Com trinta e oito anos todos lhe diziam que era a melhor idade. Porém,
nada estava dando certo. Os amores findaram, os ódios permaneceram, os
medos principiaram. Serpentes traiçoeiras invadiam sua cabeça. Consultava
tiradeiras de sorte, jogadoras de búzios: é inveja, você causa
inveja nas pessoas, precisamos limpar seu corpo e mente.
Meu corpo, meu templo, minha cabeça minha sorte.
Fobias contemporâneas: medo de elevador, claustrofobia, medo do trânsito,
dos transeuntes, das mulheres. Travas especiais nas portas do carro, vidros à
prova de balas, as de açúcar e as de aço. Temor de assaltos
com portas abertas. O terror encorpava-se. Deixara de dirigir.
No último assalto o motorista o deixara nu. Nu sentiu-se renascido. Mudaria para o campo,
sem poluição, sem bandidos, sem nada.
Instalou-se no chalé rústico. Eliminou os vestígios do último morador.
Manhãs de sol, água de cachoeira, mata virgem, como ele na nova vida. A solidão recompensada, nova chance de chegar à velhice. As fobias desapareceram,
com o cheiro de comida caseira vindo do fogão a lenha, preparada pela mulher
de lenço na cabeça. Aromas perturbadores.
O sexo o incomodava. A mulher também. Agricultores usavam as cabrinhas. Serviam para todos os apetites. Integração com a natureza. Precisava de mais tempo. Depois, quem sabe?
A mulher continuava vindo todas as manhãs. Seu pescoço era cilíndrico, suas pernas, roliças. O restante escondia-se sob os panos. Então foi picado na virilha quando dormia sob árvores repolhudas: à mostra dois pequenos furos. A partir daí, olhos vermelhos e virilha inchada, o medo voltou imperativo. Alucinações.
Sorrateira, a mulher de lenço na cabeça o analisava. A floresta aniquilava os
últimos sinais de urbanidade dentro dele. Feridas instalavam-se. O sol queimava. O vento fustigava. Um dia viu a mulher sem lenço, sem nada, seu corpo viscoso e branco vestido com o véu de água da corredeira. A virilha cada vez mais dilatada impeliu-o ao ataque do desejo. Lançou-se sobre a mulher arredondada e a felicidade instalou-se. Acordou nu envolvido pela sertaneja sensual. Ao lado o banquete cheiroso. Fatias gordas de peculiar salame
branco, salpicadas do verde da floresta. Perfume de carne inundando o bosque encantado.
O alimento acalmou o pavor. Então percebeu a virilha desinflada. E horrorizado
descobriu que se já não era mais urbano nem um selvagem poderia
ser. A mulher de pescoço cilíndrico despojara-o de sua identidade. Não
tivera forças para defender-se ao ser arrastado para a caverna sob a cascata.
O clec da porta da jaula misturou-se ao burburinho das águas. Ela despediu-se
com um agora teremos alimento. E o deixou ali à mercê da natureza.
Num dia lindo de céu azul, de espetacular brilho nas plantas, fracamente divisado
do fundo da jaula pelo seu olhar já opaco, ela aproximou-se ondulante e
traiçoeira. A última coisa que sentiu foi a forte picada na axila
esquerda. Mas ainda pode distinguir com os olhos embaçados a grande serpente
branca transmutando-se na mulher de pescoço cilíndrico e pernas
redondas. No ar o doce aroma de carne.
(Conto publicado na coletânea Sabores Macabros; edit. e:Veredas)