Abriu os olhos antes do despertador porque há anos não dependia
de relógios para nada. Jamais perdera a hora. A única qualidade
metódica que cultivava, embora fosse completamente involuntária,
ou melhor, inconsciente, porque seu desejo real era o de controlar o tempo.
Levantou-se, foi ao banheiro, urinou, lavou as mãos, escovou os dentes.
Entrou no quarto para sacudir os filhos. Sua mãe se orgulhava de nunca
haver acordado criança para ir à escola, de jamais ter preparado
café-da-manhã para filho antes do colégio. Em criança,
na época em que começou a estudar de manhã, fazia seu próprio
café e ia chamar os pais. Estava acordando gente de manhã há
mais de trinta anos.
Os meninos se levantaram resmungando. Abriu a água, entrou no banho,
lembrou-se que não havia ligado o gás. Xingando, tomou uma ducha
gelada, rapidinho para não resfriar. Abriu as portas do armário
e postou-se em frente às camisas. O céu estava azul lá
fora. Dia de camisa azul-clara, calça azul-marinho, meias escuras, mocassim
preto. Pasta, paletó escuro, desodorante, perfume, a empregada já
lhe entregava o jornal. Os meninos disputavam o mesmo casaco. Maldita a ideia
de matricular as crianças em colégio sem uniforme. Gastando roupa
e tempo à toa. Tempo. Ninguém ia ter tempo para tomar café.
Engoliu o seu, deixou dinheiro para as compras e a passagem, empurrou biscoitos
dentro das mochilas dos guris, desceram a escada aos trambolhões.
- Vocês tomaram alguma coisa, comeram um pedaço de pão?
- Não dá tempo, você chama a gente muito tarde.
- Como muito tarde? Chamei primeiro às 6 e 15, depois às 6 e meia.
Vocês é que se atrasam todos os dias. São muito enrolados.
- Olha quem fala!
- Olha o abuso... Olha o atrevimento...
- Você está parecendo um pássaro azul. Uma arara azul.
- Há-há-há a-ra-ra, a-ra-ra, a-ra-ra!!!!
- Será que vocês podem parar de gritar enquanto eu dirijo?
- Ai, que nervosismo!!! Que estresse!!!!
- Há-há-há a-ra-ra, a-ra-ra, a-ra-ra!!!!
- Ô, gente, olha o trânsito...
- Há-há-há a-ra-ra, a-ra-ra, a-ra-ra!!!!
Parou na frente do colégio. Os meninos se esticaram para os beijos de
despedida. Beijos que cada vez mais ficavam escassos. Pulando, os três
atravessaram o portão. Como podiam passar em poucos segundos de um estado
catatônico para outra disposição completamente diversa,
saltitantes como cachorrinhos?
Chegaria tarde ao trabalho. O trânsito, amarrado, embora ainda fosse cedo.
Deixou o celular no viva-voz, enquanto aguardava o telefonema da chefe. Atrasou,
mas não tardou.
- Di, amor, sou eu! Aonde você está?
- A caminho. No carro. Dirigindo.
- Não se atrase, pelo amor de Deus! Preciso de você lá porque
o Carlos Alberto vai querer ver o projeto bem cedo.
- Aonde você está?
- Vou demorar. Tenho dentista em Niterói. Mas o importante é que
alguém da equipe esteja lá para se apresentar ao Carlos Alberto.
- O alguém da vez sou eu?
- É, amor, é você, sim! Mas vai lá e faz bonito,
confio em você.
No estacionamento não havia vagas. O prestígio andava alto com
os manobristas. Conseguiu parar o carro na parte VIP, "no esquema, amizade,
no esquema", seguindo indicações do mais inchado dos manobristas.
Se aquele coitado não tivesse emprego ali, estaria nas ruas, bebendo,
jogado na sarjeta. Comprara um pote de mel que ele vendia e conseguira o passaporte
do "esquema": estacionar na área VIP pagando tarifa da classe
econômica.
Ao caminhar até o escritório, o sol se escondera por trás
de nuvens claras. O tempo virava, como todos os dias. Ainda bem, não
iria sentir calor. Nem frio.