A Garganta da Serpente
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Carta a Augusto

(Mariana Porto)

Confesso que perdi as contas das vezes que utilizei desta mesma cadeira e desta mesma caneta, buscando organizar minhas ideias da melhor forma possível, tanto para mim, quanto para você. Gastei todo meu vocabulário procurando boas definições, explicações, moldes e gravuras para explicar o óbvio que, de tão simples, nem eu mesma sou capaz de acreditar.

Augusto, foram meses sem uma resposta sua para as minhas incontáveis cartas, borradas com sentimentos frescos e pedidos sinceros, desenhados com cuidado e que buscavam alguma referência do que uma vez não precisou nem ser dito ou escrito. Saiba que, além das cartas, escrevo também músicas inteiras buscando imortalizar o que eu não tenho certeza da morte por não ter nem uma pista de em qual parte do caminho foi enterrado.

Algumas vezes, garanti a mim mesma que, daqui para frente, me preocuparia apenas com as flores e aceitaria que nossa história já é póstuma. Já especulei, criei inúmeras táticas, impus regras, medi os prós e contras, tudo com o intuito de chegar o dia que meu corpo e alma encontrariam novamente a frequência harmoniosa entre o timbre e o tom dos batimentos cardíacos.

Prefiro não cogitar a ideia de que minhas cartas sirvam de piada, carregadas desse meu romantismo exacerbado e incontrolável, que mistura amor, paixão, ego e ansiedade e me enche de olheiras. Você sabe que é durante a madrugada que mais lembro de você. Desde que descobri que a insônia poderia ser uma ótima companhia aos que buscam fugir do medo, tenho ficado contigo todas as noites. Sei que, do lado em que você se encontra hoje, está cada vez mais difícil dormir. Sei também que se tornou quase impossível ceder as "boletas". Eu posso sentir, mesmo sem qualquer notícia sua desde que deixaste, pela última vez, a sala aqui de casa.

Insisto nas cartas porque sou fiel às entrelinhas e confiante no destino e que, se o universo conspira, estas cartas têm chegado não só ao destinatário, mas também ao seu destino. Não é preciso colocar no envelope que sou eu a remetente de todas elas, uma a uma, pois mesmo que corra o risco de ser confundida com outra moça, prefiro deixar aberta a possibilidade de, quem sabe, arrancar alguns sorrisos que poderiam não se abrir com uma simplória carta minha, assinada e com um ponto final.

Você, que sempre fez questão da sinceridade hoje silencia, talvez por repudia, talvez por amor. Sabe que hoje, só és capaz de amar-me à distância, e que existem limites dificilmente superáveis que nos colocam em lados opostos da mesma moeda. E quando menos espero, percebo mais uma vez buscando motivos para entender sua distância como fuga ou como preservação, mas jamais como motivo de ter minhas cartas queimadas.

Lembro-me bem, Augusto, que a única vez que fui capaz de presenciar uma reação sua às minhas letras redondas, cuidadosamente escolhidas e dispersas em um papel de caderno, foi meses antes de sua partida, quando eu tomei a decisão de recitá-las a você. Ah, eu era tão mais corajosa e confiante naqueles dias! Era capaz de comprar briga com qualquer um que ousasse duvidar que ali estava algo que "era para ser". Era. E agora, busco encontrar no caminho que nos divide, este que esta carta percorre, uma resposta: tua, com letras borradas de falta, ou do mensageiro, avisando que não existe mais destinatário, e já não se pode apostar no destino anônimo.

Ainda espero,
ainda quero,
ainda fujo, reprovo-me por minha insistência,
mas também assumo,
prefiro terminar esta carta com reticências...

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