A Garganta da Serpente

Nathaniel Hawthorne

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A consoada do “quaker”

(Nathaniel Hawthorne)

Era véspera de Natal e, terminada a ceia, o ferreiro quaker, John Inglefield, sentou-se no meio dos seus, na velha poltrona carcomida.

Como estava no centro do semi­círculo formado pelos membros de sua família, em torno da lareira, o clarão das chamas iluminava o seu corpo grosso e atarracado, espargindo um resplendor de cobre no seu rosto rude e dando-lhe o aspecto duma grosseira figura de ferro incandescente, boa para ser forjada na sua própria bigorna.

À direita de John Inglefield havia um lugar vago. As outras cadeiras, muito apertadas à volta do fogo, estavam ocupadas pelos membros da família, muito silenciosos, en­quanto suas sombras se projetavam na parede que lhes ficava atrás e dançavam alegremente.

O filho do quaker, que seguira o curso superior e era então estudante de teologia em Andover, também estava presente, assim como a irmã, mocinha de dezesseis anos, que lembrava bem, a quantos a olhassem, um fresco botão de rosa entreaberto. Também estava Robert Moore, antigo aprendiz do ferreiro, agora seu sócio, cujos traços enérgicos e viris contrastavam com os do pálido e escanifrado estu­dante.

O lugar à direita do velho quaker tinha sido deixado vazio em memória de sua mulher, falecida na última véspera de Natal. Com uma delicadeza de sentimentos verdadeira­mente inesperada na casa de um rude ferreiro, o marido, muito compungido, colocara a cadeira da falecida no lugar de sempre, a seu lado, e de quando em quando deitava-lhe um olhar triste e interrogativo, como se perguntasse a si mesmo como era possível que a tumba fria não devolvesse a amada figura da desaparecida para alegria daquelas cha­mas, naquela suave noite de Natal.

Dessa forma, o velho quaker pensava com saudade e dor naquela que tão recentemente o havia deixado. Outra dor, porém, o consumia, e bem quisera ele arranca-la do coração, ou pelo menos do pensamento: uma perda pela qual ele não queria nem podia sofrer como pela primeira. É que outra pessoa da família também abandonara o lar desde o último Natal, mas para essa ele não tinha reservado o lugar com amorosa lembrança . . . Todavia, ela não tinha morrido. Enquanto John Inglefield se achava cercado da família à beira do fogo, que projetava na parede sombras fantásticas, ouviu-se a porta abrir e leves passos soaram no corredor.

O abrir da porta e o som dos passos eram tão familiares que ninguém se moveu. Uma moça entrou na sala, tirou o capote, colocou-o sobre a mesa, debaixo do espelho, e aproxi­mou-se do círculo familiar, sentando-se na cadeira vazia como se estivesse preparada para ela.

- Pai! Aqui estou. Vocês jantaram sem mim, mas venho cear com vocês.

Era Prudence Inglefield. Usava o mesmo vestido singelo e elegante que outrora costumava pôr, de tarde, ao terminar os trabalhos de casa. Os cabelos lisos, divididos por uma sim­ples risca, à moda das quakers, assentavam-lhe muito bem. Estava um pouco mais pálida que antes, mas a luz da lareira emprestava-lhe um belo tom rosado e saudável. Mesmo que tivesse passado todo o tempo de sua ausência num ambiente dissoluto, sua beleza não parecia ter sofrido o menor arranhão. Mudara tão pouco como se se tivesse ausentado ape­nas uma hora e voltasse à casa paterna antes de consumida a lenha posta na lareira.

Parecia-se extraordinariamente com a mãe. Portanto, ao se sentar à direita do pai, este julgou ver sua delicada esposa, tal como a tinha amado, apaixonadamente, num remoto dia em que festejavam juntos a noite de Natal. Assim, apesar de seu caráter áspero, quase brutal, não conseguiu encontrar as duras palavras com que sempre pensara receber a filha rebelde. Não a abraçou, porém. Disse apenas:

- Seja bem-vinda a esta casa, Prudence. Sua mãe teria tido imensa alegria em vê-Ia; infelizmente morreu há quatro meses.

- Bem sei, pai, eu sei; e contudo, ao entrar aqui, meus olhos ficaram tão deslumbrados pela luz destas chamas que imaginei vê-Ia sentada ao seu lado.

Nesse instante, os demais membros da família, refeitos da surpresa, compreenderam que aquela que entrara tão imprevistamente não era um fantasma, nem uma imagem dos seus desejos e das suas saudades, mas a própria Prudence em carne e osso. Foi seu irmão,quem primeiramente a saudou, dirigindo-se a ela afetuosamente, apertando-lhe a mão, sem todavia pôr nesse gesto todo o calor fraterno, porque, embora sendo um bom coração, era um pastor e sabia que diante de si tinha uma pecadora.

- Felicito-me, minha irmã, por ver que a misericordiosa Providência aqui a trouxe a tempo de eu me despedir de você. Dentro de poucos dias devo embarcar para as ilhas do Pacífico, como missionário. Não tenho, portanto, certeza de tornar a vê-Ia... Ah!, possa eu encontrá-la além da morte! . .

Uma sombra toldou a fisionomia da moça.

- A sepultura é muito escura, meu irmão - respondeu ela, retirando apressadamente a mão que ele apertara. - Você tem de me ver pela última vez aqui, à luz destas chamas.

Entretanto, a irmã gêmea de Prudence, que com ela sempre tinha compartilhado trabalhos, alegrias e sonhos, levantou-se impelida pelo violento desejo de apertá-la carinhosamente contra o peito. Mas resistiu a esse natural movimento, temendo, envergonhada, que Prudence tivesse mudado demais para corresponder a essa demonstração de afeto, ou que a sua própria pureza parecesse uma severa censura para a moça rebelde. Contudo, ouvindo sua voz familiar, fitando bem as delicadas feições de seu rosto e a graça de seus gestos, esqueceu-se de tudo para só se lembrar de que ela tinha voltado e se atirar nos seus braços. Porém, no mesmo momento, Prudence levantou-se e agitou as mãos para contê-la num sinal de advertência.

- Não, Mary! Não, minha irmã! Não me toque! Não podemos nos abraçar.

Mary parou, trêmula, sentindo uma sombra mais espessa e mais fria que a morte interpor-se entre ela e a irmã, apesar de seu inesperado regresso ao lar, onde tinham vivido juntas quase toda a vida.

Prudence, entretanto, olhava para um lado e para outro, procurando com o olhar a única pessoa que ainda não lhe tinha dirigido a palavra. Esta, abandonando o seu lugar, fora para perto da porta e ali ficara, com o rosto virado, de maneira que, das suas feições, só se podia ver a deformada sombra na parede. Prudence, não obstante, reconheceu-o e chamou-o com voz meiga e alegre.

- Venha cá, Robert. Não quer apertar a mão de sua velha amiga?

Robert Moore, ainda por um instante, ficou imóvel. Mas seu orgulho e sua mágoa por fim cederam, e, encaminhando-se para a moça, tomou-lhe a mão e beijou-a.

- Ah!, Robert! - disse ela com tristeza, retirando a mão com vivacidade. - Não é necessária tanta efusão...

Todos se sentaram novamente em volta do fogo, e Prudence ocupou o lugar à direita do pai. Seu caráter era vivaz, terno e geralmente muito alegre, mas sua atitude e sua voz tinha tido sempre qualquer coisa de dramático que se misturava a todos os seus gestos e palavras. Desde a infância tinha compreendido que possuía a rara faculdade de impor a todos os que se aproximavam dela o seu humor do momento, e de espalhar em torno de si, como por magia, o seu estado de alma, triste ou alegre.

Assim havia sido nos seus dias de inocência, e assim ainda foi naquela memorável noite de Natal. Seus parentes, surpresos e encantados pela sua volta, quase haviam se esquecido de que ela os tinha abandonado e perdido o direito ao seu afeto. Talvez, pela manhã, à luz do sol, a olhassem com outros olhos; mas naquela noite de festa, à luz do fogo familiar, não sabiam senão que a sua querida Prudence tinha voltado e que todos lhes deviam estar agradecidos por isso.

A dura fisionomia do ferreiro parecia então luminosa de íntima e funda alegria. Por uma ou duas vezes, riu com um riso tão forte que, como outrora, fez tremer os vidros das janelas. Sentia-se surpreso da sua própria alegria. O sisudo pastor também desenrugou as sobrancelhas e pôs-se a troçar com o estudante. E Mary, por sua vez, esqueceu-se de que sua irmã gêmea tinha perdido a inocência que por tanto tempo lhes fora comum. Robert Moore fitava Prudence com os olhos brilhantes e envergonhados, tal como um tímido namorado. E a moça sorria de tal modo que ao mesmo tempo o animava e desalentava.

Aquela hora foi uma dessas ocasiões em que a tristeza mortal que há no fundo de todas as vidas se desvanece como uma sombra importuna, e só brilha uma alegria tanto mais deslumbrante e forte como leve e rápida.

Ao soarem onze horas no velho relógio, Prudence, inclinando-se sobre a lareira, pegou a caneca onde fervia o chá que seu pai tomava todas as noites e nela pôs um torrão de açúcar, como sempre o fizera.

- Deus a abençoe, minha filha - disse John Inglefield, aceitando a xícara. - A felicidade voltou ao seu velho pai. Mas... como sua mãe nos faz falta neste momento! Ah!, Prudence, como ela nos faz falta!

E após um silêncio, ajuntou:

- E, contudo, tenho a ilusão de que ela voltou...

- Voltou. . . - respondeu Prudence.

Pouco antes da meia-noite, as conversas cessaram. Era a hora do culto da família. Mary foi buscar a velha Bíblia, onde o pai ia ler o capítulo do nascimento. Mas, enquanto cada um se preparava para um recolhimento íntimo, viram que Prudence se levantava, punha o chapéu e o capote e se encaminhava para a porta.

- Prudence! Prudence! Aonde você vai? - gritaram todos, quase ao mesmo tempo.

Com a porta já aberta, ela virou-se, fazendo com a mão um gesto de adeus. Naquele instante, porém, sua fisionomia pareceu-lhes tão mudada, que eles mal a reconheciam. Era como se uma força diabólica lhe houvesse repentinamente deformado as feições, que uma paixão terrível inflamava. Um sorriso de triunfo, doloroso de se ver, dilatava-lhe os lábios.

- Minha filha! - gritou John Inglefield, pondo-se de pé. - Fique para seu pai abençoá-la, ou vá-se com sua maldição!

Prudence ficou lívida e olhou em torno. Dançavam nas paredes as sombras dos reflexos do fogo. Por um momento, ela pareceu lutar contra uma força demoníaca que a impedia de ser ela mesma, força que só podia vencer dentro do honrado lar paterno... Mas o Demônio venceu. Prudence desapareceu na noite. Todos correram para a porta, mas já nada viram. Só ouviam o som dos guizos dos cavalos que, lá longe, levavam o trenó sobre a neve endurecida.

Nessa mesma noite, entre as belas moças que enchiam o café-concerto da cidade próxima, havia uma cuja perversa alegria parecia incompatível com a doce e pura alegria da vida familiar. Era Prudence Inglefield. Sua rápida aparição no lar paterno, naquela noite de Natal, não tinha sido mais do que a materialização de um desses sonhos de candura que por vezes assaltam as almas mais miseráveis. Mas o mal, ai!, sabe prender os seus escravos. Convoca-os nas horas mais sagradas, nos mais santos momentos, quando as inocentes lembranças de felicidade pura talvez os fizessem voltar ao bem. E eles lhe obedecem.

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