A temperatura amena aquece com tímidos raios de sol a pacata cidade
interiorana de Minas que amanhecera agitada, sob o alarido dos pássaros
festejando felizes o inicio de mais um ano. Primeiro de janeiro e posse dos
edis na câmara municipal e do Prefeito e vice na Prefeitura, os eleitores
também sentem- se empossados. O povo vive na ilusão de que seus
representantes cumprirão as promessas da campanha. Tudo é festa.
São poucas as pessoas que conhecem os obscuros bastidores da política,
reduzida parcela que opta por esse caminho não se enlameia no submundo
comandado por homens ávidos pelo poder e maquiavelicamente inescrupulosos
que destroem os opositores e manipulam os que estão à sua volta.
A maioria dos vereadores meses antes de empossados já conspira pela Presidência
da Câmara. Reúnem-se às escondidas, conjecturam e a votação
verdadeira é realizada na calada da noite anterior regada a vinho e whisky
importados e muita falta de caráter. No dia seguinte realizam uma solenidade
teatral, um engodo para distrair a população local. O interessante
para os políticos, ou seja, os cargos, o erário a ser gasto e
distribuído entre os que votaram a favor e a retaliação
contra quem foi oposição é decidido às escuras.
Se a politicagem se resumisse nisso, o povo provinciano daquele lugar talvez
perdoasse os bandidos eleitos, pois corre solto o bordão "ROUBA,
MAS FAZ", quando os eleitores defendem os corruptos, mas existe muita coisa
camuflada, pactos demoníacos, sessões macabras para que o poder
possa continuar nas mãos de um mesmo grupo de pessoas.
O PRESIDENTE DA CAMARA, novo na política, durante a campanha eleitoral
mentia dizendo que seu ideal é a criação de um lugar com
oportunidades igualitárias para todos. Sempre fora um homem mulherengo
e mau caráter, mas bem visto socialmente por causa da profissão
e do dinheiro. Em casa homem bruto com a mulher, que sempre o apoia em
todas as decisões, por considerar o matrimônio um sacramento que
somente será desfeito com a morte, sofre calada as agruras do casamento,
aceita o mau comportamento do companheiro rezando aos céus para que um
dia ele volte a ser o rapaz agradável e solícito da época
de namoro, mas essa probabilidade, mesmo nada sendo impossível, torna-se
bastante remota porque ele é violento com os filhos e um déspota
incorrigível. Ao ouvir seu nome aclamado pelo ex presidente, seu semblante
é de pura satisfação, agora comandará a Casa de
Leis, (mas não com mãos de ferro como comanda sua própria
casa e sua família), enfatizou no seu discurso de posse que os trabalhos
legislativos durante a sua gestão serão pautados na ética
e na democracia. A esposa ouviu seu discurso de cabeça baixa, pensando
que gostaria muito que fosse verdadeiro, mas sabia que ele se mostrava satisfeito
porque parte do orçamento ficará em suas mãos, e seus projetos
são de cunho pessoal, importantes apenas para ele, pois se resumem em
gastar com gosto a gorda verba municipal, com mulheres, bebidas e tantas outras
coisas que o dinheiro compra e desvirtua. Dos legisladores três são
manipulados pelos demais que formam a mesa diretora, sempre composta por eles
mesmos que se revezam a cada nova eleição, mudando apenas os cargos
ocupados.
Havia oposição apenas de fachada, os projetos são discutidos
na sala do prefeito, enquanto tomam cafezinho e agendam as orgias. O ditado
que diz cada povo tem o governo que merece talvez não se aplicasse àquela
população ignorante, seduzida pelo brilho de ricos que governam
pobres. O município não comporta excessivo número de vereadores,
apenas sete são eleitos, dentre esses uma única mulher conseguiu
a "simpatia" dos eleitores, porque apenas ela possuía forte
esquema de compras de votos e faz parte da cúpula que manipula com o
auxilio do além a política da cidade. Dentre os eleitos, impera
um edil que a população conhece pela alcunha de VEREADOR BRUXO,
assim chamado porque se reelegia sempre há décadas. Existe uma
lenda local sobre ele oferecer sacrifícios a satã para obter seus
favores. Os nomes de seus desafetos são escritos e mantidos dentro de
garrafas com terra do cemitério, pólvora e restos de animais mortos
em sacrifícios. É o líder do prefeito na Câmara.
Naquele lugar os dois poderes estão mancomunados. O chefe do executivo,
o vice e os secretários nomeados se revezam no governo
O alcaide chegado em festas, regadas a muito whisky e promiscuidade. Faz uma
oposição de fachada ao presidente da câmara, uma falsa animosidade
entre eles dá certo brilho para a política local, na visão
popular as cacetadas entre ambos tem como objetivo o crescimento a favor do
município. A cidade pequena não tem repetidora de canais de televisão,
imperam ainda as rádios que pertencem aos políticos e são
usadas para propaganda dos dois poderes, isentas de criticas ou denuncias e
a maioria opera na frequência AM, que chega aos lares recebida com muita
simpatia pelas donas de casa que são formadoras de opinião em
potencial e não raramente defendem com paixão desmedida o que
seu locutor preferido noticia todos os dias.
Miguel Arcanjo, é radialista das antigas, tem inscrição
como jornalista, mas nunca cursou uma faculdade. Homem de boa índole,
nunca pensou em mudar-se de seu quinhão natal. Trabalha na rádio
mais importante da cidade, que pertence ao Grupo do Deputado Estadual que mora
na capital. Espera pela aposentadoria que está bem próxima, e
não vê a hora de ter sua liberdade de volta, deixar de pactuar
com falsas noticias, de ser obrigado a elogiar um governo mal cheiroso.
O tempo voa, passaram- se cem dias da posse dos políticos eleitos e a
aposentadoria de Miguel é celebrada com gosto por ele e os amigos que
inauguraram a Rádio Comunitária Independente.
Os donos das outras emissoras faziam o impossível para calar a voz daqueles
que eram opositores ferrenhos dos politiqueiros no poder. Ofereceram propina,
atitude costumeira e corriqueira há anos, inclusive muitos profissionais
dos meios de comunicação recebem seus gordos cheques no inicio
do mês na Câmara e Prefeitura. Representantes do quarto poder, são
pagos para não criticar, o silencio vale ouro, mas não para aquele
grupo de pessoas lideradas por um profissional que deseja o bem da comunidade,
homem experiente, honesto, pai de família exemplar que discorda da maneira
desregrada que age a casta de homens (e mulher) públicos.
Miguel tem três filhos, o mais jovem com 20 anos idade, cursa faculdade
de direito na cidade próxima, por ele Miguel nutre um amor incondicional,
os outros irmãos trabalhavam na industria local, mas o filho caçula
quis estudar e sua atitude alegra o coração do pai, pois segue
os passos que ele desejaria ter seguido.
O Programa Chapa Quente, liderado pelo radialista aposentado estreou com júbilo
e alvoroço no município, faz sucesso porque o profissional imposta
a voz com paixão e fala a verdade, não esconde as maracutaias
governistas.
Miguel não imagina o ódio que provoca naqueles que administram
o pacato território.
Fim de semana de sol pálido, nuvens no céu anunciando um dia bonito
de chuva. A vereadora investe todo o dinheiro em compras de imóveis fora
do município. O marido não trabalha vive às suas expensas.
Ela mantêm um caso velado com o presidente da câmara, e sempre inventam
desculpas para se afastarem da cidade.
Planejam passar o sábado e domingo no apartamento luxuoso que ela possui
numa estância termal localizada no interior do estado vizinho. Ela suporta
o colega por ser o presidente da casa, e com isso ganha excelentes proventos
e tira muito proveito da situação, pois todos os projetos que
ela apresenta contam com o seu aval, ela é o edil que mais possui vantagens
financeiras e a maioria de funcionários e cargos de confiança
foram nomeados por ela, uns "fantasmas" lotados em seu gabinete, outros
exercem o cargo cumprindo horário, mas todos sem exceção
no dia do pagamento repassam para ela a porcentagem combinada.
O casal aproveitou as águas quentes para relaxar. À noite juntos
abriram um bom vinho, coisa que o homem jamais fazia em casa. Depois deitados
lado a lado na enorme cama, a mulher pensativa olha para o amante que ressonava
e pensa:
- como pode ser tão asqueroso? Não entendo como a esposa está
casada com ele há tantos anos. E se lembra que depois do ato sexual ele
costumeiramente vira-se para o lado e ronca como um porco, outras vezes acende
um cigarro e fica escarrapachado de barriga para cima, sem trocar uma palavra.
Não lhe oferece um cigarro nem por educação, muito menos
um bombom que se encontra na cabeceira da cama, no pote em cima do criado mudo.
Ela se lembra da esposa ultrajada e pensa: - É uma Amélia da música,
mas com certeza não é uma mulher de verdade, do contrário
mandaria esse bruto egoísta a ... Mas não conclui a frase, faz
um muxoxo e diz baixinho: Ah, deixa isso pra lá, problema dela. Eu aproveito
o máximo!
A semana começa com novas denuncias do CHAPA QUENTE. O povo está
se conscientizando dos problemas municipais.
Para disfarçar e iludir, inventam obras eleitoreiras para abafar o disse
que disse geral. O povo aguarda ansioso o lançamento da pedra fundamental
de um ginásio de esportes que está prometido há pelo menos
quatro gestões.
Miguel Arcanjo fará a cobertura do evento para o seu programa, está
em casa vestindo a camisa social às pressas para não se atrasar,
são 19h30min e o convite é para as 20 horas. A sua esposa o auxilia,
enquanto conversam sobre assuntos corriqueiros. Miguel está de frente
para o espelho e de costas para a mulher, quando ouve o seu grito:
-Miguel uma cobra!
Ao virar- se avista a víbora negra andando calmamente no recinto. A serpente
é grande e de uma cor muito escura, ele não reconhece a espécie.
Ele pede calma para a mulher, trás o rodo e mata a cobra. A cabeça
achatada e as grandes presas lhe provocam um arrepio na nuca.
Coloca o bicho dentro de um saco plástico e enquanto se dirige para
a lixeira na frente da casa recita em voz baixa o versículo de um salmo:
- "Sobre serpentes e víboras andarás..."
Miguel comparece ao evento que transcorreu sem anormalidades. Todos os presentes
se abraçavam e trocavam tapinhas nas costas, enquanto a população
que compareceu em massa, aproveita para pedir aos políticos pequenos
favores, não sem antes frisar bem que podem contar com seus votos para
o próximo pleito municipal.
Miguel deduz que conhece suficientemente as pessoas que ele critica sem papas
na língua. Mas o que ele sabe sobre todos é apenas a ponta do
iceberg. Se ele os seguisse depois das sessões parlamentares da sexta
feira, agiria com mais cautela, seria mais prudente, menos enfático e
mais evasivo.
Toda semana, o grupo se dirige para uma fazenda afastada da cidade que é
um lugar sombrio. Depois que se atravessa a enorme porteira pintada de preto,
do lado esquerdo bem evidente está uma cruz de madeira entrelaçada
por uma enorme víbora negra de olhos vermelhos com suas presas salientes
na enorme boca aberta, é algo assustador.
Os rituais são diferentes para cada grupo, dependendo do grau de entendimento
e de interesse de cada um.
Há uma sala que é acessível a todos os adeptos, é
mais frequentada por aqueles que não assumem definitivamente o pacto
que deveria ser selado com sacrifícios de animais vivos, não adotam
a prática mais sonham em ter poder, beleza e riqueza, e como temem oferendas
com sangue se contentam com o banho de leite de cabra que afirmam afastar os
maus fluídos e trazer sorte.
Os políticos da cidade porém, fazem parte do seleto grupo que
participa com afinco da seita cuja cerimônia é realizada em uma
sala secreta com sete cadeiras em forma de trono, no centro da enorme sala de
paredes negras e piso vermelho, cada poltrona está estrategicamente posicionada
debaixo de uma gaiola que possui várias lâminas dentro delas. Enquanto
celebram a missa negra, aqueles que necessitam de um favor especial sentam-se
nas cadeiras e durante o ritual acionam um botão que coloca as lâminas
em movimento, e o animal que está preso vivo lá dentro urra de
dor e medo, tem a pele arrancada, a carne dilacerada, suas vísceras alimentam
a ambição de homens sedentos de poder e fortuna, agonizam sem
ter como fugir enquanto a seiva da vida, seu próprio sangue jorra quente
sobre aquele que num êxtase se banha no liquido oferecido em honra do
maligno, diante da oradora que profere frases ininteligíveis e cantigas
numa língua morta.
Ali sob aquele lugar, numa cripta fria a sacerdotisa que comanda os rituais
macabros desce trezentos metros abaixo do chão entoando orações
em uma língua antiga e entrega diretamente nas mãos do demônio
todos os pedidos banhados em sangue.
O dia amanhecera triste para Miguel, uma melancolia inunda sua alma. Comentara
com a esposa que sentia- se sorumbático e não sabia por quê.
Ela lhe responde com um abraço:
-É a aposentadoria meu amor que está deixando você assim,
li numa revista sobre isso. E riu passando a mãos pelos cabelos brancos
do marido e dando- lhe um beijo afetuoso na face.
Miguel se anima quando pensa que tem novidade cáustica para o seu programa.
Segunda feira que lhe dá novo ânimo. O Chapa Quente recebera denuncias
anônimas informando irregularidades no departamento de compras da prefeitura
e a contratação de funcionários fantasmas na câmara
municipal, o radialista que usa a linha investigativa, faz pressão para
que o caso não caia no esquecimento geral, frisa enfaticamente que o
povo exige que a Justiça tome as providências cabíveis,
fazendo com que o Ministério Publico ofereça denuncia de peculato
e outros crimes contra quem de direito. É preciso defender o erário
público e combater a corrupção.
No intervalo do programa, Miguelzinho o filho caçula passa na rádio
para dar um abraço no pai e lhe mostrar a monografia que ele entregará
na faculdade para o final do curso. É sobre Imputabilidade Penal e sua
Relação com a Violência no País. O pai manda passar
dois comerciais a mais para ler a obra do filho amado. Dá os parabéns,
pois o trabalho ficou ótimo, destacou temas como a desagregação
familiar como fator para a criminalidade infantil e o aumento de uso de drogas
na adolescência. É com orgulho que abençoa o filho, e diz
para ter cuidado na estrada. O filho sorri, retribui com um abraço o
elogio paterno e brinca: - Pai faz quase cinco anos que você me diz para
ter cuidado com a estrada, conheço cada curva, reconheço até
as arvores que estão na margem. Vira as costas e vai sorrindo feliz,
enquanto o pai sente um arrepio correr pelo corpo.
Passam das 20 horas, Miguel jantara pouco, lia o jornal local, quando o telefone
toca. Alguém está informando sobre um acidente com seu filho,
a noticia inesperada o deixa sem ação, não compreende direito
o sentido das palavras. Pergunta uma, duas vezes, e a pessoa explica que conseguiu
o numero do telefone da casa deles através do celular de Miguelzinho.
Ele batera o carro na curva do rio, na divisa entre os municípios. Ele
pergunta qual o hospital o filho se encontra, e a resposta sem jeito chega ardendo
em seus ouvidos, o seu interlocutor informa que é do corpo de bombeiros
e que o filho caçula daquele pobre homem não sobreviveu, está
ainda preso às ferragens do veículo. A esposa ouve em silencio
a conversa e com voz embargada pergunta:
-Cadê nosso filho, Miguel? Ele não reponde, abraça a mulher
e chora.
São horas de angustia a espera pelo corpo. A casa deles ficou lotada
de gente. O prefeito estava lá, recebendo os pêsames junto com
os familiares. A câmara municipal em peso compareceu e os edis aguardavam
solícitos pela hora do velório. O ultimo a chegar foi o presidente
da câmara acompanhado da esposa, que deu um abraço apertado em
Miguel e lhe disse palavras de conforto, foi a única pessoa que fazia
parte do covil de lobos que Miguel sentiu sinceridade nos gestos e nas palavras.
Faz 10 meses que ocorreu a tragédia, Miguel aceita a vontade de Deus
na vida dele, mas não se conforma e crê que o Criador não
quer isso dele, pois não tem como se conformar com a perda de alguém
tão cheio de vida e de sonhos, e dizer o contrário é pura
hipocrisia.
O Chapa Quente saiu do ar, Miguel não acredita mais na luta do bem contra
o mal, o interesse pelas coisas comunitárias desbotou- se, tudo à
sua volta é cinzento, a vida perdeu o brilho. As pessoas dizem que sentem
falta da sua contumácia, de sua fiscalização jornalística
para informar seriamente onde estava sendo aplicada a verba da arrecadação
municipal. Mas, o pai sofrido, está vivendo por viver, acredita no Reencontro
com o filho amado e espera ansiosamente por ele, só a saudade preenche
o vazio do seu coração, que continua sempre vazio.
Se Miguel pudesse ver a imagem que ficou gravada na retina dos olhos do filho,
ele mudaria de ideia e continuaria fazendo a Chapa esquentar no seu programa,
porque a ultima cena que o filho caçula viu naquela curva de rio, foi
a enorme serpente negra, surgir do nada, no meio do asfalto e tomar proporções
gigantescas se atirando contra o para brisa do carro, a visão das presas
da víbora tão próximas do seu rosto fez com que perdesse
o controle da direção e colidisse frontalmente contra a enorme
carreta carregada que vinha veloz na pista contraria. Próximo do acidente
um carro com placa oficial a tudo assistia enquanto seus ocupantes sorrindo
sarcasticamente ensaiavam palavras de conforto.