Aquela era uma noite excepcionalmente quente em Várzea Grande, bem mais
do que de costume.
Santinha voltava sozinha do culto, a espera no ponto de ônibus estava
demorando, preocupando-a, precisava chegar logo em casa, ainda tinha que dar
banho em sua mãe, incapacitada por um derrame cerebral.
Aquela rotina a cansava às vezes: fazer os afazeres domésticos,
cuidar de sua mãe. Pouco tempo lhe sobrava para se dedicar à sua
própria vida.
Apenas nas noites de sábado, depois dos cultos, se sentia um pouco melhor,
como se fosse purificada por seus erros cometidos durante a semana, não
que fosse uma pecadora, mas certos pensamentos a tentavam de vez em quando.
Perdida em sua imaginação, Santinha nem percebeu quando alguém
se aproximou.
- Boa noite, irmã!- Disse o homem com uma voz incorpada.
Santinha assustou-se deixando cair sua Bíblia. O susto não foi
pela chegada repentina do homem, mas por aquela voz lhe soar um tanto familiar.
Ao olhar e ver de quem se tratava, imediatamente baixou os olhos evitando olhar.
- Deixa que eu pego - falou o sujeito abaixando-se para pegar a Bíblia.
Santinha porém, abaixou- se também e a pegou primeiro, não
gostava que ninguém tocasse em sua Bíblia.
Ao se abaixar, então, teve certeza de quem se tratava.
Por causa do calor, quando estava sozinha, Santinha havia aberto um pouco sua
blusa, deixando aparecer parte de seus seios, agora abaixada percebeu que o
homem os olhava fixamente com um sorriso malicioso nos lábios.
Rapidamente ela se levantou e apertou sua Bíblia junto ao peito, virando-se
para o outro lado.
Não podia acreditar em seu azar, aquele homem era o responsável
por muitas de suas noites mal dormidas "justo ele tinha que aparecer ali
agora?".
Seu nome era Mauro, o mecânico, seu vizinho de kitinet,
"Um psicopata", era como sua mãe o chamava, por causa da vida
devassa que levava.
Quantas noites Santinha havia acordado com gargalhadas, gemidos e gritos histéricos
das companhias nada decentes que ele levava para seu quarto.
Os kitinets eram bem próximos, uma das paredes do quarto de Santinha
fazia divisão com o quarto do "psicopata". Quase todas as noites
ela sofria com suas "noitadas".
- Desculpa aí irmã, eu não quis te assustar.- disse o sujeito,
ainda com um risinho no rosto.
Santinha deu-lhe uma olhada rápida e desviou o olhar novamente.
Ele estava com sua camisa aberta, deixando o peito suado nu, provocando arrepios
em Santinha.
Mauro era jovem, devia ter no máximo uns trinta anos, era moreno, cabelo
cortado bem baixo, barba por fazer e um permanente olhar safado no rosto.
Quando Santinha percebeu que ele se aproximava mais, pensou estar sem saída,
temendo que ele a atacasse, foi quando finalmente surgiu o ônibus.
- Graças a Deus - sussurrou ela correndo para dentro do veículo.
Como ia para o mesmo lugar, Mauro entrou logo em seguida.
O ônibus estava vazio, Santinha pagou o passe e sentou bem ao fundo com
a cabeça baixa.
"Essa irmãzinha é muito gostosa" pensou Mauro enquanto
passava pela roleta "Dizem que essas crente são muito fogosas"
lembrou-se do que falavam seus amigos. Foi se aproximando aos poucos, observando
Santinha que de olhos fechados abraçava sua Bíblia junto ao peito.
Mauro havia conversado com ela uma única vez, na ocasião ele havia
levado Andreia até seu quarto.
A danada gritava feito uma louca e não demorou para que Santinha e sua
mãe reclamassem do barulho e da "pouca vergonha".
- Isso é porque ainda não te pegaram de jeito, irmã - gritava
Andreia aos risos - deixa o Mauro te mostrar o que ele faz qualquer hora
- foi a última coisa que ela disse antes que ele a botasse pra fora de
lá.
Mauro não queria problemas com as irmãs. Seu Moacir, o dono do
lugar era bem "desencanado" com essas coisas, mas as irmãs
eram as moradoras mais antigas, não deixando dúvidas de quem seria
despejado caso elas o apertassem, por isso na época Mauro pediu-lhes
desculpas.
A cada passo que Mauro dava em sua direção, mais Santinha apertava
sua Bíblia.
Quando sentiu que o homem estava bem próximo fechou os olhos e começou
a sussurrar suas preces: - Pai, me proteja, não permita que este pecador
se aproveite de minha fragilidade - sentiu então o perfume barato invadir-lhe
as narinas.
Mauro sentou-se bem ao seu lado, cruzando as pernas e estendendo seu braço
por cima do encosto da poltrona de Santinha.
Ficou olhando-a um tempo, enquanto ela permanecia imóvel com os olhos
fechados.
Santinha havia completado vinte e um anos naquela semana, era uma moça
bonita, mesmo debaixo das longas saias que usava, percebia-se suas coxas grossas
e bem torneadas, seu quadril largo, a cintura fina que era tocada pelos longos
cabelos negros amarrados em um rabo-de-cavalo.
" Ora, ora. Como não percebi antes?" Perguntou-se Mauro "Essa
crentinha tem um corpão mesmo" Resolveu tentar conversar outra vez:
- Como tá calor hoje, ein irmã? - disse-lhe perto do ouvido, fazendo
a pobre moça jogar a cabeça para o outro lado quase acertando
o vidro da janela.
- Te assustei de novo? Desculpa aí viu? - Disse ele sorrindo como sempre.
Santinha permaneceu em silêncio por algum tempo e então sem nem
mesmo abrir os olhos perguntou-lhe: - Com tantos lugares vagos, por que você
se sentou justo aqui, moço?
- Ora porque queria conversar com você, é claro. - respondeu ele
naturalmente - Afinal já é hora de nos conhecermos melhor, não
é?
- Discordo, moço - respondeu ela - Nossos estilos de vida não
são compatíveis...
Antes que ela terminasse Mauro emendou: - Que é isso, irmã? Aposto
que se você me conhecesse melhor, ia adorar meu estilo de vida.
Santinha abriu os olhos quando várias cenas se passaram em sua cabeça, fazendo-a lembrar de que estilo de vida aquele homem falava.
Aproveitando-se que o ônibus estava parando Santinha levantou-se querendo
sair logo dali.
- Vou descer aqui - falou ela atravessando a frente do homem, porém,
a freada do ônibus a fez desequilibrar e cair sentada sobre o colo de
Mauro.
Seu corpo arrepiou-se inteiro, quando sentiu-se colar junto ao corpo do mecânico.
Quando sentiu as mãos rudes lhe agarrar a cintura deu um "pinote"
e pulou rapidamente descendo do ônibus, correndo pela calçada.
Mauro apenas riu, ainda mais pelo fato de ela ter descido três quadras
de sua casa.
Santinha andava apressadamente quando o ônibus passou por ela, mesmo sem
olhar ela podia ver o sorriso safado de Mauro olhando-a pela janela.
" Depravado, psicopata! É isso que ele é ...um psicopata
mesmo" pensava ela enquanto ia em frente.
Finalmente chegou em sua vila, quando foi tirar a chave de seu bolso para abrir
o cadeado, notou que alguém a observava.
- Tava te esperando, irmã - disse Mauro abrindo-lhe o portão.
O susto fez com sua Bíblia caísse novamente.
- Opa, desta vez eu pego, já é a terceira vez que eu lhe assusto
hoje - prontificou-se o mecânico devolvendo-lhe a Bíblia.
- Nunca mais toque na minha Bíblia. - gritou Santinha com um olhar ameaçador
arrancando o livro das mãos de Mauro.
- Me desculpe, irmã, eu só queria...
Mas Santinha continuou: - Se afaste de mim, seu...seu psicopata - gritava descontrolada.
- Eu não sou uma dessas desfrutáveis que você costuma trazer
aqui, sou uma mulher direita , uma serva de Deus, e não pense que essa
sua conversa vai me tentar entendeu?
Mauro sentiu que a irmã realmente ficara nervosa e tentou acalma-la:
- Calma, irmã, eu só queria conversar.
- Isso está fora de cogitação - continuou gritando ela
- nunca terei nada pra conversar com psicopata como você - Virou-lhe então
as costas e entrou deixando Mauro pasmo ali parado.
" Pôxa, deve ser por isso que chamam ela de Santinha"- Concluiu.
O ventilador parecia não dar conta de refrescar, tamanho era o calor
naquela noite.
Santinha rolava de um lado para o outro em sua cama, pensou em tirar a camisola
para refrescar mais, porém imediatamente lhe veio à cabeça
a imagem do mecânico com aquela cara de safado e a fez se conter.
Não conseguia parar de pensar naquele "psicopata", um calor
ainda maior tomava conta de seu corpo quando se lembrava do momento em havia
sentado "sem querer" em seu colo.
Rapidamente agarrou-se a sua Bíblia que estava sobre o criado mudo ao
lado de sua cama. "Não permita que ele se aproxime de mim novamente,
meu Deus, por favor." Orava com os pensamentos incontroláveis lhe
martelando a cabeça.
Mauro chegou e como sempre foi até a geladeira, pegou uma cerveja, ligou
a tv e se jogou em sua velha poltrona. Tomou um longo gole e pousou a garrafa
no chão, depois olhando para o teto se lembrou de Santinha.
Como ela havia ficado nervosa, e o pior, tinha deixado bem claro que não
queria nem conversa com ele. "E daí ?" se perguntou então
"Tanta mulher dando sopa, to nem aí pra essa crentinha." Aumentou
o volume da tv e ficou esperando o sono chegar.
Outro sábado chegou então, havia chovido muito durante o culto.
Outra vez Santinha voltava sozinha para casa, ainda caíam alguns pingos,
fazendo-a acelerar mais, temendo que a chuva forte voltasse a cair.
Finalmente chegou no ponto, que era coberto, protegendo-a, olhou para os lados,
não queria nenhum susto como da semana anterior. Como sempre escorou-se
num dos pilares do ponto e abraçou sua Bíblia.
Havia se atrasado um pouco para voltar, tinha esperado para conversar um pouco
com o pastor após o culto.
Falou-lhe de algo que havia lhe incomodado durante a semana: Seus pensamentos
no mecânico Mauro.
- Aquele que chamam de "psicopata"?- perguntou o pastor. Ela profundamente
envergonhada respondeu que sim.
- Não se desespere, irmã Santinha - acalmou-a - Todos aqui sabem
de sua conduta, além do mais é normal mulheres sozinhas terem
esses tipos de pensamentos, o que importa é que você resistiu a
todos eles até agora.
- O que eu faço então, pastor? - perguntou preocupada.
- Reze o dobro do que tem rezado e afaste-se desse homem, certo? Pode ser que
o capeta esteja lhe tentando através desse sujeito.
Porém Santinha não o havia visto mais desde aquela noite no portão.
Ele saía cedo para o trabalho e só voltava tarde.
O que ela estranhava é que não havia sido acordada nem uma noite
mais pelos costumeiros barulhos do vizinho e suas frequentes visitas noturnas.
Até seu Jorge, o vigia noturno, comentou com dona Noeli, a lavadeira,
que comentou com sua mãe que lhe contou que o "psicopata" não
havia trazido nenhuma mulher durante a semana inteira.
" Coitada da próxima que esse tarado pegar" disse sua mãe.
Santinha arrepiava-se cada vez que lembrava das palavras de sua mãe.
- Boa noite, irmã? - Ecoou uma voz próxima a ela.
Santinha virou-se e quase não acreditou no que viu.
Era o mecânico que estava ali outra vez.
Santinha deixou sua Bíblia cair como sempre, porém desta vez não
apressou-se para pegá-la, sequer tentou. Ficou parada olhando para aquele
homem à sua frente perguntando-se se seria mesmo quem ela pensava.
Desta vez, Mauro estava com uma roupa social, sua camisa tinha mangas largas
e estava abotoada até o pescoço, barba feita e cheiro de banho
recém tomado.
Ele se abaixou e pegou a Bíblia bem próximo aos pés de
Santinha, que permaneceu imóvel, se levantou sem nem olhar para seu corpo,
em seu rosto não havia mais aquele olhar safado, aquele sorriso malicioso.
Entregou a Bíblia a Santinha, que a pegou com as mãos trêmulas.
- Não tinha intenção de assusta-la, irmã - desculpou-se
ele.
Santinha continuou calada, olhando-o. "Como ele podia ter mudado tanto?
Em tão pouco tempo? E por que?" tentava entender.
" Só pode ser alguma armação desse safado, só
para se aproximar de mim."
- Irmã, preciso lhe agradecer por algo - disse o homem com ar sério.
" Coitada da próxima...a próxima..." Santinha se lembrou
novamente de sua mãe.
" Ele se guardou a semana inteira e agora quer se 'satisfazer' em mim."
Arrepiou-se ela ainda sem conseguir dizer nada. "Esse psicopata..."
- Me deixa te contar, irmã... - começou o homem então a
falar.
- Nunca pensei dizer isto para alguém... você , irmã Santinha
me fez mudar...
Quanto mais Mauro se aproximava, mais Santinha suava e apertava sua Bíblia.
"Não Senhor não permita que ele se aproxime mais."
- Agora sou outro homem . Acredite - dizia ele sério como nunca. Percebendo
que Santinha permanecia de olhos fechados, levou suas mãos de encontro
às dela. Queria que ela o olhasse e visse o quanto ele havia mudado.
Durante todo o tempo em que levou aquela vida "devassa" como diziam,
Mauro nunca se sentiu de fato, feliz, mas agora , parecia ter encontrado o verdadeiro
caminho da felicidade e irmã Santinha era a responsável. Tinha
que agradece-la.
Santinha sentiu o homem bem próximo agora, pôde sentir sua respiração.
" O que... esse psicopata quer fazer comigo?"
Abriu os olhos e pôde ver o exato momento em que as mãos do mecânico
tocaram as suas, fazendo a Bíblia despencar mais uma vez.
- Irmã...disse ele com um sorriso aberto...- eu quero...Mas antes que
ele pudesse completar a frase, Santinha lançou-se sobre ele puxando-lhe
pela camisa.
- Seu psicopata... gemia ela...Eu sei o que você quer de mim.
- Não - gritou ele tentando se desvencilhar da irmã - Eu só
quero...
Santinha então agarrou-o com mais força , abrindo-lhe a camisa
no peito e enfiando fundo a língua em sua boca.
Sem fôlego, o homem ainda tentou dizer alguma coisa, mas foi empurrado
para detrás do muro próximo ao ponto.
Santinha parecia possuída, com força descomunal derrubou-o no
chão, arrancando-lhe a camisa e mordendo seu peito.
- O que vai fazer comigo? Gritava ela arrancando agora a própria roupa,
sem dar chance para o homem responder.
Nem perceberam quando o ônibus passou.
E assim naquela noite excepcionalmente quente em Várzea Grande, bem mais
do que de costume, aconteceu o caso que ficou conhecido como "a noite da
santa e do psicopata", ou seria o contrário?