Que era lobisomem descobri por acaso. Não que isso me incomodasse ou
a alguém nesse século vinte e um pleno de aberrações
humanóides. Mas foi naquela sexta feira sangrenta que o cheiro de carne
humana despertou meu apetite.Afinal o cardápio estava alucinante.Corpos
de todas as idades, alguns ainda conservando os adornos da juventude há
pouco perdida, outros imbuídos das características da morte, formas
variadas para agradar ao gosto do gourmet mais exigente. Jovens donzelas de
carne fresca, apetitosos garotos ainda impúberes, velhos gastos com ossos
à mostra, enfim uma seleção atraente para gourmet algum
reclamar, exibiam-se na bandeja de asfalto. Naquela noite de carnificina, o
desejo inexplicável daquelas carnes sangrentas, desencadeou o primeiro
surto do que seria não a minha maldição mas a iniciação
de um prazer incontido. Descobri que não precisaria ser necessariamente
um assassino. Não haveria o desconforto de matar a vítima escolhida.A
polícia local providenciaria o farnel a serviço da lei, e às
sextas feiras durante o passeio noturno pelo centro da cidade, o banquete estaria
pronto. Percebi, no entanto, que haveria uma exigência dos meus sentidos.
O sangue deveria estar fresco e quente. E então todas as sextas, à
meia noite, hora dos mistérios e da lua maior, e da incógnita
o uivo aparecia. Vigoroso, exigente. Sentia que meus pelos se eriçavam
ao desejo, e o meu corpo franzino se avolumava.Meus braços cresciam e
meus caninos se alongavam.Um mistério fascinante da natureza. E eu, que
há bem pouco tempo, aceitava qualquer convite para deixar a cidade desvairada
no fim de semana, agora ansiava pela sexta feira, pela noite, pelos tiros de
metralhadora, ribombar extasiante que prenunciava delírios noturnos.
O que há com você, diziam as namoradas ocasionais, resolveu se
esconder no apartamento?
Lógico, argumentava, tentando ser convincente, quem ser atingido pelas
balas perdidas? Mais um motivo para fugirmos daqui, pegar uma bela praia, um
bom motel. Criaturas ingênuas não suspeitavam de que suas vidas
corriam perigo em minha companhia às sextas à noite.A ansiedade
era tanta que esses diálogos impertinentes aqueciam o meu interior, os
pelos se eriçavam, e a transformação se anunciava precoce.
Depois eu ligo se mudar de ideia, respondia apressado, ansioso pelo prazer
que só a solidão me proporcionava. Beatriz, a mais exigente. Exigia
a minha presença, compromissos, não era mulher de ficar. Diante
dela o medo aparecia. O temor de atacá-la, de devorá-la aos poucos,
de saborear a carne apetitosa e perfumada. Beatriz, segunda conversamos, tenho
trabalho extra me esperando. Fim de semana? Prometo que será o último.
Promessa repentina, gotas de suor aflorando, sexo exigindo, não a consumação
do ato carnal, mas a consumação da fome voraz que me transportava
à dimensão do orgasmo jamais experimentado por um ser humano.
Ah, Beatriz, se o desejo de amor me impele ao seu encontro o apetite voraz me
faz recuar. Ora, que sentimento louco é esse nada peculiar a um mutante
filho da lua? Aos poucos a sanidade e a memória se diluem. E a fuga para
o nada se inicia.. Misturo-me aos mendigos de rua, era fácil, afinal
um mutante das sextas que se cobre de pelos surgidos do nada e mostra caninos
alongados não é surpresa nesse mundo de aberrações.
As abandonadas da sorte, adolescentes assexuadas aproximam-se curiosas, que
dentes grandes para o que servem? Ah, o cheiro daquele sangue quente e novo,
afinal elas pedem, querem conhecer o lado do sexo abnormal e inconsequente,
nada tinham a perder e eu, tudo a ganhar. Para te comer minha chapeuzinho, e
entre suas risadas, o roçar dos dentes em sua pele fina, a vibração
de seu corpos novos, o acarinhamento de meus pelos longos, de unha compridas
rasgando a carne, se não as levam ao delírio, levam-me à
mais completa satisfação orgástica já provocada
por um adulto mutante.Que venham as sextas feiras, esse dia glorioso em que
até a lua se transmuta para encantar com seus raios prateados os escolhidos
da sorte.
Acordar na minha cama de lençóis de cetim prateado, limpo e lavado
do ritual da noite anterior excita a minha imaginação a ponto
de querer declarar ao mundo a minha felicidade. Mas como felicidade só
cabe aos pobres de espíritos, decido que conservar, sem elucidar o mistério,
transformará minha pacata vida de executivo na mais alucinante aventura.
Jamais, entretanto, poderei prescindir de Beatriz, do seu cheiro de mulher,
das suas formas roliças, o fator desencadeante da minha transformação.
Ah, hoje é sábado. Meus caninos descansarão, meus pelos
se acalmarão e eu serei por mais uma semana o cavalheiro esperado. Mas
as sextas continuarão no calendário. E a lua no céu, brilhará
mais nessa noite de evocação, de chamamento.