Tinham passado três dias e o homem continuava a olhar para aquela janela.
O vidro baço toldava-lhe a vista para dentro da casa, os olhos curiosos
percorriam incessantes o pouco que conseguia vislumbrar para o interior. Contornos
borratados, cores desbotadas dos seres que lá dentro se moviam, irrequietos,
incansáveis à constante fuga dos olhares vindos do lado de fora.
Formas tímidas que fugiam com terror às luzes cobertas de incertezas
que acenavam lá fora. A luz era para eles como uma arma, que os expunha
aos olhos do mundo, que inundava a escuridão e mostrava toda a sua fragilidade
e imperfeição, por isso, preferiam manter a porta fechada e bafejar
os vidros, para que ninguém os pudesse ver. Enrolados na escuridão,
relembravam ainda o que tinha acontecido da última vez que abriram a
porta, da última vez que deixaram entrar alguém na sua casa, da
última vez que confiaram.
O homem mantinha-se do lado de fora, ávido de conhecer as formas que
se escondiam por trás daquelas paredes. Era até capaz de quebrar
o vidro da janela e espreitar, nem que fosse por um segundo, para conhecer os
contornos exactos dos seres que lhe povoavam o imaginário. No entanto,
isso não seria correcto. Ele não seria capaz de quebrar a magia
das formas embaciadas, dos seus movimentos imperceptíveis que ia começando
a adivinhar, aos quais se afeiçoava de dia para dia.
No final do terceiro dia em que tinha olhado ininterruptamente para aquela janela,
o homem beijou o vidro, que era aquilo que tinha de mais próximos dos
vultos que via cá de fora. Tocar o vidro com os lábios foi a única
forma de mostrar àqueles seres o quanto gostava deles, era no fundo,
a única forma que conhecia de os tocar. Esgotado, arrastou-se até
à soleira da porta onde se prostrou para descansar um pouco. Os sons
fugidios vindos do interior, que lhe tinham alimentado a curiosidade durante
três dias, foram os mesmo que o embalaram no próprio cansaço,
um cansaço tão profundo, tão só, tão expectante
em poder tocar os seres do interior da casa que o homem só viria a acordar
algum dia se a porta da casa se abrisse e esbarrasse com ele a dormir na soleira.