Milo era um cão. Não era um cão grande, muito menos um
cão forte. Mas ainda assim, era um cão. Milo às vezes ouvia
pessoas dizendo que era um salsicha, um cofápi (principalmente aquelas
pessoas mais velhas e enrugadas), mas ele nunca soube o que realmente significava
isso. Milo não sabia que era uma raça.
Mas aquelas pessoas velhas e enrugadas diziam que ele era um cofápi.
Ele não se importava muito com as pessoas enrugadas. Às vezes
elas o agradavam, lembravam um de velho amigo. Que deus o tenha, Táison,
um grande amigo de cara enrugada. Todos diziam que ele era um bóquicer.
Bóquicers eram cães bem importantes, Táison sempre orgulhou-se
de ser um deles. Táison era forte e grande.
Táison morreu.
Milo demorou, mas acostumou-se. Tinha de ser forte, as pessoas precisavam dele,
imagine só... O que seria deles se Milo simplesmente se entregasse à
tristeza? Ele tinha um papel na casa, mesmo sem entender direito qual era.
De qualquer forma, as coisas começaram à ficar ruins após
a morte de Táison. Milo caiu em uma gigantesca crise existencial. Depois
da morte de seu irmão (adotivo), Milo já começava a se
perguntar qual era o significado de tudo o que vivia. O porquê. Milo já
não sabia qual era a razão de se estar vivendo naquele quintal.
Milo caiu de vez no vício. Lambia o limo das paredes para esquecer, bebia
a água que saía da máquina de lavar para esquecer. Passou
a perseguir as sombras dos pássaros que voavam ao meio dia com muita
mais violência do que anteriormente. Milo estava perdido.
Um dia, que depois seria lembrado por Milo como "O Dia", um pequeno
e magro rato entrou em seu quintal. Um dia, que depois foi lembrado como "O
Dia", Milo redescobriu o sentido das coisas.
O rato apareceu durante uma noite quente de janeiro (não, Milo não
sabia o que era janeiro), ele vinha encolhido, ao modo dos ratos, correndo sempre
próximo às paredes. Milo observava o rato, observava-o da porta
de sua edícula (depois da morte de Táison, Milo ficou com toda
a edícula para si, já não conseguia dormir na casinha que
havia sido de seu irmão.), observava aquele bichinho pequeno e indefeso
que, aos poucos começava a se sentir seguro o bastante para caminhar
longe das grandes paredes.Milo achava graça no pequeno animalzinho que
atravessou o quintal à galope, indo parar ao lado de sua panela de comida.
O rato olhou para Milo esboçando um humilde agradecimento com o olhar,
pegou um grãozinho de ração, fez reverência e deu
início ao ritual sagrado do jantar.
Milo já voltava para seu ninho de papel e pano quando, de súbito,
lembrou-se.
Táison, tão feliz, matava ratinhos. Táison, que nunca
havia se perguntado o sentido da vida, matava ratinhos sem ao menos se importar.
Milo virou-se novamente para o ratinho, que o olhou enquanto mastigava. Milo,
sem pensar duas vezes, partiu para cima do pobre ser, que nem ao menos teve
tempo de se proteger. Milo, rosnando, abocanhou-o e partiu-o em pedaços.
Na outra manhã as pessoas viram o cadáver do pobre rato que havia
sido assassinado à sangue frio, o cadáver do pobre rato que deixava
uma fêmea e uma ninhada para o destino cruel. E as pessoas gostaram. Naquele
dia Milo comeu resto do almoço com pequenos pedaços de hambúrguer.
Assim como Táison fazia. E Milo viu que a alegria estranha que sentia
podia facilmente esconder toda a culpa pelo que fez.
Depois de três ratos já não havia mais culpa. Depois de
uma vida de ratos mortos e restos de almoço, Milo deixou de se importar
com o porquê.