A Garganta da Serpente
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Canção morna

(Maria Vilhena)

(ao Nuno Lopes, que me ajudou a escrever este texto)

Despediu-se dele, no aeroporto.

Por um fim de semana, só por um fim de semana, mas parecia uma eternidade, um breve adeus numa relação pacata, onde na qual não se previa mudanças de ritmo, onde na qual os dias passavam devagar, chegando ele do trabalho, jantando, vendo televisão, buscando na Internet sensações e luzes para um sentimento quase vazio.

Ela, arrumava a loiça enxuta, li umas revistas, relia os contornos do prazo estabelecido pela editora, os quais tinham de ser cumpridos para que o livro saísse nas livrarias ainda nesse Verão.

Mas não tinha ideias, sensações, vontade de escrever palavras bonitas, graciosidades, não conseguia vislumbrar um começo de texto iludindo o seu pesar de sorriso apagado por beijos fugidios, abraços curtos, olhares mansos.

Ele, engenheiro, teria de ir coordenar um projecto de uma obra. Um edifício a ser construído na cidade do Porto. Gestor do projecto, partiria naquela quinta-feira ao início da noite, trabalharia até sábado na sede da empresa, descansaria no domingo, visitando a paisagem e regressaria segunda-feira pela tarde.

Ela ficaria por ali, tentando descortinar uma forma de começar a escrever, de se embrenhar por completo numa fantasia, num texto, num romance. Sozinha e em paz.

Afastou-se da partida do avião e na bagagem a leve paixão voou por um aceno de mão.

Andou a passos miúdos pelas ruas, vendo prédios, pessoas apressadas tirando a roupa dos varandins, lojas a fecharem num dia terminado, as empregadas da mercearia conferindo a caixa, crianças adormecidas nos braços de pais e de mães exaustos, um pôr-do-sol longínquo, tão longínquo como a sensação de ver desaparecer da sua essência aquele amor.

Na calmaria das horas a rodarem o relógio pendurado na parede do escritório, deu por si a atender uma chamada telefónica. Reconhecendo a voz, esboçou um leve sorriso sem vontade para tal, mas Graça logo a animou convidando-a a isolar-se consigo numa sala de cinema, numa volta pelos confins da capital, num clube de jazz, num café concerto. O certo, é que precisava muito de espairecer e daí lhe vir à mente sem muito se concentrar, o tal romance por escrever, as tais palavras nada esforçadas, a tal vontade de ser novamente reconhecida pelos leitores e sociedade literária, e principalmente ser animada por si própria.

Tomou um banho de imersão, penteou-se na lentidão do secador, embrulhada numa toalha turca, deslizou os chinelos de quarto para um canto, abriu o guarda-fatos, observando a roupa de cores baças, escolhendo uma blusa e uns jeans azuis-escuros, mirou-se no espelho enorme e arranjou a franja.

Graça esperaria por si espavorida no tom adolescente encarnado num ser adulto, sempre alegre, extrovertida, embalada num telemóvel, namorando uma conversa de Tango.

A praceta estava iluminada pelos candeeiros acendidos no automático movimento da passagem de uma hora para a outra, antevendo a solidão em redor, os renovados bancos de jardim distendidos por espaços alargados dando azo a que os olhares se encontrassem num gótico bem-estar concentrado na vizinhança encolhida em lares cheios de nada.

Lá estava a sua amiga sentada num dos bancos, pousando os cotovelos no tampo da mesa em mármore. Se fosse fotógrafa, parava a imagem, mostrando o perfil absorvido no espaço e no tempo, ouvindo as tais palavras - a serem recordadas no livro a produzir - numa imaginação de dança, criancice de mulher amada, apaixonada, terminando um jogo de cama ainda com o odor do sexo nas narinas, no pescoço, nos ombros descobertos, nos lábios húmidos por uma língua fresca, tocando os dentes, misturando risos com mãos percorrendo os cabelos, relembrando a tarde maravilhosa, estonteante, interminável.

Tudo isto, Graça lhe contou quando foi ao seu encontro, por entre um olá querida, estás estupenda, triste, mas estupenda e uma festa na cara desmaquilhada.

Os seus sapatos faziam barulho no asfalto ao percorrerem a praceta, atravessando passeios, passando por uma arcada, esperando pelo sinal aberto dando permissão para os peões passaram na vez dos condutores nos seus automóveis aguardando expectantes para o semáforo ainda verde.

Cada uma bebeu uma chávena de café ao balcão da cafetaria situada no primeiro andar do centro comercial, deram uma vista de olhos pelas montras, cumprimentaram o segurança e saíram sob a golfada de ar fresco vinda da porta giratória. Ainda tiveram tempo de ir à livraria uns metros mais à frente em busca de folhetins e revistas especializadas em letras e escritos, afim de dar ideias para o bloco de notas. De nada valeu o esforço, mas nunca desistindo, Graça passou o braço no dela, empurrando-a delicadamente ao som da melodia ouvida na loja.

Chegaram à entrada da sala de cinema, verificando ambas pela primeira vez em muitas vezes as luzinhas rodopiando o anúncio do nome da sala de cinema.

"Londres enfeitada pelas luzes da Brodway".

Descendo a meia dúzia de degraus, deram com a bilheteira. Compraram o filme a estrear na sala principal. Uma sala em tons avermelhados, quase esquecida pelo modernismo da arquitectura cinematográfica, fiel à história do espaço e dos amantes da arte, numa avenida movimentada, enriquecida de prédios cinquentenários, damas e cavalheiros em porte quase principesco, de olfactos farejando o diferente e a morosidade baixa dos sons saídos de bocas entreabertas.

Um rapaz em farda azul, direccionou-as a dois lugares na segunda fila perto da porta.

As cadeiras baixaram perante o peso dos corpos, ao som das molas preparadas para o jeito a dar ao assento confortável por duas horas de filme.

Na penumbra da escuridão descoberta pelos anúncios filmados na tela, começou a ver a chegada de mais pessoas, de caras à espera pelo moço de farda azul, dando conta de alguém falando baixinho num riso de intimidade, descansando um beijo longo na testa feminina, mostrando carinho na mão a vaguear pela delgada cintura e um aproximar de sentimentos novos, a cada investida de juntarem ambos os lábios num outro beijo terno.

No conforto dos pensamentos, ficaram a ver a fita a passar na tela.

Um conto de dois casais, não sabendo ao certo o pretendido do rumo a dar às suas vidas trocadas. Separações, virtudes, belezas naturais, empregos másculos. Também ele queria ser escritor reconhecido, ao ser fotografado num atelier simples, em que uma súbdita paixão o assola, esquecendo-se por completo da jovem esposa, querendo esquecê-la pela vez de um estado de alma consagrado, por uma pétala, uma réstia de amor correspondido no receio da mentira da vida.

Fê-la recordar de um passado ainda encoberto, mas depressa colocou essa vaga nuvem de parte num intervalo de dez minutos num corredor alcatifado e enfeitado por cadeirões em pele branca, transparecendo cinzeiros altos envoltos pelas restantes personagens reais, fumando e criticando a vista parte de um filme a continuar.

Acabando isto, levo-te a casa e amanhã pela manhã vou-te buscar e radicalizar a tua imagem.

Quero-te um bem incrível, minha linda amiga. Chega de amarguras.

Nem conseguiu ridicularizar as frases ouvidas, sendo de novo levada para a sala de tons avermelhados.

O sol ia alto no horizonte, quando Graça tocou à campainha sem avisar num telefonema, no hábito já estabelecido.

Vinha perfumada, numa vestimenta desportiva, cabelos desalinhados por uma espuma posta à pressa. Encontrou-a no escritório, deitando para o caixote do lixo folhas em branco amarrotadas, numa tentativa matinal em pôr letras com tinta, sem sucesso.

Táxi. Chamou, mostrando a covinha na face, decidida a concretizar a surpresa ao gosto da cortesia de personalidade desvairadamente culta.

Abre os olhos, querida. Assombra-te com o espectáculo da tua figura esbelta.

O corte tinha ficado fenomenal. Curto e aloirado por madeixas de vários tons claros, o cabelo transbordava alegria, num rosto a maquilhar na sala contínua a esta e numa outra loja, vestiria a modernice da moda escolhida por Graça.

Nessa noite de sexta-feira levá-la-ia a ver um espectáculo de rua, de cores, de sensações, outra surpresa preparada e agraciada por amigos, estranhos seres navegantes pelo saborear a vida com outros olhares.

Tenho a certeza das tuas palavras borradas em papel branco. É agora ou nunca, querida!

Ao largo do Martim Moniz, já poderiam ouvir os barulhos de longe, de fogos de artifício, gentes apinhadas afirmando a liberdade conquistada na nocturna lua, bandeiras rubras batidas no vento da maresia do rio aclarado pela água de fogo trazida de gargantas em gigantones mascarados.

Tambores glorificavam o ambiente em danças estranhas, músicas mexidas, trapezistas voando por cordas presas num palco em ferro, cavalos, cães galgos, fitas caindo do céu em arco-íris faustoso, bolas e massas rodopiando em monociclos, balões assoprados pelo hélio, palhaços de narizes coloridos, os trapos em cena nas ruas decoradas pelas estátuas fixas a um passado glorioso, vestidos esvoaçando pelo ar, crianças brincando, malabaristas, mágicos, caricaturistas desenhando feições, homens sombra em andas, mimos sacudindo o ar na luz negra do material luminoso, barracas ambulantes de farturas adocicadas, chocolate a transbordar beiços gulosos, acrobatas nas alturas do circo monumental, mulheres quietas em posições extraordinárias, poesia e rodos pelos cantos, marionetas em bonecos de madeira num teatro tradicional, domadores de animais exóticos, flautistas tocando melodias a ratos escondidos, um urso amestrado, elefantes mostrando destreza em patas gigantes, bailarinas egípcias, contorcionistas em trupe, saltimbancos em roupas medievais, magia em cartolas fantásticas, fantoches chineses em língua abstracta, pintores descobrindo a harmonia em peitos fartos, funâmbulos e cavaleiros, actores e jogos espirituais, anões e panteras negras, bebidas exaltando o deus do vinho escorriam em banda pela comunidade em festa, vozes cantando ópera agraciada pela mistura dos sons de vários instrumentos musicais, não faltando a beleza do Carnaval de Veneza, no mistério das pessoas disfarçadas.

Andavam de mãos dadas, apertadas pela multidão, procurando Graça o seu grupo de pares, brindando a alegria da juventude nunca esquecida.

No Terreiro do Paço, lá estavam reunidos, em calorosa conversa divertida.

Abraçaram-se como se estivessem estado afastados durante largos anos, em gargalhadas púrpuras de paixões alucinantes.

Fizeram um círculo e dançaram todos ao som da lareira imaginária, comemorando o reencontro tal como índios fora das tendas, sugados pelo prazer do barulho.

Renasceu a madrugada num amarelado sol resplandecente, bravo calor trazido num dia alaranjado e quente.

Graça e Leonor tomavam o pequeno-almoço na Brasileira, tendo alugado todas as mesas e cadeiras, comprados todos os bolos, sandes, sumos, fatias de pão ainda quentes, trazidos pelos empregados, não tendo nada a medir para concretizar os desejos do grupo familiar ali reunido.

Casa cheia na memória de todos. Nem daqui a cem anos voltariam a ver o ajuntamento, o grupo, a multidão nas conversas, do falar, na tertúlia animada.

O teu livro como vai?

Muito bem, vou para casa, tenho a cabeça cheia de ideias novas.

Óptimo. Ainda bem que contribui para a tua escrita. Agora vai, pisga-te.

Na mesma rua pisada tantas vezes, Leonor mirou as mensagens no seu telemóvel.

Uma delas dava por terminada a relação. Apesar de Gaspar não ter tido coragem para lhe falar pessoalmente, deu-lhe a virtude de ficar livre novamente para gostar de alguém. Sentiu-se bem.

No caminho pelas Avenidas Novas, assistiu aos flashes tirados a árvores, a objectos estáticos, à paisagem matinal, às ervas, às pessoas, a ela, sem o saber, através de esverdeados olhos misteriosos.

Durante essa semana e durante todas as semanas saia de madrugada para comprar pão quente, croissants, para depois regressar a casa, sentar-se na cadeira e escrever sem apagar o texto, sem se arrepender das palavras usadas, até que, numa dessas madrugadas, abriu a caixa de correio e de lá tirou um envelope contendo a sua figura estampada numa fotografia singela, adornada pela roupa festiva, de cabelos ao vento, rindo perante as restantes pessoas em canções mornas, de vidas fugidas, de pesarosos fados.

Um bilhete junto à fotografia completava a mensagem.

Gostaria muito de te conhecer…estarei no pequeno jardim renovado.

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