Faltam R$ 60 mil em minha vida ou uns vinte mil dólares, mais ou menos.
Eu não sei mais a cotação do dólar, sei apenas que
em meu nome, realmente, só tenho contas. O carro ficou em nome de meu
pai, que já morreu e então é carro de um fantasma, o que
leva a uma situação irreversível: não posso vender
o veículo, pois não abri inventário só por causa
do carro. O apartamento está em nome de uma mulher que desconheço,
a primeira proprietária do imóvel, que o vendeu à maluca
que me vendeu. Sem registrar nada em cartório, só com papéis
sem grande valor legal e muita boa vontade.
Meus filhos têm o nome do pai. O meu entrou no meio. Eles também
têm a cara do pai.
Então, em meu nome estão as contas. E as dívidas. Só.
Em meu nome estão as responsabilidades também, mas não
dou conta delas. Nem das contas.
Já tentei mudar e pintar o cabelo de vermelho. Fiquei parecendo o Bozo,
o Ronald McDonald. Depois da burrada que fiz sozinha, em frente ao espelhinho
do banheiro, corri a um cabeleireiro e tingiram meu cabelo de castanho avermelhado.
Paguei com cheque sem fundos. Quer dizer, ficou sem fundos porque ele custou
TAAAAAnto a ser depositado que, quando entrou na conta, já estava sem
dinheiro. Foi um inferno, reapresentaram e ainda não tinha fundos, meu
nome foi pro Banco Central pela quarta ou quinta vez. E aí, resgatei
o cheque, paguei em dinheiro, fui ao Banco, escrevi uma cartinha de próprio
punho ao Banco Central, fiquei amiga do gerente e comecei a tirar um monte de
empréstimos.
Num mês eu pago diversas contas e deixo várias sem pagar. Tem umas
que não posso atrasar nunca. Condomínio, jamais, ou me tomam o
apartamento. Se tomarem, vai ser muito engraçado, porque está
tudo no nome da outra mulher, acho que já morreu também, quem
vai ficar com ele? A mulher não tinha herdeiros.
Mas eu sei quem quer minha casa. O síndico. Ele tem o maior olho, maior
olho grande mesmo, no meu apartamento. Sempre dá um jeitinho de entrar
lá em casa. E as pimenteiras da sala secam depois das visitas dele. Ele
quer ver se eu fiz reforma, como está a reforma, como estão as
paredes.
O apartamento está na mesma situação irreversível
do carro. Não posso mexer em nada porque não tenho como regularizar
a situação legal dele.
Antigamente, eu não era assim. Se atrasava o pagamento de uma conta,
porque havia esquecido de ir ao banco, corria lá e, enquanto estava pagando,
dizia ao caixa, como quem não quer nada: "A gente viaja e deixa
as contas pra empregada pagar, mas essa gente... ". Os caixas nunca falavam
nada, às vezes me olhavam de soslaio, daquele jeito de quem sabe que
está ouvindo uma mentira, uma desculpa esfarrapada.
E o carro, então? Tudo pago direitinho, multas, impostos, nada atrasado.
Jamais subornei guarda, jamais. Até hoje, isso continua assim, não
me vi em situação de subornar guarda. Na verdade, me vi, sim.
Fui parada numa blitz, não tinha documentos atualizados. O guarda ia
levar meu carro. Chorei, mas aceitei o destino. Era o fim da minha longa convivência
com o carro. Não foi. O guarda se comoveu com minhas lágrimas
discretas. Disse que a blitz tinha um sentido não apenas repressivo,
mas educativo. Falou para eu regularizar a documentação do carro.
Meus filhos já estavam tirando a cadeira de praia da mala do carro. Guardamos
tudo, fechamos a mala, continuei chorando e saímos dali. Nunca arrumei
a documentação do carro.
Chorei porque fiquei emocionada, sim, mas também porque sabia que homem
não resiste a lágrimas. Sempre dá certo. Agora eu torço
pra não pegar nenhuma blitz. De noite, eles não param a gente,
porque veem que é mulher e mulher fica histérica em blitz.
Mas de dia, eles querem extorquir e eu não vou dar dinheiro pra vagabundo
ladrão, não.
Mas com vinte mil dólares na minha conta eu pagava os impostos atrasados,
o condomínio atrasado, quitava os empréstimos e ainda botava o
apartamento no meu nome.
Ou então, pintava o cabelo de preto azulado, ia para Roma sem filhos,
sem responsabilidades, sem o síndico, sem as contas. Igual ao Cacciola.