, essa é mais uma daquelas do da barbicha...!" E durante toda minha vida moldando rostos, corpos, e outras várias formas abstratas, até o dia de hoje só fui percebido e mesmo premiado uma só vez. "Ode a Transgressão",era o nome da obra em mármore que apresentava um homem de corpo inteiro de braços abertos com uma enorme satisfação no olhar e com queixo cínico... Cismaram que se tratava de um autorretrato!, pois pela alma de minha amada Liriel, não tinha intenção alguma que o cavanhaque que esculpi fosse visto como algo autorretratado, cultivava o cavanhaque fazia pouquíssimo tempo, isso quando já havia terminado todo o busto da estátua. Foi o único trabalho vendido também, o caríssimo amigo Augusto comprou-a por um preço que iguala ao último adjetivo... Colocou em sua riquíssima biblioteca (em todos os sentidos) para "comentar o que lia com o receptivo amigo", pois pelo menos em relação a escultura ele também tinha a mesma opinião do resto do mundo... Foi na mesma época quando decepei a falangeta do meu dedo mínimo. Nada a ver com a incompreensão sentida a respeito do que criava, mas havia um detalhe que à minha vista pertubava-me a ponto de ser possuído por um sentimento angustiante em relação ao mindinho da mão esquerda inacabado. Querendo ou não a estátua passou a representar e revelar às pessoas parte de minhas insatisfações e incúria, dando um estranhável sentido à obra, que representava até então somente o que a intitulava.

Já naquela época enquanto moldava, talhava, colava e minha alma a cada detalhe se dividia, deixando meu íntimo levemente tépido, possuindo alguma obra adornada pelos meus anseios, minha querida Liriel com seu lindo olhar observava cada movimento das espátulas ou dos meus tranquilos dedos. Era uma gata de pelagem bem alva com uma grande mancha negra tomando as costas como uma manta que se estendia até o rabo, o felino ou melhor, dos tantos seres que a natureza concede aos nossos privilegiados olhos com todas as suas cores e formas, aquele sem dúvida era o animal mais imponderavelmente encantador que já vi. Desde que apareceu em meu muro tirando um gostoso cochilo vespertino, sempre seduzia-me com seu olhar, às vezes em troca de sobejos, outras apenas pela companhia desse pálido escultor em seu atelier de fundo de quintal. Ela parecia julgar todo o tempo a sinceridade expressa no que eu esculpia ou moldava. Quando perdia os olhos do trabalho ou por pouco distraia-me ao retocar algum nariz ou arredondar os dedos, distanciando o pensamento do que concebia, ouvia-se o ranger dos dentes ou aquele miado ameaçador que me fazia retomar o espírito da obra no mesmo instante.

Era bem ali, no canto daquele canteiro, que minha Liriel se espreguiçava e passava o dia inteiro repousando até chegar a noite quando retomava os meus trabalhos no atelier.

Mirian, minha ex-mulher, achava tão estranho Liriel ter aparecido assim "do nada", e exercer tanta influência sobre minhas obras, que alimentava até um certo ciúme pela felina. Lembro-me como hoje do dia em que comecei a talhar aquele pedaço de madeira para esculpir o busto de uma jovem. Como deliciava-me ao lixar aquele rosto com detalhes e formas que por alguns momentos não havia nenhuma ponta de dúvida que aquela expressão séria abria os olhos e sorria ternamente. E aquelas formas arredondadas dos seios de mamilos arrebitados... Foi neles que encontrei meu infortúnio...! Pois enquanto lixava aqueles funestos bicos, Liriel observava cada movimento das lixas como que esperasse um leve vacilo de minhas intenções... Mirian então, aproximando-se da porta do atelier, chamou-me para o jantar. Olhei a estátua, observei cada detalhe do rosto de Mirian, eram idênticas em beleza, forma e expressão. Quando Mirian retirou-se do atelier, meus pensamentos guiaram-me aos utópicos anos de nossa juventude, dos primeiros beijos ao nosso maravilhoso enlace... continuava a lixar, dando os últimos retoques naqueles (agora mais do que nunca) nostálgicos seios.

Liriel espreguiçou-se, arrepiando toda sua pelagem e exibindo seus pequenos e afiados dentes com um bocejo sutil e com passos macabramente calculados aproximou-se e pulou vorazmente em minhas mãos, não só fazendo-me largar a lixa, mas derrubando o busto de madeira. Quando pus a estátua novamente no púlpito onde esculpia, Liriel já havia se retirado numa velocidade incrível. Peguei todas as lixas do chão, que com o alvoroço dela também haviam caído e voltei com os meus retoques. Só não havia percebido que a lixa que usava dessa vez era mais grossa do que a normalmente usada para fazer retoques bem mais delicados. Foi quando ao passar a lixa sobre o mamilo direito da estátua, vi esse se desfazendo e deixando minha linda jovem sem um dos bicos daqueles tão bem torneados seios.

Aquela noite foi maravilhosa. Os lábios de Mirian nunca estiveram tão carnudos e luxuriantemente adocicados, meu corpo por cima do dela flamejava. Ela, de início, parecia não entender todo aquele meu furor e incontrolável desejo lúbrico repentino, mas logo se deleitava em meus calorosos beijos por todo corpo como em nossas maravilhosas noites de núpcias. No auge de toda aquela sensualidade quimérica, com uma de minhas lâminas em mãos, sem hesitar, mutilei um de seus mamilos. Assim toda aquela beleza e graciosidade chegaram ao seu ápice. Nunca mais vi a Mirian, muito menos minha linda estátua que nem chegou a ser também uma obra perfeita por falta do acabamento em verniz.

***

Passaram mais rápido do que havia imaginado aqueles dias atrás daquelas grades. Aquele lugar não cheirava bem... Voltei a minha velha casa após todo aquele tempo sem esculpir (salvo por uma estatuetazinha em uma pedra-sabão doada por meu caríssimo amigo Augusto, quando ainda enjaulado), dirige-me ao empoeirado atelier. Ainda havia espátulas espalhadas pelo chão, algumas pedras e mármores nos cantos cobertos pela poeira, e coisas inacabadas e que, sabia eu, nunca tomariam forma sem a presença de Liriel observando-me.

Após alguns dias melancólicos e cinzas, vi um amanhecer belo e com sol ardendo num céu límpido de um azul tranquilo. Lá estava ela, sacudindo a pelagem coberta de folhas secas do canteiro, e com aquele olhar ainda mais profundo do que em outros tempos.

Dei-lhe um pedaço de bife fresco, e enquanto comia, minha mente era tomada por diversas formas, rostos e expressões que faziam minhas mãos retomarem a vontade de talhar, esculpir, moldar, dar vida a toda minha imaginação e alimentar minha alma descrente.

Assim voltei a esculpir, naquela época produzi meus melhores trabalhos. A cada tarde naquele atelier minhas estátuas, bustos e estatuetas tomavam mais vida, tomavam meu corpo e minha alma exauria...

E a cada distração que tornava uma obra magnificamente imperfeita, meu desmazelo perante essa vida neutral e sensabor que alguns insistiam em achar "arte" fazia com que partes mutiladas dos meus dedos, orelha, pernas e pés livrassem-me da vontade ridícula e néscia de ser.

Mas não resistiu muito tempo minha querida Liriel, foi definhando aos poucos, adoentada, rapidamente perdeu muito da magia aqueles incomparáveis olhos verdes. Resolvi então esculpi-la, eternizá-la em gesso, alvo como sua pelagem.

Junto à estatueta despedaçada ao muro, foi também embora minha doce Liriel...

Essa porta eternamente entreaberta do atelier não causa-me mais fascínio, estou limpo, tranquilo... Até meu cabelo, depois de tanto esforço, parece agora ter encontrado um ponto de equilíbrio entre o excesso e a falta dos fios de raízes já brancas e amareladas e pontas enferrujadas. E é neste sofá que minhas mãos levam à minha alma alívio, não sujas de barro, gesso ou serragem, mas através dessa vodka num copo de cristal, liso, sem detalhe algum. O eco da sala sem aquelas peças, mãos e olhares, não causa-me mais tremura.

Hoje à tarde recebi um presente anônimo. Era uma cabeça em barro muito fino, moldada sem a forma dos olhos, na face, na minha face...! Sim... era meu semblante, meu cavanhaque, que assim que retirei da caixa despedaçou-se completamente em minhas mãos, sobrando apenas uma terra fina entre meus dedos.

Estou limpo, tranquilo e daqui alguns poucos minutos estarei na casa do meu caríssimo amigo Augusto, que há de silenciar minhas mãos...

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