Os pais estavam preocupados. O pai nem tanto, um pouco talvez, criado sozinho
de déu em déu, achava que as crianças têm que se
acostumar a tudo. A mãe, já mais consciente de seu dever, e criada
em ambiente familiar, estava apreensiva. Afinal a filha tinha somente cinco
anos e nesse pequeno espaço de vida muitas mudanças já
haviam sido feitas.
Primeiro, a mudança da casa de seus avós para o fléte de
trinta e nove metros. A menina saíra do útero para a jaula _ a
jaula era o fléte-trinta-e-nove-metros-quadrados onde estava seu mundo:
os brinquedos, o berço portátil, suspenso por dois fios de aço
ao teto, a cama dos pais logo abaixo, as estantes de livros e bichos de pelúcia
ao redor do quarto, os móveis da sala, o balcão que escondia o
gabinete composto de pia e fogão.
Ao redor da sala, prateleiras recobertas de trepadeiras, que cresceram até
o teto engrossando as hastes de jiboia, transformando-as em cipós,
para dar um pouco de oxigênio ao lugar, dizia o pai, para a garota fazer
exercícios, dizia a mãe, vendo-a pular de galho em galho, desde
nenê. Abaixo das trepadeiras, o som, a televisão, as caixas de
cedês, o tapete de zebra, sobre o qual a garota dava seus gritos de tarzã,
os pais achavam lindo, a mesa de centro que servia para reuniões, apoio
para aperitivos, e para os pés na intimidade.
No minúsculo terraço a máquina de secar roupas lavadas
no banheiro, e que enchia o pequeno espaço de vapor quente, bom para
as plantas como dizia o marido, e para a menina fazer buuuu assustando os pais
de brincadeirinha. Agora mudariam para um espaço um pouco maior, um apartamento
de cinquenta e três metros num vigésimo terceiro andar, empréstimo
do sogro capitalista como dizia o marido.
A menina, com os seus cinco anos, hesitava em deixar a jaula mas o pai prometeu-lhe
um macaquinho, empalhado, teria que ser, argumentando que um de verdade morreria
de frio na ventania do terraço, melhor, terracinho. Bem, tão pequena,
o máximo que podia fazer era um muxoxo, ao que o pai não ligou
e a mãe sentiu o coração partir. Mudaram, a gaiola com
o macaquinho empalhado foi para o terracinho cercado com tela, onde a menina
passava a maior parte do tempo esperando o macaquinho urrar, um dia ele urra,
consolava o pai e a mãe sentia-se mal enganando a filhinha.
Os dias passaram, a mãe arranjou um emprego, o pai passava o dia todo
no escritório, a filha foi para o maternal onde a mistura de babá
e faz-tudo a apanhava no final da tarde. O macaquinho urrou? perguntava a menina
para a babá, ora, sua bobinha, macaco de palha não urra, urra
sim, respondia ela, um dia ele urra, meu pai me disse, e ia para o terracinho
esperar o urro do macaquinho enquanto a mistura de babá e faz-tudo preparava
o jantar.
Naquele dia a menina abriu a porta da gaiola, assim os amigos do macaquinho
poderiam visitá-lo, e ele contente, urraria. De fato os amigos apareceram
e espremendo-se pelos buracos da tela encheram a gaiola de urros, o que animou
o macaco empalhado que disparou seus próprios urros como um belo espécime
africano. Foi um concerto geral. Na hora do jantar o pai e a mãe chegaram
e chamaram a menina para jantar. Ela apagou a luz do terraço e sentou-se
à mesa. Pai, o macaquinho urrou. Ora menina, macaco empalhado não
urra. Urra sim. Bem, talvez um dia ele urre. Então a garota resolveu
guardar o seu segredo.
E assim, todos os dias ela abria a porta da gaiola, apareciam os amigos do macaco
empalhado e faziam o grande concerto. A mãe começou a implicar
com a babá mistura-de-faz-tudo, reclamando que a casa estava cheirando
a cocô de macaco e a empregada respondia que macaco empalhado não
faz cocô. Mas o cheiro estava ficando insuportável, o terracinho
cheirava a selva africana, o pai nervoso dizia que macaco empalhado não
urra, e a babá odiava o causador da discórdia. E se ela desse
um fim nele? Resolveu vigiar a menina. Achou que ela sujava o terraço
de cocô de propósito. Mas não tinha tanto tempo assim e
a única coisa que via era a garota abrir a porta da gaiola e ficar ali,
estarrecida olhando aquele macaco sem vida. Sentia vibrações no
ar, ela era meio espírita, e por incrível que pareça, percebeu
que a tela estava cheia de pêlos de macaco.
À noite comentou o fato com o patrão. Macaco empalhado não
tem pêlo, respondeu ele, você está preparando o ambiente
para pedir aumento. Mas para poder jantar, tiveram que fechar a porta do terracinho
porque o cheiro de cocô de estava insuportável. A menina correu
na frente e fechou a porta da gaiola e retirou pêlos da tela, e colocou-os
na fronha onde os escondia todos os dias.
Os dias se passaram, a menina entrou no prézinho, e depois no círculo
básico. A essa altura a fronha já estava cheia de pêlos,
o terraço cada vez mais fedido, esse cheiro deve ser do rio Tietê
dizia o pai, a babá havia pedido a conta, e todos os dias depois da aula
a menina, abria a porta da gaiola, para ouvir os maviosos urros dos macacos.
Antes de sair, a babá resolveu dar uma espiada no macaco. Abriu a portinhola
da gaiola e teve a sua mão arrancada e triturada. O macaco lambia os
beiços ao mastigar os ossinhos daquela mão incauta.
A garota assistiu a tudo por detrás da porta, urrando de prazer. A babá
foi levada ao hospício em crise de terror, os médicos achando
que ela havia arrancado a própria mão para receber o seguro, enquanto
ela urrava, foi o macaco, foi o macaco.
A nova faxineira limpava todos os dias o terraço, recolhia os pêlos,
deixava num canto e a garota as colocava na fronha. Até que um dia a
menina pediu a mãe para costurar a boca da fronha fofa dos pêlos
dos macacos. Ela costurou e nada perguntou, mas o pai sim, pêlos de macaco?
Ora papai, macaco empalhado não tem pêlos. Nem urra, falou o pai.
Nem faz sujeira falou a mãe.
Um dia tiveram que se mudar. O mau cheiro estava insuportável. O marido
ganhou um extra numa negociata, comprou um apartamento financiado e devolveu
o emprestado ao sogro. Antes porém teriam que dar um jeito naquela gaiola,
ele não queria empestear o novo apartamento.
A garota não levou a gaiola. Somente a fronha de pêlos onde escondeu
o macaco empalhado. O novo lar não tinha terraço, mas tinha um
jardim de inverno com uma enorme jiboia verde e grossa onde a garota
escondeu o macaco. Na primeira noite enquanto os pais comemoravam a mudança
com uma fogosa noite de amor, o macaco saiu da jiboia, a menina cobriu-se
dos pêlos, entraram no quarto do casal e enquanto o macaco triturava com
os dentes os dedos das mãos e dos pés do pai, a garota mastigava
os seios da mãe que horrorizada reconheceu o macaco empalhado mas martirizada
e dolorida não conseguia atinar que bicho era aquele, todo preto de loura
cabeleira cacheada. Mortos pai e mãe, a menina e o macaco saltitantes,
dando voltas alucinantes de prazer ao redor da jiboia verde, enterraram
o casal no jardim de inverno, não sem antes esquartejar o que restara
dos corpos. Depois de tudo pronto, menina e macaco sentaram-se no tapete e urraram
a noite toda.
De onde se deduz que crianças criadas em jaulas surpreendem.