Comprei; então, o ventilador. Coloquei-o em cima da mesinha, mirando
para cama, olhando para mim. Tc,tc,tc, primeira potência. Vrum...
Levantei-me e o ventilador estava lá. Cantando Vrum ainda. Tc, tc, tc.
Fui pra faculdade e deixei tudo como estava. Voltei cansada, olhei o sol se
esvaindo pela varanda e voei pro quarto. O aparelho ainda estava lá,
na mesinha; só que, agora, olhando para o vão na porta de entrada,
bem na minha direção. Tc,tc, tá quente. Estudei até
tarde: o ventilador revolucionou a minha vida; antes, o calor não me
permitia pensar e, agora, eu varria a madrugada revendo a matéria do
curso de veterinária. Desde o primeiro dia, já não conseguia
me ver sem ele e a sua vacina contra a vagueação provocada pelo
calor, essa valsa enjoativa. Vrumm ....
As manhãs eram mais alegres com o compassado vento que me varava, sem
dor, o corpo e o acordar parecia mais leve diante da valva de ar fresco que
me envolvia toda. Vrummm...Segurava o lápis novo, ainda vasta vareta,
e com ele marcava a folha, desenvolvendo qualquer pesquisa ao som vago do ventilador.
Vacas em verdejantes várzeas, larvas, varonis veados, vespas, focas,
vermes, vertebrados, aves, vira-bostas, vira-latas, viroses, viscosas vísceras,
vitelas! Vrummmm...
O verão chegou e, junto a ele, todo o seu bafo inquietante. Vinguei-me
do tempo, criando uma estação só minha, na qual o bufar
era de alívio e ditado pelo "Mallory". Pedi licença
na faculdade para poder fazer todos os trabalhos em casa e, só ter de
voltar lá, para entregá-los. Passava as horas no quarto, num constante
dia de outono. Vrummmmm...Às vezes, era chamada para sair, ir a algum
lugar dito interessante; mas não achava mais divertido deixar o meu lar
de tensões rarefeitas para enfrentar um mundo explosivo e cheio de imprevistos.
Vrummmmm... Porque me desfaria da perfeição que havia atingido?
Vrummmmmmm... Porque me absteria do meu mundo arejado, simples, claro, fácil?
Vrummmmmmm...
Vrummmmmmmm... Hum! Que gostosos eram os ventos vespertinos, as manhãs
imersas no fanhoso som, as fragosas noites no não-silêncio gerado
por Ele! Vrummmmmmmmm... E os falcões, as varejeiras, as víboras,
os frangotes, as vibrissas, as vértebras cervicais, os cotovelos e as
falanges! Vrummmmmmmmmmm...
Vrummmmmmmmmmmm... o único que a contém. Vrummmmmmmm...O único.
A paz, o descanso, a fertilidade do nada. Vrummmmmm...Contém. vrummmmmm...
Então. Vrummm... Vêm! Vêm, vapor imenso, vapor viril que
me penetra a alma, preenchendo o vácuo deixado por tanta vacância.
Vêm e vapora tudo de dor que vir indo e vindo. Vêm e faz de mim
vaporosa e livre, como Você. Vrummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm...
Um dia Ele quebrou. Tc, tc e nada. Abandonou-me, largou-me! Vrumm.. Vrummm.
Cadê você? Volta! Humor vítreo, avestruz, fígado,
gavião, gaivota, ovo, incisivo inferior, vesícula biliar! Vrummmm....
Cadê? Cadê? Vrum... Ovário, focinho, ouvido, fíbula,
fiandeira, fêmur! E tão só e tão só... as
quatro horas que tive de deixar no conserto foram tecido para um infindável
vestido de sofrimento. Quando Ele voltou para mim, estava como que morta, uma
bactéria em período de latência. Meus membros doíam
como após forte tensão e a cabeça, em ebulição,
evaporava toda minha vida em uma ardente enxaqueca. Eu Lhe disse que não
me deixasse nunca mais, nunca! E Vrummm... E Vrummmm... E Vrummm....
Nossos dias voltaram ao normal depois da Sua moléstia e Ele nunca mais
adoeceu, pelo contrário, parecia cada vez mais forte e, às vezes,
até me dava medo. Medo da Sua imponência, da Sua voz de sérios
fricativos, da Sua constante atenção.
Há um ano que eu não a via. Havia se mudado para Recife, ia estudar
o mar, fazia Oceanografia. Era minha melhor amiga. Naquele instante, ela me
telefonou. Escutar a sua voz foi como que um milagre branco, o branco de quem
nada vê e, só assim, finalmente enxerga. Estava na cidade. Em êxtase,
minha artéria carótida, meu átrio esquerdo, minha aorta
ascendente! Íamos sair, então. Beber nossa amizade em grandes
goles de mamadeira com o bico alargado. Tc, tc, tc. Fui imediatamente.
Voltei claudicante, um veado baleado. E Ele estava lá, calado, em cima
do sofá, mirando a porta. Não me lembrava de tê-Lo posto
ali. Nem me lembrava mais Dele. Mas Ele me via como quem me despe a roupa do
espírito, informando quando urinei na cama pela última vez, em
que ano eu havia menstruado, quantas vezes eu havia quebrado a perna... Ele
me encarava e, dizia mudo, que eu lhe desse palavras. Tc, tc, tc. Vrummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm!
Ele rugiu, pétreo, imprecando: Vrummmmmm! Vrummmmm! Vrummm.....! A vodca,
que havia há pouco calcinado minha garganta, se transfigurou em diáfano
gelo, pedra no cano, impedindo o respiro de calma. Seu vento voraz varria em
volta e me batia forte como um espancamento invisível. Então,
meu corpo se rendeu. O sofá, as paredes, o tapete, tudo foi tingido de
negro. Minhas pernas caíram e eu fui levada com elas. As pálpebras,
fino resquício de pele, aos poucos, me privaram de ver o preto absoluto
e fecharam-se para a falta de espetáculo. Morri por uns instantes e o
Paraíso era de um branco fulgurante e eu não conseguia abrir os
olhos para vê-lo, pois o brilho excessivo amedrontou minhas pupilas.
Uma picada de agulha. O flanco sentiu, duro, o alfinete esquecido na blusa laranja
e uma gota do meu sangue rubro emergiu inocente como ovelha em sacrifício.
Ele me olhava por entre a vermelha faixa circular que percorria o Seu aro rígido
e girava manso agora; porém, estranhamente concentrado. Vrummmmmm. O
ar me parecia mais denso e meu corpo, uma massa eterna de torpor, um paralítico.
Vrummmm.... Inescapável. As coxas foram cedendo opressas e passivas.
Leve bigode imaturo, uma penugem, se aproximou, escandaloso!, do meu centro
e, em compassados arrepios, me foi arrancada qualquer forma de defesa. Vrum.
Vrum. Vrum. Aberta em flor, recebi, inerte, o suco vívido imaterial.
Os glóbulos vermelhos, em expansão, escorreram pelo sexo e o chão,
maculando o carpete branco. Minha boca semiaberta acumulava em grandes doses
a saliva quente e soltava mudos gemidos roubados diante da inefável pressão.
Em ebulição, a minha pele. Vrum. Vrum. Vrum. Pressão e
vazio! Pressão e vazio! Eu, inerme. Papoulas imensas irromperam do meu
ventre numa mórbida alegoria; da boca, o vômito vivo de ebúrneos
lírios escorrendo como lava vulcânica até os pés
expirando óleo; diante dos olhos, uma dança de martelos insones
indo e vindo. Vrum! Vrum! Vrum! Vrum! Oh! E uma luz. Puro delírio? Cinza.
Cinza, cinza e cinza. Tudo cinza. O Vai-e-vem já menos eficaz, mais tênue.
Eu ou ele? Minha íris cinza; a pupila cinza; a córnea, cinza;
cinzas, o humor vítreo e o corpo ciliar. Cinza, agora, a minha alma.
Cinza, essa nova criatura, que, de tão velha, se fortificou para vir,
hoje, romper meu peito e pular pra fora, tomando posse. Nas minhas mãos
está a espada agora. Nas mãos desse ser-eu, a espada extrema.
Cumpri o meu papel. A arma voltou à imaterialidade. Sou livre agora.
As papoulas murcharam até ficarem invisíveis (tão pequenas!?),
os lírios fugiram para um não lugar, junto com os martelos, e
o óleo sumiu. Ele permaneceu lá, mas já não era
Ele, era apenas ele, um treco qualquer, uma lembrança apenas. O sangue
manchou o carpete de forma irreversível.