Por mera obra do acaso, tive hoje uma melancólica lembrança do
passado, ao cruzar com uma figura triste, com a expressão de quem já
desceu quase todos os degraus da vida, chegando naquele ponto de onde não
mais existe volta. Apenas uma saída. A porta para o Além.
Seu porte, outrora altaneiro, de moça fina, de família de recursos,
estava alquebrado, vencido pela vida desregrada, pelo uso de drogas, pelo fumo,
pelas bebidas... Enfim, o verdadeiro fim da picada. O quadro desenhado no tango
"Esta Noche me Emborracho".
Não consegui fugir das recordações que me assaltaram a
mente.
E pensar que muito a amei. E lembrar os doces momentos que passamos juntos.
Como doem essas recordações. E a busca das explicações,
como se para a vida explicações houvessem. Simplesmente certos
fatos acabam acontecendo porque acontecem.
Éramos namorados. Para a época, nosso namoro era muito avançado.
Não tínhamos limite para nossas intimidades. E foi essa liberdade,
ou melhor, essa liberalidade que causou tudo.
E aquele baile de formatura. Triste baile.
Ela queria ir sozinha. Não me queria naquela noite, depois vim a saber
o porquê. Quando descobri, saí a campo para arrumar um convite.
Queria surpreendê-la, e o consegui.
Não esqueço sua expressão de surpresa quando me viu entrando
no salão, impecável em meu smoking alugado. Sorriu-me. Magoado,
fiz que não a vi, e comecei a dançar com outras, fazendo par constante
com uma moça que conhecera lá. Reparei que ela não dançava
com ninguém, e apenas me olhava.
Apenas no fim do baile, empertiguei-me e fui tirá-la, mas ela, olhando
tristemente, recusou-me e saiu... Nunca mais a vi... Fiquei muito ofendido com
a recusa, e não a procurei mais.
Depois vim a saber dos fatos. Ela estava suspeitando estar grávida, e
queria conversar com algumas amigas para ter certeza. Quando soube, uma das
amigas disse-lhe que eu não mais a procurava porque estava sabendo de
tudo, e não queria saber mais dela, por estar grávida. Bela amiga...
Desesperada, e com vergonha de encarar seus pais, fugiu de casa e caiu no mundo,
e na vida.
Nunca mais soube dela, e pensar que essa mesma amiga disse-me que ela havia
fugido com um namorado. Jamais soube o que realmente aconteceu. E tampouco procurei
saber.
Apenas a reconheci naquela noite, porque sempre a tive em um cantinho da memória.
Seus olhos eram inesquecíveis, bem negros, brilhantes, fogosos. Negros
ainda estavam, mas o brilho, o fogo, completamente apagados. Chorei muito, perdido
nas recordações, e em como podem ser estranhos os rumos de nossa
vida. Amamo-nos, mas ela seguiu por um rumo, e eu por outro. Poderia ter sido
diferente? Claro, se ela tivesse me dito tudo, ou se eu tivesse confiado mais,
ou se ambos não tivéssemos sido tão orgulhosos, cada qual
julgando-se magoado, assumindo postura de vítima, e, principalmente,
se aquela amiga não tivesse sido tão "amiga".
Enfim, coisas da vida, que nos prega peças as mais loucas possíveis.
Seu nome? É lembrança, mera lembrança daquilo que poderia
ter sido, daquilo em que se transformou...
Bem, na verdade, ouvi esta história em um desses papos de botequim, quando
alguém precisa falar, e alguém gosta de ouvir, para contar depois.
Nomes? Para que? Quantos de nós conhecemos muitas histórias semelhantes,
em que tristes fatos, em que vidas podem ser destruídas apenas porque
não houve um melhor entendimento. Em que as pessoas se deixam levar pelo
orgulho, pela vaidade. Quando se prefere ouvir inverdades, porque a verdade
talvez nos incomode.
A história desses dois poderia ter sido muito diferente. Apenas coisas
do destino? Não creio que se possa atribuir ao destino certas falhas
de nossa personalidade.
Sinceramente, espero que a história de duas almas sofredoras possa servir
como alerta, lembrando que a melhor maneira de se dirimir dúvidas, é
através do diálogo. Conversando é que se entende, ou não...
Mas de qualquer maneira chega-se a melhores conclusões.