A Garganta da Serpente
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Amor, meus verões de menina, minha menina Lispector...

(Penélope)

A cidade

Havia algo fresco no chão daquela cidade, que apesar de antiga, e se fosse mulher ou homem, trôpega, guardava um odor gostoso de sangue fresco, como se fosse tinta fresca nas portas da casas.
Sinto falta dela todos os dias, da cidade, que se fosse mulher ou homem, faria falta pelos seus toques, seus beijos tenros, que se faziam existir através da poeira. A noite que silenciosa inspirava sonhos obscuros e pecaminosos, a lua muito evidente no céu, para os lobos famintos, e o ar...O ar que, ele mesmo como um homem, sujeitava as moças, e as fazia abrir as pernas facilmente.
E foi assim, nesta cidade, sob a lua inexata, sob a custodia do ar cheiroso que exalavam as flores dos flamboyants que eu senti que o vento que vinha do Nordeste me exultava, me violava, vagarosamente, deliciosamente...

As descobertas

Não morava na cidade... Passava lá os verões, na casa dos meus avós.
Considero que naquela cidade cresci, pois, todos os processos de transição, como dizia o meu pai da vida adolescente, vivi lá.
Não me lembro direito em que verão, mas, pois bem, no verão que permeava os meus quinze ou dezesseis anos, vivi lá uma das coisas mais fantásticas que uma mulher pode experimentar, vi com toda a intensidade dos meus sentimentos ainda infantis, o dito cujo de que tanto falam os homens há muitos séculos... O amor!

Dele

Sou Dele, de alguma maneira, ainda hoje, pois se existe algum homem com a graça e os olhos daquele homem, me expliquem onde ele está, me emprestem um pouco do ar que saia da boca deste homem, me deem o olhar daquela criatura, que feroz, me conduziu ao altar das noivas mortas, mortas de amor.
Ele era tipicamente lindo, exalava algo que não posso expressar com palavras... Cheirava a romã, uma coisa inebriante dentro daqueles olhos verdes, que não sei se pela inexperiência de menina, se pela força do instinto, me fazia querer venerá-lo e para ele criar uma nação, cujo nome que destinasse seu povo fosse o meu, pois seria eu, sua única súdita fiel. E nunca, nesta nação, pronunciaria o nome de Deus, mas apenas o dele, em lugar deste.

Do dia.

Inesperadamente chovia, e muito, durante aquele dia, e o dia todo.
O céu tinha um negro que me entorpecia os olhos, um negro e um vento forte, que me entorpecia os sentidos...
Sentia-me como a duzentos anos atrás, que como gosto de sentir ainda hoje, me conduzia a minha face obscura de desejos comuns com as mulheres, que há duzentos anos, compartilhavam com todos os tempos as dores dos sentimentos d'amor trovadoresco.
No dia, bendito dia, eu tinha os pés e mãos atados pelo desejo preso, pela vontade súbita e pelas coisas fluidas.
Senti-me puro presente, um presente que se encaixava no passado, com seus cheiros e sensações de deriva, no tempo, no espaço.
Tudo isto que senti não durou mais de 4 segundos.
Ainda tinha o dia inteiro pela frente.

Clarice, o interlúdio.

Se existe algo no mundo que me leia profundamente e que mate sem dó, metade das minhas fomes, este isto é Clarice.
Água Viva, minha Felicidade Instantânea, me tranquilizou diante daquele dia, que não sabia eu à época, era um grande monstro, me deu a luz da hora de uma estrela.
Só me acalmo quando estou com ela, esta Lispector, e respirava fundo, e a lia, e a sentia, e a queria... Marcou-me ter sido Lispector minha tutora, minha instrutora das artes de sofrer. (sempre tive uma tendência para sofrer com júbilo... mas talvez isso remeta a uma outra literatura de que me recordo com prazer).
Aquela mulher e sua paixão, seu coração selvagem, esteve em minha vida como uma professora, a me ensinar que as coisas mais deliciosas estão acompanhadas de espiões secretos, amigos obscuros a que chamamos de dor.

A noite.

A noite trazia os ventos bons do Nordeste, trazia os cheiros empoeirados e os laquês das mulheres empapuçadas de seus maridos.
A noite trazia o cheiro de romã, os olhos verdes e os cabelos arredios, que sem explicação cheiravam a vento, sem explicação me apaixonaram.

Quando o vi.

Quando o vi, não posso explicar, pois, quando o vi, perdi as veias no sangue, digo, o sangue nas veias, meu peito estava três vezes maior, alguma coisa incomodava no útero... Alguma coisa diretamente ligada à alma, pelo útero, me incomodava.
Sabia ser, quando o vi, ser ele o dono do sangue fresco, dos ventos maliciosos, e dos cavalos todos do mundo, e das épocas todas do mundo, ele era meu senhor e me transportaria para dali a duzentos anos atrás...
Quando o vi fui em sua direção, hipnotizada pela sua beleza, e o vi mais de perto e lhe disse um "oi".
Toda esta sequência de coisas e sentimentos não durou mais que 6 segundos.

A conversa dele.

Que boca... Que boca linda tinha o meu senhor dos cavalos.
Ele falava da ciência e dos campos, falava das poesias do dia e da noite.
Da conversa dele, me lembro perplexa, que perplexa estava.
Clarice, o motivo.

Foi quando ele, meu senhor e homem me perguntou (sim, a mim, diretamente), e quanto a mim, de que gostava eu, que poesias ou coisas lidas me apeteciam.
Lispector!
Foi o que saiu da minha boca naquele instante e foi o que no meu ar pesava. A lembrança de Clarice, do amor, da delícia e da consciência inconsciente que tinha naquele momento, da principal lição da minha professora Clarice.
Não reparei, se o amor que sentia, trazia com ele convidados, para o fim da festa.

O convite.

Foi assim, diante do vento, do mar e dos flamboyants, diante de Clarice, diante do meu peito, e das coisas infantis que permeavam meu ser, que ele, o príncipe, me convidou a estar com ele por alguns momentos, e seus dedos me tocaram suaves à face. E ele me olhou, e sorriu, e os ventos travessos me levantaram as saias, e meu ar ofegou, e sob o algo estranho que tinha a Lua aquela noite, sob o impulso Maia do sacrifício, me entreguei ao meu Deus.
E meu corpo se traduziu em natura, pois, eram meus olhos rios, e minha alma cor.
Toda esta sequência de sentimentos e ações duram todos os segundos da minha vida, no relógio em que olha as horas minh'alma...

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