O lago Miranda era grande como um rio. Suas águas, alimentadas pelo rio
Envira, eram profundas e escuras, e encerravam muitos mistérios que Virgínia
sabia indecifráveis. Um deles era o da Mãe d'Água, a senhora
das águas, que habitava o leito profundo do lago, para onde arrebatava,
sem distinção, homens velhos e jovens, e, às vezes, até
mulheres e crianças, cujos fantasmas passavam a povoar o lago para sempre.
Virgínia temia o lago. Ela se banhava nele, enquanto lavava a roupa da
família, sozinha ou acompanhada de sua mãe e das duas irmãs,
Maninha e Hilária, no jirau construído por seu pai e pelo irmão,
Vítor. Mas, não ousava cair n'água para nadar. Temia entremear-se
nos longos cabelos da Mãe d'Água, e ser arrastada para os recônditos
desconhecidos de sua morada.
Mas, Virgínia, fascinada, olhava o lago e perdia-se em pensamentos. Ela
sabia que a Iara, como era chamada a Mãe d'Água pelos nativos,
não era somente arrebatadora de homens. Ela era uma deusa, possuidora
de poderes que os simples mortais não poderiam nem mesmo imaginar. Somente
ela, a Mãe d'Água, talvez pudesse tornar seus sonhos realidade.
E ela sonhava de olhos abertos, com seu príncipe encantado, aquele que
viria, um dia, buscá-la para levá-la para um lugar distante, longe
da casa paterna. Um lugar onde ela pudesse ser feliz, junto com seu eleito,
um lugar distante daquelas matas cerradas e tenebrosas, longe do fascínio
do lago e do encantamento da Mãe d'Água. Ela fixava o meio do
lago, lá onde havia o redemoinho tão temido pelos pescadores,
nos dias de tempestade, lá onde se acreditava fosse a entrada da habitação
da Mãe d'Água.
Incontáveis vezes, sua mãe a despertava de seus devaneios, trazendo-a
de volta à realidade.
- Avia, Virgínia, em que tu estás pensando, menina! Já
é quase meio-dia, é quase hora de dar comida aos homens. Se tu
continuas assim, perdida, olhando o lago, nós não acabamos de
lavar essa roupa hoje.
- Já estou acabando, minha mãe.
E Virgínia, temerosa de ficar sozinha, tão perto do fascínio
da Mãe d'Água, apressava-se para terminar sua parte da tarefa
e subir o barranco que levava à barraca, com sua mãe e suas irmãs.
Um dia, porém, Virgínia deixou-se ficar à beira do lago,
sozinha, decidida a enfrentar a Mãe d'Água, caso ela lhe aparecesse.
O sol de meio-dia brilhava a pino, não deixando escapar o menor contorno
de sombra, como acontece na região equatorial, naquela hora do dia. Virgínia,
embalada por seus pensamentos, fixava o meio do lago, cujas águas começaram
a rodopiar, no início, levemente, acelerando-se, aos poucos, até
formar um enorme redemoinho que se foi levantando, lentamente, até atingir
uns quatro a cinco metros, acima do nível das águas do lago. Deitada
no topo dessa coluna aquática, havia uma mulher de pele branca como a
espuma das águas, e de cabelos dourados como os raios do sol. Ela era
bela como uma princesa dos contos de fadas. Uma coisa, porém, a distinguia
das demais princesas, e isso era a cauda longa, resplandecente, recoberta de
escamas prateadas que se prolongava de seu corpo de mulher. Virgínia,
perplexa, compreendeu que estava diante da lendária Mãe d'Água
que, sorrindo, dirigiu-lhe a palavra.
- Virgínia, não temas a minha presença, pois estou respondendo
aos anseios de teu coração. Conheço tuas aspirações,
teus desejos, e posso ajudar-te a concretizá-los. Mas, ouve-me bem!
Virgínia, atônita, não podendo acreditar no que via, esfregou
os olhos, abrindo-os mais ainda, mas, constatando que a Iara continuava acima
da superfície do lago, e certa de que se tratava de um encantamento,
resolveu submeter-se e escutar o que a bela dama tinha a dizer-lhe. E a Iara
continuou.
- Nas festas de São João tu hás de encontrar o teu bem-amado,
que será bom e generoso, e belo como o deus das águas. Muitas
outras moças invejar-te-ão a sorte. Somente, aproveita bem, pois
tu só ficarás com ele cinco festas de São João.
Depois disso, eu virei resgatá-lo e ele irá para o meu reino encantado,
no fundo do lago, para sempre. Aproveita bem e sê feliz junto com ele,
pois essa felicidade só durará cinco festas de São João.
Dizendo isso, a Mãe d'Água fez um grande gesto de adeus com sua
cauda, espalhando gotas d'água até bem distante, que, por alguns
segundos, repousaram como pedaços de diamante, lapidados, arredondados,
brilhantes, desmanchando-se, em seguida. Virgínia deixou-se ficar, ela
não sabe quanto tempo, no jirau, perplexa, como que tomada de um torpor,
olhando o meio do lago, agora calmo como um espelho, como se nada tivesse acontecido.
Sentindo-se desfalecer, ela perdeu a noção da realidade.
Aos poucos, recobrando o seu estado normal, ela percebeu, ao redor dela, as
vozes familiares de sua mãe, de seu pai, de seu irmão e de suas
irmãs, todos tentando fazê-la voltar a si, através de sacudidelas
e de pequenas bofetadas na face. Para surpresa geral, ela, de olhos bem abertos,
levantou-se e subiu o barranco de volta à barraca, seguida de todos os
outros, como numa procissão desordenada, todos querendo saber o que lhe
acontecera. Ela lhes contou, como pode, a visão que tivera, deixando
o grupo familiar boquiaberto. Somente a mãe guardou silêncio, e,
olhando sua filha com um misto de ternura e piedade, deu-lhe de comer, dizendo-lhe
que esquecesse aquela história.
Alguns meses depois, para a festa de São João, na sede do seringal,
Virgínia teve direito aos três vestidos de praxe para trocar entre
as partes de dança comandada pela harmônica de Seu Januário,
o tocador e animador de festas por excelência, naquelas paragens. A viagem
até à sede do seringal era longa, algumas horas de canoa, remada
pelos braços fortes dos dois homens e das duas mulheres, a mãe
e a jovem Virgínia, que não se esquecera da visão que tivera
da Mãe d'Água, naquela hora de meio-dia, à beira do lago
Miranda.
A chegada ao local da festa fora muito bem recepcionada por aqueles que os precederam,
já havendo muitas canoas amarradas no porto do seringal São Francisco
do Bom Jardim. O porto e os trapiches estavam enfeitados de bandeirinhas de
papel crepon, coloridas e, no terreiro, em frente ao barracão de seu
Chico, uma enorme fogueira estava pronta para ser queimada. Várias mesinhas
com tamboretes haviam sido colocadas em círculo, no meio do qual seu
Januário, do alto de um estrado, esquentava sua velha harmônica
para, depois da novena tirada por dona Lita, na capelinha do vilarejo, dar-se-ia
início aos comes e bebes e ao forró, como acontecia todos os anos.
Aquela era a ocasião em que os namoros começavam entre os jovens
fregueses de São Francisco do Bom Jardim, uma vez que o ambiente era
oficializado pela presença, não somente dos mais velhos, como
também pela figuras de seu Chico e de dona Lita, patrões estimados
de todos os fregueses do seringal. Com a filha mais velha, Maninha, casada,
e com a fuga da segunda, Hilária, para se casar com um forasteiro, contra
o gosto da família, seu Alcântara preocupava-se com a filha mais
moça, a jovem Virgínia, não a perdendo de vista, e não
lhe dando muita chance de envolver-se em namoricos inconsequentes. Com
moça direita não se brinca, e filha minha não é
brinquedo de malandro, era esse o pensamento de seu Alcântara.
Ele sabia que já era tempo de arranjar um noivo para a filha mais nova,
pois moça solteira, sem marido, não era boa coisa também
não. Ele já começara a conversar com os pais de determinados
jovens de boa reputação e bastante sérios para começar
uma família. Ele sentia que deveria apressar-se, para que não
se repetisse o episódio da Hilária, que o deixara morto de vergonha
diante do pai do rapaz a quem ela estava prometida. Apesar de Virgínia
ser uma moça bem mais comportada do que a irmã, seu Alcântara
sabia, por experiência, que com essas coisas não se deveria brincar.
Casamento e tripa só prestam quente, pensava ele.
A dança havia apenas começado, quando Virgínia percebeu,
entre outros jovens, pela maneira como seus olhares de encontraram, aquele que
seria o seu bem amado. Ela não se surpreendeu, portanto, quando ele veio
tirá-la para dançar, aos primeiros acordes da harmônica
de seu Januário. Deixando-se levar pelos braços daquele rapaz
bonito, gentil e de olhos azuis como o céu, a festa para Virgínia
passou como um relâmpago, de tão rápido que foi.
Seu Alcântara, não tendo perdido de vista sua filha, notara o par
constante que ela formara durante toda a noite com o jovem desconhecido. Aproveitando
a oportunidade da reunião com os outros fregueses, ele procurou informar-se
sobre aquele jovem que, a bem da verdade, era bem apessoado, e tinha um jeito
correto de se comportar. Infelizmente, não se soube adiantar muitas informações
sobre o jovem Artur, pois era assim que ele se chamava, salvo que era um brabo
dos sertões do Ceará, que tivera sido trazido com a nova leva
de seringueiros recrutados, recentemente. Era rapaz solteiro, trabalhador, sério,
mas muito cobiçado, como, aliás, Virgínia notara durante
a dança, pelas moças casadoiras da localidade.
No retorno, de canoa, Virgínia, ainda enlevada com os acordes da harmônica
de seu Januário, ao som dos quais ela rodopiara com seu par, lembrava-se
da profecia da Iara, sentindo correr pelo corpo uma sensação gostosa
de carícia, que terminara, contudo, com uma pequena pontada no coração,
ao recordar-se do tempo mencionado pela senhora das águas - cinco festas
de São João. Virgínia, todavia, sentindo-se feliz e certa
de que era aquele o homem de sua vida, resolveu apagar da memória aquela
parte da profecia e concentrar-se na construção do casal que ela
certamente iria formar com o jovem, belo e cobiçado Artur.
Conforme tinham marcado, Virgínia e Artur encontraram-se, novamente,
na festa de São Pedro, alguns dias depois, na casa do compadre Zeferino,
padrinho de Virgínia, e velho amigo da família. Artur apresentou-se
a seu Alcântara, que, contando-lhe o b-a-ba, estabeleceu as regras que
deveriam reger o namoro que, a partir dessa data passou a ser oficial. Daí
ao casamento foi um pulo!
Como era de praxe nos seringais, os jovens candidatos ao matrimônio deveriam
esperar pela passagem do vigário de São Felipe, que, de seis em
seis meses, vinha em desobriga, unir pelos laços indissolúveis
do matrimônio os novos casais e batizar os rebentos surgidos nos intervalos.
Assim, os casamentos deveriam ser planejados para realizar-se durante a passagem
do padre, dentro de certo lapso de tempo. Virgínia e Artur esperaram,
pacientemente, a passagem do vigário, tendo o casamento se realizado
de acordo com as tradições locais, na capelinha do vilarejo, sob
as bênçãos dos pais da noiva e dos patrões.
Virgínia, sem se esquecer de seus devaneios de menina-moça, de
ser levada por seu bem amado para um lugar bem distante daquele em que morara,
durante toda sua vida, com seus pais e irmãos, aceitou, contudo a proposta
que seu Alcântara lhes fizera de morar numa barraquinha construída
por Artur, com a ajuda do sogro e do cunhado, na propriedade da família,
até que o jovem seringueiro tivesse condições de estabelecer-se,
por si mesmo, em seu próprio pedaço de terra.
Assim, Virgínia e Artur passaram a morar na barraquinha, ao lado da barraca
dos pais de Virgínia, na parte norte do lago Miranda, rico em peixe,
mas misterioso e profundo. E Artur, que preferia passar as madrugadas ao lado
de sua jovem esposa, foi, aos poucos, abandonando o corte e a colheita da seringa,
passando a exercitar-se como o pescador da família e do barracão
de seu Chico, proprietário e explorador do lago Miranda. Todos os dias
de manhã, cedinho, Artur partia em sua canoa, atravessando o lago Miranda
de norte a sul, mas concentrando-se, muitas vezes, no centro do lago, reputado
como a parte mais piscosa daquele enorme volume d'água.
Um dia, nas proximidades das festas de São João, comemoração
máxima da localidade de São Francisco do Bom Jardim, festejada,
todos os anos, no barracão de seu Chico, Artur saiu para pescar, como
o fazia, todos os dias. Naquele dia, ele deveria voltar mais cedo, para preparar-se
para a romaria até o barracão de seu Chico, com toda a família
de sua mulher, como era de costume fazerem todos os anos. Virgínia, como
de hábito, ficara na janela, olhando partir seu marido, que se distanciava
em sua canoa, para cruzar o centro do lago, quando, então, ela o perdia
de vista.
Naquele dia, porém, o lago estava agressivo, suas águas revoltas,
parecendo até dia de tempestade, apesar do céu azul e do dia ensolarado.
Quando Artur atingiu o centro do lago, uma imensa coluna d'água levantou-se,
tendo ao centro uma mulher deitada, de pele branca como a espuma das águas
e de cabelos dourados como os raios do sol. Ela possuía uma cauda com
escamas prateadas, enorme como a cauda de uma sereia, com a qual arrebatou o
piloto da canoa, levando-o para dentro do redemoinho que, subitamente, se formara,
ficando a canoa a rodopiar.
Virgínia, ao ter aquela visão, e lembrando-se dos prognósticos
da Iara, feitos há cinco festas de São João, caiu no chão,
desmaiada. Algum tempo depois, voltando a si, ela reconheceu as vozes aflitas
de seus familiares, todos preocupados com seu passamento. Havia, também,
um clamor geral de lamento pelo desaparecimento do jovem Artur, perdido para
sempre, no emaranhado dos longos cabelos da Iara, a rainha das águas,
e por ela arrebatado para sua morada profunda, naquele fatídico dia de
São João, cinco festas após a profecia.