- Me dá teu fogo?
Festa, todos bebendo e cantando e dizendo besteiras de todo dia. Véspera
de feriado. A música alta já não abafa as vozes em frente
à casa, onde há fumantes e depressivos e eu-fóricos.
- O quê?
- Esse fogo verde no teu rabo.
Ela por um momento não compreende o pedido, fica com o cigarro a meio
caminho dos lábios, fitando a amiga que sorri um sorriso cansado, melancólico
e alegre, sentada no beiral da janela. Pessoas passam pela calçada agasalhadas
do frio, e arriscam uma espiada para a reunião de conhecidos e desconhe-cidos
espremidos entre si na varanda.
- Como assim?
Ideias, ideias. Conversas sobre futebol e mulheres e ho-mens e
falta de dinheiro e mulheres e sexo e comida e homens e cigarro e sexo. Momentos
simultâneos, quentes, aconchegan-tes. Coisas de vida social, de hormônios,
de desejos, de frustrações, de vida.
Um terceiro escuta o pedido, e fica observando a cena calado e curioso. Ela
está de costas, não percebe seu olhar irônico voltado para
o lugar onde a amiga apontou. Realmente há um fogo verde guardado ali.
E um segundo que apenas ele consegue enxergar.
- Ah, você tá falando do isqueiro?
Todos querendo tudo, conseguindo pouco. Companhia e ál-cool e gargalhadas.
Por enquanto, o suficiente. Alguns com melhor sorte: abraços, beijos,
o sexo carnal após o verbal.
- Mas é claro, eu tô com o cigarro aqui ainda sem acen-der, e você
com esse fogo verde aí na bunda.
Um isqueiro verde, apenas um isqueiro verde escondido no bolso traseiro da calça
jeans dela, que o pega e empresta à amiga com uma risada relaxada.
O terceiro toma um gole da cerveja e continua a observar, com o mesmo sorriso,
e acende o seu cigarro com seu fogo vermelho. E o segundo fogo ainda está
ali, no mesmo lugar, na mesma ardência, distante. Só ele o vê
e o sente naquele frio, entre aquela gente.
- Valeu.
É, valeu.