A Garganta da Serpente
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A Casa

(Miguel Regozijo)

Tinham passado três dias e o homem continuava a olhar para aquela janela. O vidro baço toldava-lhe a vista para dentro da casa, os olhos curiosos percorriam incessantes o pouco que conseguia vislumbrar para o interior. Contornos borratados, cores desbotadas dos seres que lá dentro se moviam, irrequietos, incansáveis à constante fuga dos olhares vindos do lado de fora. Formas tímidas que fugiam com terror às luzes cobertas de incertezas que acenavam lá fora. A luz era para eles como uma arma, que os expunha aos olhos do mundo, que inundava a escuridão e mostrava toda a sua fragilidade e imperfeição, por isso, preferiam manter a porta fechada e bafejar os vidros, para que ninguém os pudesse ver. Enrolados na escuridão, relembravam ainda o que tinha acontecido da última vez que abriram a porta, da última vez que deixaram entrar alguém na sua casa, da última vez que confiaram.

O homem mantinha-se do lado de fora, ávido de conhecer as formas que se escondiam por trás daquelas paredes. Era até capaz de quebrar o vidro da janela e espreitar, nem que fosse por um segundo, para conhecer os contornos exactos dos seres que lhe povoavam o imaginário. No entanto, isso não seria correcto. Ele não seria capaz de quebrar a magia das formas embaciadas, dos seus movimentos imperceptíveis que ia começando a adivinhar, aos quais se afeiçoava de dia para dia.

No final do terceiro dia em que tinha olhado ininterruptamente para aquela janela, o homem beijou o vidro, que era aquilo que tinha de mais próximos dos vultos que via cá de fora. Tocar o vidro com os lábios foi a única forma de mostrar àqueles seres o quanto gostava deles, era no fundo, a única forma que conhecia de os tocar. Esgotado, arrastou-se até à soleira da porta onde se prostrou para descansar um pouco. Os sons fugidios vindos do interior, que lhe tinham alimentado a curiosidade durante três dias, foram os mesmo que o embalaram no próprio cansaço, um cansaço tão profundo, tão só, tão expectante em poder tocar os seres do interior da casa que o homem só viria a acordar algum dia se a porta da casa se abrisse e esbarrasse com ele a dormir na soleira.

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