A Garganta da Serpente

Nuno Miguel Moreira Vieira

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Tudo cabe num poema e num adeus

(Nuno Miguel Moreira Vieira)

O som compassado do telemóvel tocava bem perto si. Um movimento brusco do pescoço, um olhar para o nome no visor do aparelho, um rápido encolher de ombros e aquela menina de cabelos loiros e longos, olhos de um castanho agora triste, desliga o telemóvel, aconchega o pijama e esconde-se por entre o calor de sua cama.

Constrói na sua cabeça os sonhos com os quais gostaria de polvilhar a noite de sono que se avizinha, junta peça a peça deste puzzle de peças não contadas, imagina o sorriso no final, sonha e adormece. Adormece e o sonho pára. O que se passou, ninguém sabe nem mesmo ela se lembra, não interessa porém.

Acordou sobressaltada.

O suor colava-lhe o pijama ao magro corpo e dava-lhe de certeza uma sensação de desconforto. A persiana com três listas por fechar escrevia o nascer do sol na parede do quarto num código que quase parecia morse. Estava na hora. Estranhamente parecia sentir-se aliviada por acordar e sair da cama. Ela que normalmente ficava na cama até mais não poder, naquele dia via o trabalho como uma terapia. Uma terapia ansiada e sem a qual dificilmente aguentaria.

Uma hora depois, o frio ar da manhã, despertava nela os instintos mais básicos como a fome. Só aí se iria lembrar que tinha saído de casa aflita. Um banho tomado à pressa, um conjunto de roupa escolhido ao acaso e despejado sobre o corpo, e tão pouco se tinha lembrado do pequeno-almoço. A pressa de sair, o medo de se deixar tentar, a força que ela sentia faltar-lhe a cada olhar que disfarçadamente dirigia para a carta sobre a sua mesa-de-cabeceira.

Ela tinha fugido de casa, tinha fugido dela própria.

Nessa manhã surpreenderia pela antecipação. Seria a primeira a chegar ao serviço e estaria afundada em papelada até quase não conseguir respirar, sem tempo para mais nada, nem sequer pensar.

Eu sabia que era pura ilusão - cada folha que lhe passava pelas mãos a fazia recordar, cada suspiro lhe pesava mais, em cada olhar para o vazio se esvaziava ela própria mais… o rosto daquele homem, cara de menino, lábios pequenos e fortes, aquele olhar preto, profundo e carinhoso…

A cada momento lembrar-se-ia dos abraços longos e apertados, lembrar-se-ia dos beijos ávidos, trôpegos, molhados… lembrar-se-ia do sorriso, piscar de olhos, da face dele quando se zangava, lembrar-se-ia do cheiro dele… sempre.

Não era a primeira vez que acordava convencida que a terapia do trabalho funcionava. Não seria a primeira, dificilmente a última que a olhei com o meu olhar de descrença e ela, nem sequer notou. A mulher acredita no que quer, engana-se quando tinha previsto, e tem sempre razão… tem sempre mais uma razão para mudar. A minha dona porém é diferente… muda muito pouco e muito devagar.

Foi mudando o mundo à sua volta, foi mudando a posição do sol, mudando as doses de carinho e de afecto recomendadas, mudando as expressões que significavam algo para que ela própria as pudesse contradizer… Foi elasticando o seu mundo até ao ponto em que nenhuma ligação se conseguiria manter intacta.

Tenho a certeza - o dia de hoje não foi diferente no trabalho - folheou cada relatório com medo de encontrar mais uma das cartas de amor que ele lhe escreveu… anota memorandos com medo que a voz dele surja de qualquer canto da sala e lhe dedique mais um poema… Evita a agenda… nunca se sabe onde a letra dele pode estar para a voltar a inebriar…

O que ela pensa ser a sua salvação, é mais um castigo. Quer esquecê-lo trabalhando, mas era cada vez mais evidente que ele faz parte da sua vida. Sente que tem mais uma ligação a quebrar - só não consegue encontrar nenhuma razão para.

Chegou a casa do trabalho, cansada de carregar o peso de uma vida nas costas. O dia tinha sido demasiado desgastante… só esperava não ter de o encontrar à porta de casa (ou então encontrá-lo, nem ela própria conseguia perceber).

Eu estava à janela. As luzes da rua denunciavam a noite. Como sempre da minha janela via a minha dona chegar… Não é diferente esta noite.

Chega ao bairro onde estava o nosso refúgio, passou primeiro pela porta de casa para se assegurar que ninguém a esperava. Mesmo assim foi estacionar o carro mais longe do que o habitual… Comecei a ouvir os passos dela minutos depois, caminhando cautelosamente até à porta de entrada tentando passar despercebida - não era a mim que ela queria evitar, também não o conseguiria nunca. Ela de certeza se sentia como um ladrão, tentando assaltar a sua própria casa. Senti-a chegar à entrada, olhar em volta, respirar fundo nem ela sabia se de alívio ou desilusão, colocar a chave na porta e entrar rapidamente.

Eu tinha tido um dia normal, nem desarrumei muito a casa. Só um bocado, mas uma dona com gato fantástico como eu já está à espera!

Chamam-me Riscas, e eu nem me importo, sou hoje a única companhia da minha dona agora que a solidão se tinha substituído ao amor no coração dela.

Até eu a fazia lembrar-se do amor, mas ela abraça-me na mesma por vezes ainda com mais força, dá-me de comer, afaga-me o pêlo e brinca comigo como de costume. Ela gosta de pensar que me acalma com as suas mãos, eu gosto de pensar que sou eu que a acalmo com o meu pêlo.

Acendeu as luzes uma a uma até entrar no quarto… Pouco me restou que não o habitual: segui-la!

Eu sabia tão bem como ela - no íntimo esperava encontrar um corpo quente, um sorriso largo, uma mão carinhosa perdidas nos lençóis… mas não, encontra apenas o enrodilhado dos lençóis que lhe faziam lembrar a sua vida - uma rodilha de emoções que nem ela mesma conseguia controlar.

Sentou-se na borda da cama - olhou a carta que no dia anterior tinha sido atirada por baixo da sua porta perante a sua resistência em abrir a porta. Aquele envelope com uma letra que ela tão bem conhecia, com um aroma que a continuava a enfeitiçar, era de certeza mais uma armadilha que o seu orgulho a impedia de abrir. Estaria ali certamente a conjugação de vontades, estaria lá dentro o filme de uma vida em conjunto, poemas de combinações de sorrisos, de arranjos de cumplicidades aos quais ela sabia não saber resistir.

A dúvida era essa mesma: quereria ela resistir ou não?

Teria ela motivos para simplesmente o afastar? Teria ela certezas? E seriam elas necessárias? E o amor… será ele justificação para tudo? Então e o corpo quente, a mão carinhosa, e o sorriso? Aquele sorriso ao acordar era impagável… era como acordar com o sol ao teu lado, era como saber que o dia iria brilhar, fizesse sol ou não.

Teria ela razões suficientes para afastar aquele que poderia ser a sua felicidade?

Ela não encontrava nenhuma - bastava olhar para a forma como ela olhava aquela carta para perceber tudo.

Aquela ligação era forte. No passado, sempre encontrou um qualquer motivo, por muito fútil, insignificante ou irreal para justificar perante ela mesma o fim de uma relação, a quebra do laço que a prendia. Não interessava como quebrá-lo, quando, onde… sempre lhe interessou ter a justificação da separação, ter o motivo, poder dizer que estava melhor sozinha.

Aquele homem era diferente. Era amor, nada de novo aí, mas era diferente. Com ele o amor não precisava de entrar, simplesmente acontecia. Até eu, gato riscado por defeito ou virtude, o percebia. Entre eles tudo encaixava, tudo tinha sentido, tudo era apenas respirar fundo e sorrir, tudo era suor em mãos coladas, tudo era olhares entrelaçados, tudo era solarengo, chovesse muito ou pouco.

Ela sabia que não tinha como justificar a separação - a minha dona tinha medo. Tinha acabado, tinha feito o mais difícil, mas sabia-se fraca, sabia-se vulnerável à mais pequena lembrança, sabia-se infeliz, ela sabia-se estranhamente inteira, impermeável e irremediavelmente oca.

Ligou a televisão quase por instinto, sentiu fome mas a preguiça de fazer o comer manteve-a agarrada à cama… Como eu a conheço… Continuo incessantemente a passear-lhe nas suas pernas, a tentá-la para brincar. Susana não estava ali.

Ela fazia piscinas com os seus olhos entre a carta, que de certeza a faria voltar a abraçar o seu amante… e a parede branca, onde o medo de se dar, misturado com algumas gotas de orgulho, a faziam fincar os dedos nos lençóis e resistir.

Limitei-me a ficar parado, olhar para ela com o meu olhar de reprimenda que ela conhece bem.

Assim a noite se passava. E aquela carta, uma verdadeira chave de felicidade, gravada a carinho pelo mais infeliz dos artesãos ali ficava … sobre a mesa de cabeceira, tentando Susana, olhando-a como que pedindo, sussurrando-lhe, como que lhe gritando amor…

Claro que fui eu o primeiro a aperceber-me dos movimentos no exterior da casa.

Dei um salto da cama num ápice e corri de felicidade em direcção à porta. Susana despertou do hipnotismo das suas memórias… Ela sabia bem quem era… Ela sabia bem o que queria o rapaz do outro lado da porta - ela só não sabia mesmo até onde o seu orgulho a conseguiria proteger.

A campainha da porta e duas pancadas na madeira…

"Susana, sei que estás ai… abre a porta preciso de falar contigo…"

A minha dona manteve-se em silêncio, o único ruído era mesmo a minha excitação a saltar do lado de cá da porta. A voz que ela ouvia era como um íman a puxá-la da cama - mas sabia que não podia quebrar agora, não podia voltar atrás sob pena de ficar para sempre presa na armadilha da vida… nessa armadilha que te amarra, que te abraça, que te ama, que te compromete e te enche!

Resistia. Ia resistir mais uma noite! Ia conseguir ouvi-lo e nada dizer… Seria o castigo dela, seria a forma de não se entregar.

Vinha nos manuais. Nada como fazer um homem sofrer para que te dê valor. Iria fazê-lo agora, entretanto teria tempo para saber se seria aquele o guardador da prisão que ela sempre imaginou ser um amor.

Mas Susana, porque não lês tu o manual todo? Porque ficas pelas páginas iniciais? Porque te resignas ao que conheces? Porque ouves tu as vozes de frustração e nunca as da esperança? Porquê Susana?

Porque és humana, erras… até eu, gato listado, castrado, mimado o sei…

A voz que do outro lado da porta continuava a falar, tinha a certeza que ela se encontrava em casa, tinha a certeza que ela tinha lido a carta que lhe tinha deixado ontem, tinha a certeza que a melhor forma de resolver a situação era falarem, um em frente do outro, olhando-se nos olhos, chorando ou rindo, tanto faz, mas nos olhos.

"Susana, deixa-te disso… Porque não falamos?"

"Todos os casais têm fases piores, tudo se resolve."

"Amo-te linda!"

Eu corria do lado de dentro da porta freneticamente. Ia até ao quarto, tentava fazê-la aperceber-se que era ali, era agora. Que a felicidade dela estava mesmo do lado de fora da porta. Ela simplesmente não queria, nem eu a convencia.

As lágrimas começaram a ouvir-se na voz dele. Ela não ia aguentar muito mais tempo… Ele também não…

O ar servia de batalha de sentimentos, porque o som apenas vinha de um lado e a minha dona estava predisposta a lutar contra si própria. Porque à minha dona, lhe ensinaram que só ela é humana, que só ela sente, que só ela tem medos, dúvidas, que só ela pode ter decisões na hora, que só ela pode errar.

A cara de menino do homem do lado de fora da porta estaria cada vez mais triste… a cada momento de silêncio se convencia ele próprio que a sua felicidade dificilmente estava naquela morada. No rosto do homem estaria o desespero, na voz o choro era cada vez mais evidente…

" Susana? Ouviste bem. Amo-te! Mas cada vez acredito menos que me amas!"

" Se me amas abre a porta!"

Acho que nem ele sabia muito bem o que dizia - limitava-se a soluçar palavras que soavam a desespero… A minha dona tentava afagar-me o pêlo. Fugi, fui para o fundo da cama e fiquei a olhá-la a fazer um esforço cada vez maior por não chorar. Ela bem tentava evitar ouvir aquela voz, contorcia-se, fazia força para evitar chorar, mas era cada vez mais difícil - aquela voz invadia a casa toda que nem fumo espesso. Entrava e rapidamente todo ao ambiente estava cheio dela, ecoava por entre os recantos da casa e acabava nos ouvidos de Susana - eu olhava-a sabendo que a qualquer momento iria vacilar e então todas as defesas de desmoronariam qual castelo de cartas tocado incautamente.

Não foi porém o suficiente. A voz calou-se. Os soluços pararam de repente - os sussurros, o desespero parou. O silêncio instalou-se e limpou o ar.

Surpresa era aquilo que via na face de Susana… para mim o silêncio doía-me muito mais. Eu, que sou gato, listado, castrado, mimado apercebi-me muito antes dela do que significava aquele silêncio, qual o vazio que se seguia…

O barulho de uma caneta, um papel a ser violentado por amor… Susana também ouvia, mantinha-se em silêncio. De repente uma folha de papel roçou a porta e entrou, um longo suspiro, um encostar de cabeça na porta, um desespero na forma de ruído…

" Adeus Susana, Adeus."

A voz dele cortou o silêncio. Era a voz dele mas não parecia - o registo era muito diferente: o tom era límpido, seco cortante. A voz não registava choro, nem desespero, simplesmente abandono, simplesmente desprezo, simplesmente luto.

Pela primeira vez a minha dona se apercebeu que tinha acabado de perder. Não percebia ainda o quê, mas tinha ali a certeza que tinha perdido. Esbugalhou os olhos quando ouviu aquelas 3 palavras e os passos afastando-se de casa. As lágrimas vertiam agora, o coração explodia e num gesto brusco levanta-se e corre para a porta - era tarde porém.

A folha perdida no chão envernizado parecia solitária. Era-o de facto, era o prenúncio da solidão. Eram apenas algumas linhas escritas numa letra arrastada e confusa que ela lia tão bem.

"Tudo cabe num poema e num adeus"

Deixa-me que te diga:
Tudo cabe num poema.
Uma vida, um momento,
Um olhar,
A paixão,
Um amor…
Tudo cabe num poema
E num adeus.

O sorriso,
Que se perde nos teus lábios,
E se esconde
No beijo.
O carinho,
Que cresce no teu olhar
E floresce
Num toque de mão…
O amor,
Que aparece do nada,
Sem se fazer notar,
E se vai
Numa lágrima
Sem qualquer razão…
Tudo isso cabe num poema
E num adeus.

De mãos dadas
Planámos sobre a vida
Enchemo-la de ar
Pulmão a pulmão…
De mãos dadas
Perdemos a bússola,
O relógio, o destino…
De mãos dadas
Acreditámos em vão…

Olhos nos olhos
Fizemos promessas,
Sem nada falar.
Olhos nos olhos
Chorámos dor alheia,
Bebemos a lágrima,
Secámos a fonte,
Partilhámos razão e culpa.
Tudo cabe num poema
E num adeus.

Corpo no corpo
Pintámos quadros,
Esculpimos relevos,
Testámos texturas,
Beijámos pinturas
Porque não?!
Porque tudo cabe num poema
E num adeus.
Tens razão!

Amarrotou o papel e guardou-o junto ao peito, como que o querendo guardar ali. O rapaz, o tal homem com cara de menino, lábios pequenos e fortes, aquele olhar preto, profundo e carinhoso… Ia já em direcção a outra casa, ia já em direcção a outra vida.

O poema acabava com a mentira que ela tinha infligido a ela própria. O poema acabava com a frase que ela tinha utilizado para simplesmente acabar. " Um adeus é suficiente Bernardo, as coisas acabam… Quando acontece o melhor é simplesmente dizer adeus!" atirava ela na direcção do rapaz tentando se convencer a ela própria - aparentemente teve bastante mais efeito nele que nela própria - mas as relações são mesmo assim: pequenas palavras ditas com força suficiente têm tanto poder como um olhar…

Bernardo escrevia-lhe o último poema - uma pedra sobre o assunto, ou várias, suficientemente grandes, densas e pesadas, para prender o amor e o orgulho. Aqui acho que senti exactamente o mesmo que a minha dona: ele não iria voltar atrás - nunca mais lhe iria beijar, nunca mais sentiria o perfume e o braço forte na cintura, nunca mais sentiria o olhar cúmplice, o sorriso de luz na planície calma, o amor… nunca mais sentiria o amor - não do que se faz mas do que se sente…

Susana, sentia o ricochete das palavras naquele amarrotado pedaço de papel. Tinha pela primeira vez a certeza que era aquela cara de menino o espelho da sua felicidade. Só o sentiu no momento em que o perdeu… É assim a minha dona.

Cheirei nesses momentos inesquecíveis na memória de um gato, o aroma adocicado da saudade naquela casa. Senti pela última vez, nessa noite a alegria do amor, mesmo que traído por outro sentimento qualquer. Depois foi um desvanecer da cor, um "déja viu" constante, um odor cada vez mais insosso, um olhar em Susana que não mais encontrou o brilho…

Pena ser esta a última das minhas sete. Gastaria de bom grado mais uma ou duas vidinhas para fazer companhia a tanta solidão… Ela nunca o admitiria… Para ela seria sempre melhor estar sozinha, para ela, tinha feito o melhor, para ela o orgulho era companhia suficiente.

Abraçava-se a ela própria, beijava-se no espelho de si própria… Penteava as rugas de noite, acordava com as memórias, lavava o remorso, ingeria a esperança pronta a comer, que ela própria sabia lhe ser insuficiente e assim foi morrendo cada vez mais e vivendo cada vez menos…

Esta vida de gato é difícil. No final as memórias confundem-se e amalgamam-se, entrelaçam-se e misturam-se deixando pouco de lição… Apenas uma: que nunca o medo te impeça de viver…

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