Um dia, o sereníssimo hetmã lembrou-se de mandar uma carta para
a Czarina. O escrivão do regimento (que o diabo o carregue) esqueci como
se chamava! Era Viskriak, ou não? Motuzotchka, ou não? Goloputsek,
ou não?... Como quer que seja, o que sei é que o seu nome era dificílimo.
Enfim, o escrivão do regimento chamou meu avô e disse-lhe que o hetmã
o encarregara de levar uma carta para a Czarina.
Meu avô não gostava de fazer preparativos demorados. Coseu a carta
em seu gorro, arreou o cavalo, beijou a mulher e os dois (como ele os chamava)
porquinhos, um dos quais era meu pai, e partiu levantando atrás de si tanta
poeira quanta teriam levantado quinze malandros que estivessem jogando malha no
meio da rua.
No dia seguinte pela manhã, ainda não cantara o galo pela quarta
vez e meu avô já estava em Konotop. Realizava-se aí, então,
uma feira: tão grande era a multidão que entupia as ruas, mas como
ainda era muito cedo, todas as pessoas dormiam deitadas no chão. Junto
a uma vaca, estava deitado um "parabok" gozador, de nariz vermelho como
um pisco; mais adiante roncava, sentada junto a suas coisas, uma vendedora de
pederneiras, de anil, de chumbo para fuzil e de "bubliki". Debaixo de
uma carriola, estava deitado um cigano; sobre outra carriola carregada de peixe
estava estendido o carroceiro; e, na estrada real, de pernas abertas, permanecia
deitado o moscovita barbudo com um carregamento de cinto e de luvas... numa palavra,
havia toda a espécie de pessoas que é costume encontrar nas feiras.
Meu avô parou para olhar em volta. As tendas começavam gradativamente
a se animar: As judias arrumavam seus frascos, a fumaça subia em espirais
aqui e ali e o odor das iguarias aquecidas espalhava-se por todo o acampamento.
Meu avô lembrou-se de que estava sem tabaco e sem estopa, e começou
a procurá-los na feira. Mal dera vinte passos, encontrou um "zaporoga"
um verdadeiro gozador; bastava olhá-lo para verificar-se isso.
Calças vermelhas como fogo, um "caftã" azul; um cinturão
escarlate, e sobre a cintura, um cachimbo de piteira curta com uma correntinha
de cobre que ia até aos pés, numa palavra, um verdadeiro "zaporoga".
Ah! que rapagões! Como eles param, como se espreguiçam ao passar
a mão pelos valentes bigodes, como fazem tinir as esporas e começam
a dançar: Suas pernas giram com a velocidade de uma roca em mãos
femininas! Fazem ressoar e depois, com as mãos nas cadeiras, atiram-se
em "prissiadka" e entoam uma canção arrebatadora!... Não!
passou-se o tempo. Não se verão mais "zaporogas"!
Então, meu avô encontrou um desses "zaporogas". Palavra
puxa palavra, não lhes foi preciso muito tempo para se tornarem amigos.
Começaram a tagarelar, a tagarelar a tal ponto que meu avô esqueceu
inteiramente a sua viagem. Beberam tanto quanto num festim antes da quaresma.
Finalmente, cansaram-se de quebrar jarros e de espargir dinheiro pela multidão;
aliás, a própria feira não podia durar eternamente; os dois
novos amigos combinaram então não se separarem e prosseguirem juntos.
A tarde já ia adiantada quando eles se encontravam em pleno campo. O sol
partiu para o descanso, só deixando aqui e ali, após si, algumas
faixas avermelhadas. A campina, com seus prados multicores, lembrava os trajes
festivos das moças de negras sobrancelhas. Uma tagarelice terrível
dominou nosso "zaporoga"; meu avô, com outro gozador que se reunira
a eles, já estava pensando que um diabo penetrara certamente nele. Onde
ia o homem buscar histórias e contos tão engraçados que meu
avô segurava as ilhargas e quase passou mal da barriga? Mas quanto mais
caminhavam, mais aumentava a escuridão, e concomitantemente as narrativas
do rapaz perdiam sua jovialidade. Afinal o contador calou-se inteiramente, e começou
a estremecer ao menor ruído.
- Eh! eh! patrício. Vejo que estás seriamente entretido a contar
as corujas. Já pensas em correr o mais depressa possível para casa
e sentar-te de novo sobre a tua estufa!
- Pois bem! Não quero ocultar-lhes a coisa - disse de súbito o "zaporoga"
- voltando-se para os companheiros e olhando-os fixamente. - Saibam que há
muito tempo vendi minha alma ao maligno.
- E que importância tem isso? Quem, em sua vida, não teve algum negócio
a resolver com os impuros? Esse é exatamente o caso em que é necessário,
como se diz, folgar desabridamente.
- Eh! companheiros, bem que eu folgaria; mas acontece que o prazo expira justamente
esta noite. Eh! irmãos - disse ele batendo-lhes nas mãos - ajudem-me,
não durmam esta noite, jamais esquecerei, enquanto viver, esse favor.
Como não auxiliar um homem às voltas com tão grande desgraça!
Meu avô declarou imediatamente que preferia que lhe cortassem a própria
nuca a deixar o diabo farejar com seu focinho canino uma alma cristã.
Nossos cossacos talvez houvessem prosseguido o caminho, se a treva não
envolvesse todo o céu como num manto negro e a treva não fosse tão
densa nos campos quanto debaixo de um capote de pelo de carneiro. À distância
brilhava apenas uma débil luz e os cavalos, sentindo próxima a estrebaria,
aceleravam a andadura, com as orelhas erguidas e varando com os olhos a escuridão.
A luzinha parecia caminhar ao encontro deles, em frente aos cossacos, surgiu uma
pequena taverna, inclinada para o lado, como uma mulher ao voltar de um alegre
batismo.
Nessa época, as tavernas não eram o que são hoje. Um homem
de bem não encontrava aí somente lugar para se pôr à
vontade e dançar o "hopak", mas também para se deitar
quando o vinho lhe pesasse na cabeça e suas pernas começassem a
fazer ziguezagues.
O pátio estava cheio de carriolas de "tchumaks". Nos galpões,
nas cavalariças, no vestíbulo, todos ressonavam como gatos, uns
encolhidos, outros arreganhados. O taverneiro estava sozinho em frente ao lampião
fazendo entalhes num bastão para marcar quantas medidas as cabeças
de "tchumaks" haviam esvaziado.
Meu avô, após pedir o terço de um cântaro de aguardente
para três, dirigiu-se para o galpão, onde ele e os companheiros se
estiraram lado a lado. Ainda não tivera tempo para se voltar quando verificou
que os companheiros já estavam dormindo a sono solto. Acordando o terceiro
cossaco que se reunira a eles, durante o trajeto, meu avô lembrou-lhe a
promessa feita ao companheiro. O homem levantou-se, esfregou os olhos e adormeceu
novamente. Que fazer, a não ser resignar-se a montar guarda sozinho?
Para afugentar o sono, meu avô foi examinar todas as carriolas e certificar-se
do que os cavalos estavam fazendo; depois acendeu o cachimbo voltou e sentou-se
outra vez junto aos companheiros.
Tudo estava tão calmo que se poderia ouvir uma mosca voar. Eis que de repente
ele vê qualquer coisa cinzenta mostrar uns chifres por cima de uma carriola
que estava perto; ao mesmo tempo seus olhos começaram a fechar-se, de sorte
que ele se pôs a esfregá-los continuamente com os punhos e lavá-los
com a aguardente que restava; mal seus olhos ficavam desanuviados, tudo desaparecia,
mas pouco depois o monstro se apresentava novamente atrás da carriola.
Meu avô arregalou os olhos o mais que pode, mas o maldito sono tudo baralhava
à sua frente. Seus braços ficaram pesados, sua cabeça inclinou-se
e dominou-o tão profundo sono que ele caiu como morto.
O avô dormiu por longo tempo; só quando o sol já havia aquecido
muito a sua careca é que ele se levantou rapidamente. Após se haver
espreguiçado duas vezes e coçado as costas, reparou que havia menos
carriolas do que na véspera. Provavelmente os "tchumaks" haviam
partido ao amanhecer. Olhou para onde estavam os companheiros: O cossaco lá
estava e ainda dormia, mas o "zaporoga" desaparecera. Começou
a interrogar as pessoas, mas ninguém sabia de coisa alguma. Somente a "sivitk"
do "zaporoga" ficara no lugar onde ele estivera deitado.
Apavorado, meu avô refletiu um instante. Foi ver os cavalos, mas não
encontrou nem o seu, nem o do "zaporoga". "Que significaria isso?
Admitamos que a força maligna se houvesse apoderado do "zaporoga";
mas quem levou os cavalos?"
Depois de refletir muito tempo, o avô concluiu que o diabo viera e, como
era longe o caminho para voltar ao inferno, furtara-lhe o cavalo. Ele estava muito
pesaroso por não haver cumprido com a sua palavra de cossaco.
"Nesse caso - pensou - nada há que fazer! Irei a pé! Talvez
encontre na estrada algum almocreve de volta da feira que me queira vender um
cavalo."
Quis botar o gorro, mas o próprio gorro desaparecera. Meu finado avô
juntou as mãos em desespero ao se lembrar de que na véspera o trocara
pelo do "zaporoga". E então o impuro também o roubara!
Não adiantava agora ele procurar em todos os bolsos. O hetmã havia
mesmo de lhe dar presentes!... Ei-lo bem arranjado para levar a carta à
Czarina! E meu avô pôs-se então a deblaterar contra o diabo,
a tal ponto que as orelhas lhe deviam ter ficado a arder no recesso do inferno.
Mas as palavras não resolvem os impasses; não adiantou a meu avô
coçar a nuca, não lhe acudiu coisa alguma. Que fazer? Ele recorreu
então à inteligência dos outros. Reuniu todas as boas criaturas
que estavam na taverna, "tchumaks" e outros viandantes, e contou-lhes
sua desdita. Os "tchumaks" ficaram muito tempo a refletir, com o queixo
apoiado no cabo do chicote, depois baixaram a cabeça e acabaram dizendo
que nunca tinham ouvido falar, em todo o mundo cristão, em alguma carta
de hetmã roubada pelo diabo; outros acrescentaram que nada havia a esperar,
quando um diabo ou um moscovita roubava alguma coisa. Só o taverneiro permanecia
quieto em seu canto. O avô dirigiu-se a ele: "Quando um homem permanece
calado é que tem muito engenho." Somente o taverneiro não era
muito pródigo em palavras; e se meu avô não houvesse puxado
do bolso cinco copeques, não lhe arrancaria uma única palavra.
- Vou ensinar-te a maneira pela qual poderás recuperar a tua carta - disse
o homem afastando-se um pouco com meu avô.
Foi como se tirasse um peso de cima de meu avô.
- Já vejo em teus olhos que és um cossaco e não uma mulher.
Pois bem! Ouve: Pertinho daqui há um caminho que dobra à direita
e entra na floresta. Logo que a noite descer sobre os campos, prepara-te para
partir. Na floresta existem ciganas que somente saem de seus esconderijos para
forjar o ferro nas horas da noite em que somente as feiticeiras passeiam montadas
em seus atiçadores. Qual é, de fato, sua verdadeira profissão?
Isso não é contigo. Haverá muita bulha na floresta; apenas,
não te dirijas para o lado aonde a ouvires. Chegarás em frente a
uma veredazinha que passa junto a uma árvore queimada pelo raio; segue
essa trilha, e caminha, caminha, caminha... As moitas espinhosas hão de
te esfolar; densos matagais de aveleiras hão de barrar-te o caminho - mas
continua a caminhar e quando chegares junto a um regato, só então
é que poderás parar, e verás o que desejas. Também
não te esqueças de botar nos bolsos a coisa para a qual eles são
feitos... Compreendes, diabo ou homem, todos gostam dele...
Depois de assim falar, o taverneiro retirou-se para seu quarto e não quis
dizer mais uma palavra.
Meu finado avô não era um poltrão. Quando lhe acontecia encontrar
um lobo agarrava-lhe pela cauda; quando abria caminho entre os cossacos, com seus
punhos, todos caiam à sua volta como peras. Contudo, um arrepio percorreu-lhe
a espinha quando entrou na floresta naquela noite escura. Nem uma estrela no céu.
Estava tão escuro e deserto como num subterrâneo. Só se ouvia
lá em cima, muito acima da cabeça, o vento frio que passeava pelas
copas das árvores, e estas, como outras tantas cabeças de cossacos
bêbados, cambaleavam, como se fossem calaceiros, murmurando com suas folhagens
arengas desconexas. Foi quando ele sentiu o frio aumentar e lamentou não
ter trazido o seu capote de pêlo de carneiro que , subitamente, a floresta
ficou iluminada como pela aurora, e ao mesmo tempo um fragor semelhante ao de
cem martelos retumbou em seus ouvidos com tanta força que a cabeça
lhe parecia estalar.
Meu avô depressa viu em sua frente uma vereda que serpenteava entre as moitas;
a arvore consumida pelo raio também apareceu, bem como os arbustos espinhosos.
Tudo era exatamente como lhe haviam dito. Não! O taverneiro não
mentira. Mas não era nada fácil, nem divertido, abrir o caminho
através das sarças. Aos poucos foi saindo desse lugar e chegou a
local mais desolado onde, tudo quanto pôde notar, as arvores tornavam-se
mais raras, mas ao mesmo tempo tão grandes que ele nunca encontrara iguais,
nem mesmo do outro lado da Polônia.
Subitamente, entre as arvores, deparou-se um regato que brilhava com reflexos
de aço, de um negrume azulado. O avô ficou muito tempo na margem,
olhando para todos os lados. No lado oposto resplandecia um fogo que ora reavivar-se,
refletindo sua chama no regato que estremecia sob ela como um polonês subjugado
por um cossaco.
Afinal, surgiu a pontezinha, Ah tem graça! Poderia acaso atravessá-la
alguma coisa que não fosse a carruagem do diabo?
Não obstante, meu avô pisou na ponte animosamente e em menos tempo
do que um tomador de rapé precisa para retirar uma pitada de tabaco e levá-la
ao nariz, já se encontrava do outro lado. Só então foi que
ele pôde verificar que ao redor do fogo havia homens de carantonhas tão
atraentes, que em qualquer outra ocasião ele daria sabe Deus o que para
evitar encontrá-los. Mas a situação não comportava
recuos e era preciso entabular conversação.
Meu avô inclinou-se até quase a cintura e disse:
- Deus seja convosco, boa gente!
Ninguém respondeu sequer com um aceno de cabeça. Conservando o mesmo
mutismo, derramaram qualquer coisa no fogo. Ao reparar que a havia um lugar vago,
meu avô ocupou-o sem maior cerimônia. Ficaram muito tempo assim sem
trocar palavra. Meu avô já estava começando a se entediar.
Remexeu no bolso, tirou o cachimbo e tranquilamente, examinou as fisionomias
dos companheiros. Ninguém lhe prestou atenção.
- Poderiam ter a bondade?... Como direi... de... (meu avô era educado e
sabia como dizer as coisas; perante o próprio Czar não teria ficado
embaraçado) de... de permitir que eu esteja à vontade sem ofendê-los
com isso? Tenho muito fumo, um cachimbo, mas nada para acendê-lo.
Seu discurso ainda não obteve a menor resposta. Apenas uma carantonha adiantou-lhe
um tição até ao rosto, de maneira tal que, se meu avô
não afastasse a cabeça, teria podido despedir-se para sempre de
um olho.
Vendo, afinal, que estava perdendo inutilmente seu tempo, decidiu-se ele - escutasse
ou não aquela gente impura - a contar seu o caso. As carantonhas aguçaram
então os ouvidos e adiantaram as garras. Meu avô compreendeu-as:
Reunindo num só punhado todo o dinheiro que trouxera, atirou-o ao centro,
num movimento circular, como se eles fossem cães. Mal atirou o dinheiro,
tudo turbilhonou à sua frente; a terra tremeu, e como aconteceu isso? Nunca
ele pode explicá-lo, mas desceu até ao inferno.
- Oh! lá! lá! paizinho - exclamou olhando para todos os lados.
Que monstros viu então! Eram só as carantonhas e mais carantonhas,
como se diz. Havia lá feiticeiras em quantidade não inferior à
da neve que cai pelo Natal, todas enfeitadas, pintadas; pareciam moças
na feira; e todas, todas que havia, dançavam como embriagadas, uma sarabanda
qualquer do diabo! E que poeira levantavam! Um cristão tremeria só
ao ver os saltos que eles davam.
Meu avô, apesar de todo o seu pavor, não pode deixar de rir, ao ver
que de que maneira os diabos com seus focinhos de cão e sua compridas pernas
de alemães, sacudindo o rabo, viravam ao redor das feiticeiras como rapazes
junto às moças, enquanto os músicos, batendo nas bochechas
com os punhos como se fossem pandeiros, faziam seus narizes assobiarem como flautas.
Mal avistaram eles meu avô, precipitaram-se todos em bando ao seu encontro.
Focinhos de porco, de cão, de bode, de betarda, de cavalo, todos estendiam
o pescoço e procuravam beijá-lo. Meu avô sentiu-se tão
repugnado que cuspiu; afinal, agarraram-no e o fizeram sentar-se em frente a uma
mesa tão comprida que iria perfeitamente de Konotop a Baturin.
"Muito bem! Ainda podia ser pior!" pensou o avô ao avistar em
cima da mesa carne de porco, salsichão, cebola e repolho misturados, e
muitas outras iguarias.
"Bem se vê que esse crápula de Diabo não observa o jejum
da quaresma"
Preciso dizer-lhe que meu avô nunca perdia a oportunidade, quando possivel,
de mastigar qualquer coisa; o finado tinha bom apetite; por isso, sem perder tempo,
puxou para si o prato onde estavam o toucinho e o presunto, apanhou um garfo quase
tão grande quanto o forcado com que os mujiques espetam o feno, fisgou
o pedaço maior, fixou com a mão uma codea de pão debaixo
do queixo e, no instante em que se dispunha a engolir o bocado, mandou-o, involuntariamente,
para outra boca, e junto a seus ouvidos ouviu uma caratonha mastigar com um ruido
de queixo que chegava às duas pontas da mesa.
Meu avô não disse palavra; espetou outro pedaço; já
estava com ele entre os lábios, mas novamente a garfada foi para outra
boca. O mesmo acontece na terceira vez. A cólera dominou meu avô;
esquecendo o medo e as garras entre as quais se encontrava, avançou ameaçador
para as feiticeiras.
- Mas como! Raça de Herodes! Estão pensando que vão continuar
zombando de mim? Que eu me torne católico se não lhes virar pelo
avesso as carrancas, caso não restituam imediatamente meu gorro de cossaco!
Mal acabou de proferir essas palavras, todos os monstros mostraram os dentes e
desandaram numa tal gargalhada que o coração de meu avô se
gelou.
- Está combinado - miou uma das feiticeiras que meu avô julgou ser
a presidente, porque sua carantonha ainda era mais feia que a das outras - Nós
te restituiremos o gorro... sob a condição de jogares conosco três
partidas seguidas de "durak".
- Que fazer! Um cossaco jogar "durak" com mulheres! Meu avô a
principio protestou, mas teve que ceder. Trouxeram cartas tão sebentas
quanto aquelas com as quais a filha de um pope procura adivinhar qual será
o noivo.
- Mas ouve - ladrou pela segunda vez a feiticeira - se ganhares, uma vez que seja,
terás o gorro, porém se ficares "durak" todas as três
vezes, não te deves queixar, nunca mais verá teu gorro, nem talvez
o mundo!
- Dá mesmo assim as cartas, feiticeira, aconteça o que acontecer.
As cartas foram dadas; meu avô apanhou seu jogo - nem valia a pena olhar;
pois se não recebera, por pilhéria que fosse, um trunfo sequer!
Entre os outros naipes, a carta mais forte era um dez; nenhuma figura, enquanto
a feiticeira jogava sempre as cartas altas. Meu avô teve que ficar "durak",
e mal terminara a primeira partida, de todos os lados as carantonhas começaram
a ladrar, a rinchar, a grunhir: "Durak", "durak", "durak!"
- Que a pele de vocês arrebente, raça do diabo - exclamou meu avô
tapando os ouvidos.
"Vamos, pensou ele, a feiticeira trapaceou ao embaralhar as cartas; agora
é a minha vez."
Deu, voltou a carta do trunfo, olhou seu jogo que era bom; também tinha
trunfos; sem mais refletir, bateu com esse trunfos nos bigodes dos reis.
- Eh! eh! não estás jogando como cossaco? Com que estás cobrindo
minhas cartas, camarada?
- Como, com que? Com trunfos.
- Talvez em tua terra isso seja trunfo, mas aqui não.
Meu avô olhou as cartas e, de fato, eram de naipe comum.
Que velhacaria! - teve de ficar "durak" pela segunda vez e as impuras
puseram-se novamente a gritar ensurdecedoramente: "Durak"!, "durak"!,
"durak"!
A mesa tremia e cartas pulavam.
Meu avô cada vez mais se exaltava. Deu para a terceira partida. Como na
anterior, as coisas começaram muito bem. A feiticeira exibiu cinco cartas.
Meu avô cobriu-as e apanhou, no baralho, toda uma mão de trunfos.
- Trunfo! - exclamou ele, batendo com a carta na mesa a ponto de voltá-la.
A feiticeira, sem dizer palavra, cobriu-a com um simples oito.
- E com que estas cobrindo, velha diaba?
A feiticeira levantou a carta e meu avô viu que a dele não passava
de um simples seis.
- Estão vendo essa trapaça infernal? - disse meu avô ; e,
despeitado, deu um soco fortíssimo na mesa.
Felizmente a feiticeira só tinha cartas desirmanadas, enquanto que meu
avô tinha cartas que faziam par. Mostrou-as e, de novo, apanhou as cartas
no baralho; mas todas eram tão ruins que lhe caíram os braços,
e aquelas eram as ultimas. Com um gesto de indiferença, deixou cair sobre
a mesa um simples seis. A feiticeira apanhou-o.
- Ah! Tem graça, que significa isso! Alguma coisa está sendo tramada.
Meu avô pôs então disfarçadamente as cartas em cima
da mesa e marcou-as com o sinal da cruz. E de repente em suas mãos os ás,
o valete de trunfo; o que ele pensara ser um seis, era a dama do trunfo.
- Ah! Que imbecil fui eu! Queres o rei do trunfo? Ah, ah! ah! estás apanhando-o.
Ah! sua gata! e o ás, também o queres? ás! valete!
A trovoada ribombou pelo inferno. A feiticeira debatia-se numa convulsão,
e não se sabe de onde, bum! o gorro caiu na cara de meu avô.
- Não, isso ainda não me basta - bradou meu avô que recuperara
a coragem e punha o gorro na cabeça - se, imediatamente, meu valente cavalo
não se apresentar aqui em minha frente, seja eu estendido morto pelo raio,
neste lugar impuro, caso não os esbofeteie a todos com a cruz.
Já erguia o braço, quando de repente estalou diante dele o esqueleto
de seu cavalo.
- Eis teu cavalo.
O pobre homem chorou como uma criança ao olhar o esqueleto. Sentia falta
de seu velho companheiro.
- Forneça-me então qualquer outro cavalo para sair de seu antro.
O diabo fez estalar o chicote: um cavalo de fogo surgiu debaixo de meu avô
e levou-o como um pássaro para as nuvens. Entretanto, dominou-o o medo
no meio do trajeto quando o cavalo, não atendendo a seus gritos, não
obedecendo às rédeas, voou sobre os abismos e pantanais. Que lugares
não viu ele? Tremia-se só de ouvi-lo contar. Quando ele se lembrava
de olhar para baixo, avistava um abismo a pique, e aquele animal de Satanás,
sem se inquietar, marchava diretamente sobre ele.
Meu avô fazia todos os esforços para se sustentar, mas uma vez não
conseguiu. Foi atirado num precipício e seu corpo bateu com tanta força
no chão que ele já pensava estar morrendo, ou pelo menos, para falar
a verdade, perdeu a noção do que estava passando; quando recuperou
os sentidos e olhou em torno, já era dia e ele reconheceu os lugares que
lhe eram familiares: estava estendido no telhado da sua própria "kata".
Desceu e persignou-se.
- Que feitiçaria! Que coisas estranhas podem acontecer aos homens!
Olhou para as mãos, estavam ensanguentadas. Mirou-se no tonel cheio
de água e viu que seu rosto também estava ensanguentado.
Depois de se lavar muito bem para não assustar os seus, entrou mansamente
na "kata", e viu seus filhos andando de costas e mostrando-lhe com o
dedo a mãe deles, dizendo:
- Olha, olha, a mãe está saltando como uma louca.
De fato, sua mulher estava sentada, adormecida em frente a seu torno de fiar,
com a roca na mão e, em seu torno, estremecia sob o banco.
Meu avô tomou-lhe docemente a mão e acordou-a.
- Bom dia, mulher! Estás passando bem?
Ela, com os olhos arregalados, olhou-o longamente, e por fim, reconhecendo o marido,
contou-lhe que, em sonhos, vira a estufa andar pela "kata" afugentando
com a pá as caçarolas, as tinas e o diabo sabe mais o quê.
- Vamos - disse meu avô - tu só viste as diabruras em sono e eu acabo
de vê-las realmente. Muito convicto estou de que será preciso mandar
benzer nossa "kata". Quanto a mim, não tenho mais um minuto a
perder.
Depois de rápido repouso, meu avô apanhou um cavalo e, desta vez,
sem parar dia e noite, chegou a seu destino e entregou a carta à Czarina.
Em Petersburgo meu avô viu tantas maravilhas que durante muito tempo não
lhe faltou o que contar: Como o conduziram a um palácio tão alto
que nem dez "katas" colocadas umas sobre as outras o alcançariam;
como atravessou um quarto sem encontrar ninguém, outro, ninguém,
um terceiro ainda sem ninguém, ninguém ainda no quarto e somente
no quinto é que olhou e viu a pessoa sentada com uma coroa de ouro, com
sua "svitk" cinzenta, nova, de botas vermelhas a comer "galucki"
de ouro; como a Czarina mandou que enchessem de cédulas azuis o gorro de
meu avô; como... Mas seria um nunca mais acabar!
Quantos às suas rixas com o diabo, meu avô esqueceu-se mesmo de pensar
nelas, e se acontecia alguém lembrá-las, meu avô conservava-se
calado como se o caso não fosse com ele.
Para castigá-lo, provavelmente, por não haver, como dissera, feito
benzer a sua "kata", todos os anos, exatamente no aniversário
da aventura, acontecia à sua mulher o fato extraordinário de dançar
involuntariamente. Não havia meio de evitá-lo. Estivesse cuidando
do que fosse, suas pernas começavam a se mover e, Deus que me perdoe, acabavam
executando as mais extravagantes cabriolas.
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