A Garganta da Serpente
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O crânio

(Marlon Vilhena)

Não estava bem. Realmente, merda, eu não estava bem. Queria sair para algum lugar e encher a cara, tomar todas e mais algumas disponíveis, mas não sabia para onde. Decidi vestir minha calça e ir até o primeiro boteco que aparecesse na rua. Eu não conhecia ainda muito bem a região, havia me mudado há pouco tempo para lá, mas já tinha a noção de que não era muito movimentado. Quase não passava alguém por ali. Merda.

Fechei a porta, atravessei a varanda, abri o portão. Tudo escuro, onze e quinze da noite. O poste de iluminação falhava, aquela luz branca agoniava minha visão com aqueles piscos repentinos. Minha cabeça girava, e não havia apoio para parar, girava rapidamente; eu tinha que ir a algum lugar, tomar novos ares, fazer algo fora da rotina. Depressa.

Andei com passos pequenos e ágeis, fazia frio. Inverno rigoroso era comum naquela cidade. Minha blusa era pouca proteção para o vento que parecia bater no asfalto e subir para as narinas, querendo invadir-me e congelar meus pulmões. Foda-se, pensei, foda-se. Caminhei ereto, sozinho, sem outro transeunte para me avisar de que aquele mundo não estava abandonado. E a cabeça doía. Ainda. Enxaqueca filha de uma puta. Apareceu no final da tarde, pouco antes do fim do expediente na fábrica. Talvez tenha sido o cheiro excessivo dos produtos químicos, aqueles solventes todos querendo devorar-me a mim e a minhas mucosas. Mas a máscara contra gases me incomodava, eu não conseguia acostumar-me a ela. Foda-se, e segui rua abaixo.

Três quarteirões para a frente, e lá estava um boteco, apenas uma portinha entre uma farmácia e uma padaria. Avancei um pouco mais o passo, o vento agora gritava em meus ouvidos, e eu não estava afim de puxar uma conversa com o dito cujo no momento. Espiei o interior: quatro mesas dobráveis pintadas de branco, algumas cadeiras arrumadas, três velhos sentados e um bebum no balcão, acompanhado de uma garrafa de cachaça e um copo pequeno. O dono do estabelecimento não estava à vista. Entrei e saudei os quatro presentes. Apenas um dos velhos respondeu baixo, mas educado o bastante para fazer a observação estúpida de que a temperatura lá fora estava muito baixa. Olhei ao redor. Ninguém para atender. Perguntei sobre o balconista, disseram que estava no banheiro, aquela porta carcomida atrás de uma pilha de engradados de cerveja. O bebum mirou-me, com os olhos rasos d'água, a boca retorcida. Estendeu-me a mão flácida. Raul, apresentou-se; cumprimentei-o e sentei-me num banco alto, um pouco afastado de si.

- O Seu Carlão num vai demorar, é que tá com um pobrema urinaro, foi o que me disse.

- Urinário. - corrigi-o.

Tentei avistar alguém na rua pela pequena janela ao lado da porta fechada, enquanto esperava o homem sair do banheiro, para não ter que suportar aquele bafo carregado de álcool. E não ser obrigado a encará-lo, eu não queria piorar minha enxaqueca, muito obrigado, aquilo já era o suficiente.

Afinal Carlão saiu da incontinência fisiológica, e fiquei a me perguntar o porquê do apelido aumentativo, se o sujeito não passava de um metro e sessenta de estatura, era franzino, de uns cinquenta anos e carregava um semblante desgraçado, marcado de doenças e sei lá que mais problemas aquelas duas cicatrizes escondiam, uma no queixo e outra maior na testa calva.

- Boa noite, em que posso servi-lo?

- Uma cerveja.

O senhor voltou-se, abriu um refrigerador e de lá tirou uma garrafa, arrancou a tampa com um baque na beira do balcão, puxou um copo de tamanho médio e deixou ambos à minha frente. Virei a bebida no recipiente e de um só gole bebi quase a metade. A dor de cabeça ainda estava lá. Como a escarnear de mim. Foda-se, falei baixo.

- Como? - perguntou Carlão, desconfiado.

Fiz um gesto negativo com a mão e enchi o copo novamente. Voltei-me sobre o banco em direção à porta de saída e fiquei a vigiá-la. Os três velhos estavam um pouco mais à frente de minha visão, jogando baralho. Buraco. Canastra. Não prestava atenção, não me importava. Raul começou a cantarolar uma canção sertaneja qualquer, eu já a tinha escutado no rádio algumas vezes; não desafinada daquela maneira, mas a reconhecia. O homem não sabia a letra muito bem, por isso repetia o seu refrão incessantemente. No princípio aquilo não me incomodava, mas minha cabeça aos poucos foi-se enchendo da voz, do timbre da voz rouca e amargurada, das palavras, do ritmo desritmado, tanto que me levantei sutilmente, dirigi-me a uma cadeira com minha garrafa e depositei-a sobre uma mesa ao lado dos jogadores. Sempre olhando para fora. Como que fugindo da imagem deteriorada daquele ambiente.

Havia uma banca de revista do outro lado da rua. Fechada, óbvio. Uma árvore balançava cobrindo seu teto. Não entendo de árvores, não sei qual era, mas notei que era de folhas verdes, como quase todas. E um pequeno vulto rastejou-se de detrás de seu tronco grosso para detrás da banca. Um ser indistinto naquela penumbra onde a luz elétrica recusava-se a chegar. E rastejando. Ao menos era curiosa a cena. Esperei um pouco mais para ver a figura aparecer do outro lado da banca, mas isso não aconteceu. Procurei mais alguém que pudesse ter percebido aquilo, porém no boteco todos continuavam seu mergulho no tédio, e lá fora um carro virou a esquina de cima para logo sumir na de baixo. Só.

Minha dor de cabeça mantinha-se com todas as suas malditas garras, no entanto o que crescia naquele momento era uma leve excitação. Entornei o copo cheio, limpei a boca na manga da blusa, dirigi-me ao balcão, paguei a cerveja a Carlão, agradeci e mantive-me de pé no batente. Senti o vento mais uma vez. Estava pior, mas repeti a mim próprio minha máxima: foda-se. Caminhei lentamente atravessando o asfalto, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Um simples joão-ninguém de volta a sua casa, era o que se podia dizer.

Aproximei-me mais pelo lado da árvore, enquanto ia descendo a rua, fingindo olhar para cima, tomando o cuidado com um possível maluco motorizado e acelerado a pegar-me desprevenido. Não, era aquele canto que eu queria descobrir, aquele cantinho escuro e frio e quieto. Quieto até o instante em que distingui um chiado em meio ao zumbido do vento. Um chiado rápido. Um animal, mais certo que fosse um gato, supus. Parei, atento ao vão entre a banca de revista e o tronco. Era uma mangueira, pude perceber agora, mais de perto. Mas o que importava era o vão, ou o chiado, ou o animal, o que quer que estivesse ali.

Dei um passo à penumbra. Nada. Outro passo. Somente o vento a azucrinar-me. Brevemente avistei o boteco: um dos velhos havia se levantado, devia ter ido ao banheiro; pela janela embaçada ao lado da porta pude ver Raul escarrar seus pensamentos para Carlão, enquanto este sequer o encarava, mais preocupado em arrumar algumas garrafas na prateleira atrás do balcão. Três, quatro segundos, o bastante para distrair-me e ter algo roçando minhas pernas. Pulei para cima da calçada, e então vi um gato de rua magro e amedrontado a olhar-me com umas pupilas brilhantes e carentes. Estranho que não tivesse fugido com o meu pulo, é como reagem normalmente, pensei. Miou fracamente, e foi aí que notei suas patas traseiras. Quebradas. Ou ao menos assim pareciam, uma das patas estava torcida para o lado interno da perna, a outra sangrava. O bichano estava meio deitado, meio sentado sobre o meio-fio, miando fracamente. Chorando, à sua maneira.

Subitamente a enxaqueca voltou, e tive de me apoiar com a mão no tronco da mangueira para não tropeçar; senti-me tonto, respirei fundo. Porra, foi o que consegui praguejar, e as pupilas ainda me fitavam, esperando. Esperando? Como assim?, e tratei de ficar ereto e firme para encará-lo.

- O que quer de mim? Não tenho comida, nem sou veterinário, pode esquecer.

O gato não respondeu, sequer miou. Lambeu a pata sangrenta, e voltou-se para mim novamente. Comecei a tomar conta do absurdo de conversar com aquele ser acabado a quase meia-noite, e pus-me a subir a rua. Após alguns passos decididos, esbarrei com a ponta do pé esquerdo em algo duro e leve. Algo foi rolando até bater na parede metálica da banca. Olhei para verificar o que era, o gato atrás, quase petrificado. Abaixei a vista mais um pouco.

- Mas que...

Agachei-me e peguei aquela forma insólita e ao mesmo tempo familiar, as mãos começando a suar. A superfície estava fria. Tinha de estar fria, era melhor que estivesse. Passei os dedos hesitantes sobre a fronte, queria que meus dedos confirmassem o que eu via. Não havia mais vento, não mais enxaqueca, não mais boteco, não mais canções desafinadas, eu estava anestesiado de tudo, não podia deixar de fitar aquilo em minhas palmas.

Saí das sombras. O gato rastejava-se sofrendo e chorando atrás de mim. Um crânio. Humano. Os ossos bem limpos, brancos, a ponta da fossa nasal lascada, um dente canino faltando ao maxilar superior, outro molar faltando ao inferior. A nuca partida, uma pequena rachadura em sua base. Um crânio era o que eu tinha em mãos, real, não de gesso ou outro material de molde, um crânio como daqueles mostrados em guias de anatomia humana. Humano. Engoli em seco: seria a desidratação da cerveja? Ainda era cedo para isso. Surpreso, maravilhado eu me sentia, como uma criança a descobrir um grande presente escondido. E que não sabia o que fazer com ele.

Voltei ao bar. Ainda a mesma cena deprimente, com o agravante de que Raul deixava escapar lágrimas enquanto sorvia mais da cachaça. O velho encostado na parede acabara de ganhar o jogo e deliciava-se com a decepção dos companheiros cansados. Não prestaram atenção a mim até eu depositar o achado sobre o balcão. O vencedor do jogo olhou e ficou como que hipnotizado; Raul engoliu seu choro e deixou cair o queixo horrorizado - benzeu-se; Carlão, lendo uma revista velha de esportes, de um salto saiu de sua cadeira ao lado da registradora e veio prostrar-se junto ao crânio. Os outros dois velhos, de costas para mim, ainda não haviam percebido o ocorrido, quando Raul começou:

- Pelo amor de Deus, moço, o que é isso, de onde o senhor tirou essa coisa, que é isso?

- Mas que diabos? Vá tirando isso daqui agora! - esbravejou o balconista.

Os dois velhos viraram-se e não criam no que viam, pensavam estar suas vistas falhando, imaginado coisas, tamanho o espanto em seus rostos. O bebum desceu de seu banco e ficou temeroso, de pé a meu lado.

- Que que o moço quer com isso?

Pedi outra cerveja, Carlão hesitou em atender-me, mas afinal estava ali para isso, e ofereceu-me mais uma garrafa. Dessa vez entornei a bebida diretamente do gargalo. Mirei aqueles olhos ossudos e fundos e mortos, entornei novamente. O que eu queria com aquilo? Boa questão.

- Isso não pode ficar aqui, não senhor! Se o senhor não der um jeito nisso, eu vou dar.

- É seu esse gato? - quis saber um dos velhos.

Ouvi um miado fraco vindo da porta.

- Minha Nossa, ele está muito machucado! Quem fez isso com o coitado? - Perguntou o mesmo velho.

Avançou para ele, o que fez com que o bichano desse outro chiado igual ao de antes. O homem insistiu outra vez, e quase leva um arranhão nas costas da mão direita: desistiu da tentativa de ajudá-lo e mandou-o à merda. Entretanto não tirava os olhos de cima do animal, um misto de fascinação e curiosidade naquele semblante desgastado.

Raul aproximara-se do crânio, ousando tocá-lo com a ponta dos dedos trêmulos. Carlão impacientou-se com toda aquela cena: pegou a bola de osso e ameaçou jogá-la pela porta. Fiquei quieto. Foi quando tive a impressão de que o bebum tivesse recobrado sua sobriedade, gritando para que o balconista não fizesse o que pretendia.

- Maldição, Seu Carlão! Num faz isso, é pecado, muito feio, num faz!

Arrancou o crânio de suas mãos e deixou-o protegido entre seus braços. Como um bebê frágil. Precioso.

Rapidamente arrancou umas notas do bolso da calça suja, entregou-as a Carlão, e saiu desejando boa noite a todos. Ainda olhou-me, esperando uma desaprovação minha. Que levasse aquilo, eu não estava com vontade de transformá-lo num bibelô na estante de minha sala. Mas não pude resistir à pergunta:

- O que vai fazer?

Não respondeu, saiu ligeiro. Diria que quase correndo. Subiu a rua e virou a esquina, enquanto o gasto inutilmente tentava alcançá-lo. Olhei aquilo da porta, enquanto todos os outros ficavam a me espiar perplexos, desconfiados, mudos. O bichano desistiu do objetivo e ficou estatelado ali no meio do asfalto, passível de ser esmagado por alguma roda de algum automóvel de algum motorista desatento. Pensei que pudesse ser uma boa ideia ajudá-lo a sair dali. Pelo menos isso.

Aproximei-me e atentei para seu focinho. Parecia respirar com dificuldade, o único movimento de seu corpo eram de seus pulmões lutando para continuarem a funcionar. Carreguei-o até a calçada, e já ia deixá-lo ali mesmo quando vi um dos velhos, o mais baixo dos três, chegar até mim e pedir-me o animal para cuidar de seus ferimentos. Disse que ele não me pertencia: eu nunca gostei de gatos. Com cuidado ele abaixou-se e ergueu o coitado nos braços, levando-o consigo rua abaixo. Não me despedi. Sabia que não tornaria a ver aqueles pêlos maltratados e manchados de vermelho outra vez. Não valia o esforço. Dei de ombros.

Terminei minha cerveja sentado ao balcão, enquanto me faziam todo tipo de perguntas acerca do acontecido. Respondi vagamente, não entenderam muito bem. Muito menos eu, como foi parar um crânio atrás de uma banca de revistas? O que um gato todo fudido estaria fazendo ao lado dele? Por que resolvi levá-lo ao bar, mostrando aquela coisa feia a todos? Por que será que Raul fugiu daquele modo - com o crânio sob os braços, como a escondê-lo de todos e de Deus? Eu tinha uma única dúvida: que horas eram?

- Amanhã vou passar na casa do Augusto pra saber daquele gatinho. Como ele foi ficar assim?

Paguei a garrafa, desejei boa noite pela última vez a todos e segui para casa. A dor de cabeça não cedia, contudo estava mais amena. Ainda fiz questão de olhar para trás enquanto caminhava. Talvez para avistar mais alguns crânios espalhados pelos cantos, em frente ao mercadinho, sobre o muro de uma residência, pendurado junto aos sacos de lixo de outra. Pensamento mórbido. Desejo mórbido. Adrenalina, simplesmente. Uma boa história a ser contada na fábrica durante o almoço.

Passei direto pela esquina. Instintivamente procurei o bebum. Ninguém por ali senão postes, árvores e portões fechados. Continuei o trajeto. Ouvi passos. Imaginei tê-los ouvido. Parei e voltei. Vinha daquela rua transversal. Agora os passos eram rápidos. Como se corressem. Tentei divisar alguém por entre as sombras: tudo estava quieto. Não havia pessoa alguma, repeti a mim próprio. Entretanto os passos iam sumindo ao longe. Pus-me a apertar os meus. Foi quando tropecei pela segunda vez na noite. E lá estavam. O mesmo crânio. E outro, este avermelhado. Sangrento. Novo. A enxaqueca filha de uma puta voltou com força total e tive de sentar-me ali na beira da calçada, de costas para aqueles ossos, aquelas covas fundas, os dentes, as testas e todo o maldito resto. A tontura voltou também. Foda-se, eu disse, e vomitei entre meus pés. Eu não queria, mas acabei por fazê-lo. Paciência. Encarei novamente as duas faces da morte. Riam. Gargalhavam entre si. Minha cara estupefata deveria estar realmente engraçada, com as sobrancelhas eriçadas e um fio de baba no canto esquerdo dos lábios. Levantei-me de um impulso só, cambaleei. Pedi licença, cumprimentei-as e chutei-as com toda a força para o meio da rua. Foda-se, sorri.

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