A Garganta da Serpente
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Nos primórdios da era virtual

(Olympia Salete Rodrigues)

Esta é uma história fascinante, acontecida quando o virtual apenas engatinhava. A experiência foi vivida por Cândida. Ah, como ela merece esse nome! Era mesmo uma pessoa cândida, pura, acreditava nas pessoas, na vida, no amor. Foram quase dois anos de sua vida, numa altura em que esse tempo valia muito, muito mais que um simples tempo. Uma fase em que o acúmulo de experiências se transformara em sabedoria pura, descontados os naturais momentos de bobeira e de descontração...

Cândida conheceu, através da Net recém-nascida, Bruno, um jovem de papo interessante. Começava uma amizade bonita. Mensagem vai, mensagem vem, em pouco tempo ficaram íntimos, falavam de qualquer assunto, ele ainda tímido, ela isenta de preconceitos ou moralismos. Ele era jovem, não tão jovem como aqueles garotos ardentes que nunca negam fogo. Mas o era o suficiente para excitar o corpo e a mente de uma mulher madura que não esperava mais que cabelos brancos para acariciar.

Houve um tempo do relacionamento em que o rapaz até rejuvenesceu e foi brasa pura. Tudo no virtual, sim senhor! Muita quentura nada discreta em e-mails, até passarem os chats. Fazia gosto a ambos escrever, ler, vibrar e entesar... Maiúsculas se multiplicavam, significando gritos de prazer. A cada dia eles se mostravam e sabiam mais um do outro. E o que parecia apenas ser gulodice física foi se alastrando e, pelos caminhos dos dois corpos acesos, foi tomando a alma e virando amor. Cândida foi sentindo isso e segurando a onda que se tornava avassaladora. Ela tinha saído, quando conheceu Bruno, de um caso de amor complicado. Ele sabia e até a apoiou, ajudando a segurar a barra. Ela não pretendia entrar em outro, estava muito machucada, pensara em se aposentar do amor. E tinha o problema de Bruno não querer aparecer para ninguém, ela não podia falar dele aos amigos, o que a constrangia e estranhava.

Até que um dia Bruno, num chat, explodiu. Pediu desculpas, disse que se excedeu e admitiu que aquilo era amor. Isso a deixou impressionada e despertou seu senso de responsabilidade, além de seu instinto maternal - neste caso - incestuoso... rs...

A essa altura dos acontecimentos ela percebera que ele usava como nick um termo em língua estrangeira que queria dizer "lobo". Em nossa língua ele pode ser traduzido por "conquistador" ou "Don Juan". Como as pessoas se traem! O fraco tentando se esconder na pele de um lobo... O frustrado dando de conquistador... Isso a fustigou, pois ele parecia muito mais - ao menos diante dela - como cordeiro...

Prosseguiram até que ela sentiu que fora atingida pela flechinha danada do cupido. Pensou, repensou, sentiu, a princípio meio a contragosto, que estava mesmo amando. Como era seu natural, parou, se examinou e resolveu topar mais essa parada.

Ele exultou. Assumiram o compromisso. E foi tudo lindo, muito lindo! Tudo bem esclarecido, muito verdadeiro, transparente. Bruno mantinha seus relacionamentos no plano real. Cândida mantinha os dela. Claro: ambos concordavam que não dá para viver apenas com orgasmos virtuais. Mas ela, romântica e leal que é, resolveu contatar os namorados virtuais e reais que mantinha paralelamente e declarar que resolvera, pela primeira vez na vida, ser uma mulher fiel, pois estava verdadeiramente amando um homem. Comunicou isso a Bruno, deixou claro que era essa a sua vontade e não esperava o mesmo dele. Sentiu que ele aceitou com certa euforia aquela proposta que o deixava inteiramente livre.

Prosseguiram no romance, cada vez mais apaixonados. Os e-mails não eram mais tão excitantes. Os chats foram esfriando aos poucos, mas aconteciam semanalmente, numa rotina que não agradava a Cândida porque nunca gostara de rotina no amor. Foi vendo, aos poucos, o quanto ele era afeito a rotinas e se submeteu. E, é claro, toda rotina enfastia. Quando percebeu, nem tinham mais tanto interesse no lado físico do amor. Ele, mal entrava no chat, já dizia: "não vai dar para transar por que..." - e lá vinham as desculpas quase sempre pouco convincentes. Ela às vezes reclamava, mas sem ênfase ou convicção. Era a fase de se conhecerem melhor, se aprofundarem. Ele levou isso a sério, mas acabou por mostrar outro lado: um novo sujeito, cheio de fraquezas que chegavam a ser falhas de caráter, que soube esconder num arremedo de autoritarismo. Ela tentou contornar, passou a ele suas experiências, procurou levá-lo a reflexões importantes. Nada conseguia, ele se esquivava. O lobo era mesmo um cordeiro de todo o mundo: família, patrão, até mesmo de uma equipe que ele deveria liderar e não liderava. E, para espanto de Cândida, era um cordeiro até para uma amiguinha de infância que o encontrava todos os finais de semana para satisfazer a fome de fêmeas que ele não escondia. Ela tinha um ciúme doentio e ele tinha um medo infantil desse ciúme. E assim Cândida foi tomando contato com seu lado criança (no mau sentido), com sua covardia, com seu pavor absurdo de tudo. Aliás, esses aspectos de sua personalidade ele assumia e não queria mudar, por mais que ela tentasse, principalmente quando aflorara nela o lado mãe...

Em meio a essas descobertas, Cândida atinou com um novo e triste aspecto: a hipocondria de Bruno. A princípio ela acolhia suas queixas com disposição. Conversava a respeito, pedia notícias, discutia tratamentos que o médico lhe passava. Foi seu erro. Chegou ao ponto em que sua correspondência podia ser comparada a uma antessala de consultório médico, com um bando de comadres contando cada uma sua lista de mazelas: gripes, tosses, enjoos, diarreias, dores-de-cabeça e de corpo inteiro. Cândida, que sofria também dores pesadas, deixou de comentá-las definitivamente. Aliás, nem adiantava comentar, pois ele pouquíssimas vezes lhe dera atenção. Então ela percebeu que, além de mãe, tinha virado enfermeira e babá. Ele próprio chegou a nomeá-la "enfermeira titular"... As diarreias todas chegavam a ela ininterruptamente... Ela cansou de dizer: "meu bem, chá de folha de goiabeira..." Que nada!, ele não seguia sua indicação, pois tinha que preservar sua hipocondria. Ela me segredou que tinha a impressão de que, se passasse a diarreia, ele morreria de tristeza... rs... E foi suportando isso com a maior paciência, em nome do amor que lhe dedicava e que acreditava ser partilhado por ele. E dizia, brincando: "só não cheguei ao extremo de limpar a bundinha dele...!!!"

O leitor deve estar enfastiado e perguntando: o sexo, onde ficou o sexo?

Desculpem. Quando Cândida acordou, sexo só existia em suas reflexões e em seus ataques de romantismo que, aliás, não encontravam eco nele. Ele apenas disse uma vez: "Gosto de seus ataques de romantismo." Era ele mesmo!, não via mais que o próprio umbigo. Em matéria de sexo, o lobo virou o mais manso dos cordeirinhos... Mas continuou repetindo incansavelmente que a amava e a adorava...

Tentemos chegar ao fim...

A saúde de Cândida foi ficando cada vez mais comprometida. Pediu muitas vezes que fossem a um chat para falar disso. A cada semana entravam no chat e ele dizia que não queria falar nada sério, queria brincar apenas. Até que concordou, atencioso e magnânimo... Falaram por três horas. Ela disse tudo, com pontos e vírgulas. Acabou falando no desejo de suicídio. Ele se enfureceu, pôs-se a chorar (isso ele escreveu, não pode ser provado) e acabou ficando muito bravo, mas sempre declarando seu irrestrito amor. Ela, que o conhecia tão bem, viu logo que ele era incapaz de empatia. De fato, ele era um insensível. Naquele dia ficou certo que viria vê-la, o que prometera há muito tempo. Ficou claro que assumia ali um sentimento de culpa.

Desde então ela passou a falar dessa vinda com frequência, mas ele não tocava mais no assunto. Aproximando-se a data, cobrou. Ele confirmou o mês e, sempre impreciso, disse "no começo do mês". Nova cobrança de Cândida, sempre procurando ser discreta. Veio uma desculpa e... sucessivamente, um volume inacreditável de desculpas. Ela esperava paciente. Enquanto isso, preparava a grande festa de sua chegada. Decorava a casa, arrumava e limpava tudo, sempre excedendo seus limites, mas com prazer e muito amor. E as desculpas se multiplicavam: uma série de problemas de trabalho, um sem número de doenças diversas. Até que, no meio do mês, deu o ultimato. Valentemente ele marcou um telefonema.

No telefonema, o desastre. Começou anunciando que acontecera algo que mudaria sua vida. Em seguida, sem preparação nenhuma, declarou que a namoradinha que o visitava semanalmente engravidara e ele tinha que assumir aquela criança que tanto desejava (algo que ele nunca informara) e que era um "milagre da vida"... (rs... essa informação me fez rir, pois sempre pensei que uma criança não passava do encontro de um espermatozóide com um óvulo...) No momento seguinte ele disse que não iria mais ao compromisso com Cândida... chegou a declarar que tinha medo de que ela se matasse... que precisava de dinheiro (ah, era o dinheiro da passagem...) e de tempo para assumir tudo aquilo... Claro que, no meio do choque, Cândida ficou comovida além de muito puta da vida... Sem parar de chorar, pensou em tudo o que amara e fizera por esse amor, no sonho que ele matava tão cruelmente. Ambos em prantos, desligaram.

Se o leitor está rindo dessa fatalidade (estourar tudo isso à véspera da viagem, hehehe!) e se não quer acreditar, fique à vontade, pois Cândida não acredita também, assim como todos os seus amigos. Ela admite que foi tolerante e até simplória no decorrer desse relacionamento, mas não chegou ao ponto de cair nessa conversa com tantas desculpas com cara de mentiras deslavadas. E, se for verdade a gravidez, foi o pobre do Bruno que caiu numa armadilha, pois a namoradinha é ciumenta demais e todos sabemos do que é capaz uma mulher ciumenta.

O filho de uma amiga disse: "A mulher tem o útero." Grande verdade! mulher sem caráter negocia qualquer coisa a partir de seu útero. E o homem, na maioria das vezes, cai feito um patinho. Ah, outro aviso: ameaçar suicídio também é uma jogada que dá certo. Apenas advirto que Cândida falava sério quando declarou pensar nisso. Homens, estejam alertas! vocês não são tão fortes como pensam... Qualquer um pode cair... até um "lobo" caiu!

Na verdade, quem caiu no conto, neste caso, foi Cândida. O que mostra que somos todos vulneráveis nas mãos de pessoas sem escrúpulos. Mas a dignidade de Cândida ficou intacta, pois ela não aceitou a proposta de Bruno de "ir levando" a situação como estava e, muito menos, aceitou a vergonhosa proposta de receber dinheiro dele para ressarci-la dos gastos com que arcou sozinha para recebê-lo. Ela fez tudo por amor e seu amor, com certeza, não estava e nunca estará à venda.

Bem, o final dessa história não é bem definido. Bruno desapareceu, talvez minado por sua própria e mesquinha covardia. Cândida partiu imediatamente para gozar a vida que ainda lhe restava: sua libido, que se aninhava, ancha e fiel, no meio de suas pernas. Partiu para o prazer, como fizera desde sempre. Levou com ela o amor que passou mas não se acabou. Ela sempre dizia: "Abrir as pernas é uma coisa, é circunstancial. Amar é bem outra, é ser eterna." A decoração da famosa varanda ficou documentada em lindas fotos. Estas estão em meu poder. A dor de Cândida ficou gravada para sempre em mim e hoje resolvi contá-la, talvez a título de um triste alerta sobre a sordidez do ser humano e, paralelamente, cantar a grandeza imensurável do amor e de quem sabe amar como ela sabe e como Bruno jamais saberá...

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