" ...talvez houvesse alguma chance...Que chance?" - dizia a última
linha do livro de Simone de Beauvoir que acabara de ler. Alberta, enrolada a
seus pés, pacientemente aguardava o momento em que Beatriz lhe perguntaria
algo que não conseguiria responder. Finalmente: "Que chance, Alberta?"
- e Beatriz acariciava seu dorso, inconsolável. Alberta olhava-a firmemente,
tentando transmitir-lhe tudo o que sentia, mas nunca soube se fora compreendida.
E esse era o sinal entre as duas. O sinal que a vida continuava para Beatriz
e que era hora de alimentar-se, para Alberta.
Dirigiu-se à cozinha, colocou ração no pratinho enquanto
Alberta, esfregando o rabo entre suas pernas, demonstrava seu contentamento.
Para Alberta, entretanto, esse momento era triste. Ela podia perceber a dor
nos olhos de Beatriz e fazer nada a respeito. Injusta a vida das gatas, com
tantas limitações! Então, Alberta comia delicadamente sua
porção.
Beatriz olhou-se no espelho e encontrou uma estranha, tal era a disparidade
entre o que via e o que sentia. Eram três naquela casa: ela, Alberta e
a estranha do espelho. Não, eram quatro: havia ainda aquela que falava
com sua voz mas que Beatriz não reconhecia. E aquela casa não
era de ninguém, de nenhuma delas.
Alberta, silenciosamente, observava Beatriz ao espelho. O que pensaria? Jamais
entenderia esse ritual estranho, essas cores esquisitas que emanavam de Beatriz
quando ela estava assim, absorta em pensamentos. Questionava-se se devia fazer
algum gesto, angustiava-se. Para ela, Alberta, a existência era algo muito
simples, muito claro, um desenrolar bonito de dias e noites. Por isso Alberta
não chorava. Resolvida a trazer Beatriz ao mundo real, Alberta espreguiçou-se
lentamente. Beatriz olhou, e lágrimas caíram de seus olhos.
- Que chance Alberta? Gostaria de ser você, de ver o mundo com os seus
olhos de gata, de estar feliz apenas por andar pelos muros ou dormir numa almofada.
"Novamente a pergunta misteriosa" - pensou Alberta. Se ela soubesse
quão pouco pode ser uma gata! Não, Beatriz, não queira
ser uma gata. Você não vê como sofro? O simples fato de não
poder falar-lhe causa-me enorme desgosto! Beatriz, olhe para mim e perceba as
possibilidades que me foram negadas, a restrição em que me encontro...
Você tem chance, Beatriz. E olhou demoradamente para ela, esperando que
ela a ouvisse.
- Fico espantada quando me olha assim, Alberta... e enxugou as lágrimas.
Você parece ler a minha alma, por isso gostaria de ser você! Beatriz
abaixou-se para pegar a gata no colo e, sem sequer pensar o constrangimento
que era para Alberta ser carregada, levou-a de novo à sala. E Alberta,
por compaixão, mais uma vez deixou estar, ainda que odiasse ser conduzida
para onde não queria ir. Ela sabia que era dessa forma que Beatriz demonstrava
seu amor e resignava-se.
Beatriz, inundada pelo afeto que sentia, depositava Alberta na almofada. "Enquanto
estivermos juntas, Alberta, eu terei alguma chance..." Mas, que chance?
(Abril de 2002, domingo 28)