A Garganta da Serpente
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Sequência

(P. G. Vilas-Bôas Castro)

Depois do flagelo os sobreviventes vão pouco a pouco restabelecendo a normalidade. Reorganizam os lares como podem, voltam ao trabalho e à rotina em geral. Se preenchem os vácuos. Os que morreram se foram. Os outros têm uma vida para viver. A vida sempre continua, como Albert Camus nos faz lembrar em "A Peste".

Fui introduzido a esse axioma quando era criança. Ensinado pelo amigo de sempre. Com a sua experiência de homem maduro, me explicou e mostrou, com exemplos do cotidiano, que a morte de alguém não interrompe a vida dos demais. Como todos acabamos por aprender. Mas o meu amigo não me deu tempo de descobri-lo através da minha própria vivência. Com frequência me falava do assunto. Sem qualquer intenção definida, mas sim porque falava muito, a respeito de qualquer assunto, com todo mundo. Ele era assim, por temperamento. Muitas vezes, ao se referir à morte que para nós foi a mais dolorosa, repetia o verso de um tango argentino: "Seus olhos se cerraram e o mundo seguiu em frente..."

Não acerca da atitude do homem em face da perenidade da vida, mas sobre quase tudo o que é importante no campo da nossa conduta existencial, cresci e amadureci divergindo do meu amigo. Enquanto eu ia passando de menino a homem maduro e ele de homem maduro a velho, nossos desacordos foram multiplicando. Até a sua partida. Porém jamais deixamos de nos querer.

Um dia ele sofreu um acidente. A sua robustez física permitiu que resistisse umas duas semanas. Durante esse período conseguimos conversar muito pouco, já que ele passava longo tempo inconsciente. Não obstante chegou a me dizer que breve iria morrer.

Poucos dias depois do seu falecimento acordei uma noite e o vi no meu quarto. Estava sério mas tranquilo. Não se aproximou de mim. Olhamos um para o outro, sem nos falar. Imediatamente compreendi que tinha ido me ver pela última vez. Antes de desaparecer definitivamente. Voltei a dormir. A vida continuava, como ele mesmo me ensinara.

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