As nuvens tinham um quê de gravura, mistura de pintura de almanaque com
desenho tridimensional. Quando paradas de todo, saltavam aos olhos, oscilando
entre planas e ostensivas.
Eu sabia olhar as nuvens e tirar conclusões certeiras. Choveria logo
mais, estava escrito. E eu ainda não havia matado ninguém.
Passei na farmácia. Comprei os três medicamentos que, combinados
na medida certa, transformar-se-iam num veneno eficaz. Exatamente o que eu precisaria.
A fórmula milenar era um segredo de família que me fora passado
por um louco, que eu encontrara na rodoviária. A princípio, não
acreditei em suas palavras bêbadas: "Você já viu esses
remédios? Olhe só. É pegar um bocado deste, uma pitada
daquele e um punhado do outro e... pronto!" Ensinou-me como moer os
comprimidos e diluir as gotas para conseguir a fração exata de
cada um dos componentes. Passou-me, também, a fatal medida que se deve
colocar de cada medicamento.
Anotei por anotar. O louco pegou um ônibus logo depois de me revelar a
fórmula.
Por não ter o que fazer, entrei na farmácia que havia na rodoviária.
Segui à risca o que mandava a receita. Levei quatro horas para conseguir
preparar um pequenino frasco do tal veneno.
Não cheirava a nada, era transparente e não manchou o sofá,
quando, estabanado por herança, deixei cair algumas gotinhas no estofado.
Meu gato já começava a me tomar muito tempo - tempo que eu possuía
de sobra. E eu precisava testar o produto em alguma coisa viva. Nunca tive planta
em casa.
O gato bebeu todo o leite, sem afetar desconfiança. Em dois minutos,
deitou no chão da cozinha, rolou de um lado para o outro, soltou um fraco
grunhido e morreu. Olhos arregalados e boca semiaberta. Parecia sorrir; simpático,
como nunca dantes fora.
O louco de louco tinha pouco, ou quase tudo. Fato é que o veneno era
mesmo fatal. O que eu faria então com o corpo do gato risonho?
Com a prática, aperfeiçoei o processo e passei a produzir o veneno
no tempo recorde de uma hora e meia. E com a mesma eficácia. A limpeza
urbana começou a ter muito trabalho com os diversos felinos simpáticos,
que, toda manhã, apareciam sobre a lixeira de minha rua.
O curso de medicina me possibilitou verificar que o veneno não deixava
vestígios nos cadáveres. Duas autopsias bastaram para a constatação.
Não pude chegar em casa antes dos primeiros pingos. Eram grossos. Espaçados.
Olhei para o céu com cautela, para que os pingos não me entrassem
nos olhos. A chuva ainda duraria o tempo necessário para que eu pudesse
preparar minha arma. Eu precisava matar alguém.
Todo vício é um pouco hobby. Ou muito. Matar, para mim,
tornara-se um hobby na exata acepção da palavra.
Viciei-me aos poucos. Antes de matar meu gato, minha lista só continha
alguns muitos inseticídios. Nada de anormal. Com a morte de meu gato,
senti um certo alívio, pois, como já disse, ele começava
a tomar muito de meu ocioso tempo. Para me aprimorar na arte da feitura do veneno,
fui obrigado a dar cabo de algumas dezenas de felinos. Mas o remorso que achei
que sentiria ao matar não apareceu, e acabei me acostumando. Viciei-me,
expressão mais adequada.
Hoje será a minha estreia. Meu primeiro homicídio. O pequeno
frasco cheio de veneno já está bem acomodado no bolso interno
de meu paletó.
Quando piso a calçada, já não chove mais. Eu poderia arranjar
um emprego como meteorologista. Mas só tenho forças para pensar
em minha grande estreia. O crime perfeito. Sem motivo, sem pistas, sem
suspeitos. Um assassino anônimo matando anônimos. Nunca serei descoberto.
Caminho pelas ruas à procura de minha primeira vítima. Primeira
de tantas outras.
Véspera de feriado. A rodoviária está lotada. Mas posso
vislumbrar, em meio à multidão, um conhecido: o louco. Já
não o via há alguns anos!
Uma ideia calma trespassa minha mente.
Vou ao seu encontro. Chamo por ele, mas ele diz não me conhecer. Não
importa. Ante a ameaça aos meus planos, convido-o para uma cervejinha,
acariciando levemente o pequeno volume que tenho no paletó.