Não, querida: eu te odeio. É muito simples, basta pensar que dois
mais dois são quatro, é bem claro. Porque sou idiota, talvez.
Porque eu tenho razão em te odiar, talvez. Porque o ódio não
precisa de motivos muito sérios e profundos para mostrar a face. Porque
vivo de mau humor. É mais ou menos tudo isso junto.
Sim, querida: eu te odeio. Há muito tempo que te odeio. Ressentimento?
Deixa eu ver: não. Sim, pode me presentear com um tapa, não me
importo, é até saudável. Mas é engraçado
pois, quando eu vivo calado, tu reclamas porque não digo o que penso
ou o que sinto, e quando resolvo me abrir e assumir meu lado sincero, sou tido
como monstro insensível e calhorda. O mundo definitivamente não
é feito de sinceridades. Então odeio e também te odeio.
Aqui está a outra face. Não, não, fique à vontade,
pode bater.
Por favor, não chora. Odeio quando choras. É tudo tão ridículo
e entediante, as mesmas frases bestas e cheias de sentimentalismo tradicional.
Que papelão. Tome esse lenço, pode assoar o nariz, não
seja polida. Nessas horas a coisa mais odiosa é a polidez, querida. Não,
pode ficar com ele, leva contigo, eu não vou precisar. Mas perceba que,
afora o ódio, tudo continua como antes, é apenas um modo franco
de vida que pretendo levar contigo, se quiseres assim. Não, não
queres, eu já suspeitava. A verdade é sufocante nessa relação.
Estou ouvindo, querida. As minhas coisas? Mas a casa é minha, esqueceste?
És tu quem deve sair daqui, se é que realmente queres sair daqui.
Eu não disse que precisavas ir embora, não ponha palavras na minha
boca. Sim, preferes desse jeito, é melhor para nós dois. Isso
és tu quem diz, por mim tanto faz. Não me olha assim, continuo
sendo sincero. Afinal, que mal há em ser sincero? Ah, não é
necessário ser tão sincero, compreendo. É que as pessoas
são treinadas para ser estúpidas e cegas. Minha humilde opinião.
Sim, eu também, querida, eu também sou estúpido e cego.
Tens certeza de que queres partir? Pode ser amanhã, então, não
te apresses. Tudo bem, queres te ver o mais longe possível de mim, e
quanto antes melhor. Pois que assim seja. Não te preocupa comigo, tudo
vai ficar bem. Sim, pode levar essa mala, eu a usaria para ir à praia
nas férias, mas compro outra depois. Pára de chorar, mas que deprimente
isso, querida. Tu és tão bonita, tua maquiagem fica muito borrada.
Eu sou o culpado, sei. Bom, nessas horas alguém tem de levar a culpa
sempre, não é mesmo? Aquele quadro é teu, estes discos
também. Pronto, deixa eu ajudar a fechar a mala. Está bem, já
vi que não precisas de ajuda, muito bom. Vai pra onde? Não me
interessa. Hum-hum. Quer uma carona até algum lugar? Está escurecendo,
eu me preocupo contigo. Eu sei o que acabei de dizer, e repito: eu te odeio,
sim, te odeio. Mas me preocupo contigo. É difícil de entender
e aceitar? É como também acabei de dizer: as pessoas são
treinadas para - está certo, calo minha boca.
Posso te telefonar? Não, não posso me esquecer de ti, querida.
Pelo menos não de uma hora para outra. Sabes que as coisas não
funcionam assim. Está certo, não telefono. Tens certeza da carona?
Certo, calo minha boca de novo. Então até amanhã. Até
nunca mais? Não sejas precipitada. Não queres lavar o rosto para
tirar essa maquiagem borrada? Tudo bem, não está mais aqui quem
falou. Até mais, querida. É pena que tu não consigas aceitar
minha sinceridade, mas eu também não posso te obrigar a nada.
Toma cuidado. Tens dinheiro na bolsa? Não, querida, o inferno é
quente demais para mim, sabes que eu jamais irei para lá. Olha o degrau.
Vou sentir tua falta, mas não somos escravos um do outro. Manda notícias.
Se quiser conversar melhor daqui a um tempo, estarei sempre te esperando. Só
me faz um favor: não bata a porta, ela está com um problema sério
na fechadura e - é, bateu.