A Garganta da Serpente
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Que sozinhos estão os cachorros

(Manilkara)

Pessoas iam e vinham pela praça, passeavam ou esperavam como ela, sentada num banco, mas só ela esperava o Bruno, só Bruno, de chegar, viria ao seu encontro.

Havia muita gente também na rua por causa do feriado nacional e o risco de ser surpreendidos, por qualquer conhecido, sempre era possível. O cachorro chegou andando devagar e mexendo o rabo em sinal de aprovação, o que dava a entender que o animal aceitava a companhia dela por um momento, sempre que ela tivesse a amabilidade de compartilhar com ele aqueles pedaços de bolacha que atirava para os pombos, enquanto cantava uma melodia. É verdade que quando a gente faz isso, parece que está muito ocupado com essa bobagem que dá tanta satisfação, e que geralmente fazemos quando estamos despreocupados e não temos nada mais importante para fazer ou pensar, o que no caso de Moira era diferente, ela tinha no quê e em quem pensar, mas pensar em Bruno a isolava cada vez mais do mundo, por isso, enquanto ficava ali, esperando por ele, se dava uma trégua.

Sabia que Bruno voltaria a pedir-lhe para se separar de vez como se esperasse que ela compreendesse, o que na verdade, Moira, apesar do narcótico que a embelezava, tinha chegado a entender, sim, a lealdade da sua hombridade para não prejudicar à família e ter que abandonar Isabel "Não interessa, tenho que libertá-lo de sua escravidão" disse, "a morte na sua vontade não repara em separar esposos que já não mais se amam, a morte não sabe de amor, nos leva a todos e parece que nunca alcança para sua alegria porque sempre volta e procura que mais e mais a acompanhem."

Moira, taciturna como era, considerava que existem casais que não merecem sê-lo e que a sociedade, onde se pensa que ninguém é uma ilha, os mantém unidos com polias em lugar de juramentos devotos, "tudo parece um canil de reprodução"dizia.

O cachorro lambe as migalhas espalhadas no chão.

"Por quê você não entende que eu sou tudo pra você, sou a vida, o amor, a libertação, posso salvar você da dor, sei que a morte decidiria o mesmo que eu, existe apenas uma trindade, a divina, não pode existir outra na terra, o triângulo deve abrir-se e diluir-se por algum de seus vértices"

Bruno chega pelo lado noroeste da praça, quando está frente dela já há uma roda completa de cachorros que disputam as bolachas junto com os pombos. O Homem afugenta todos com um barulho feito com a boca que causa graça para ele mesmo e a simpleza do ato lhe produz rubor que demonstra um que de timidez.

Propõe ir tomar um café ao bar que conhecem "Tem muita gente aqui" diz ele, "É por isso que eu gosto", pensa ela.

Sentam à mesa dissimulada por um caramanchão de madeira, pintado de branco, no qual trepa uma roseira de plástico. É a época do 'verão de julho', Bruno enxuga a testa com um lenço, faz girar ao direito e ao contrário a aliança de casamento e se limita a repetir o discurso de sempre, cobrindo as frases com um tom ameaçador por se não bastasse com o desgarro da decisão. Ela escuta suas razões, mais razões, más, indiferente à peroração, roça-lhe o pé por debaixo da mesa. Ele continua indiferente, ela retira o pé, gira de lado na cadeira e cruza as pernas para que sobressaiam debaixo da renda da toalha de mesa, deixando ver até os joelhos.

Desta vez mudaram o café pela cerveja e alguns mistos quentes, mais de acordo com a temperatura. "Vamos fazer amor pela última vez, Bruno, me dá esse gosto, como adeus"

Jamais o tinham feito com tanto desespero, tão rápido e extraindo-se tanto prazer, como se a paixão sempre encontrasse, em algum bolso, mais moedas de prazer, por isso o último encontro, que tinha parecido insuperável, ficou eclipsado com este que os levou ao êxtase, lhes arrancou lágrimas e conheceram um pranto duro, de poder sobre a morte. Imediatamente veio mais um gozo profundo e aniquilador, então se acariciaram até derrotar-se mutuamente e a si mesmos, até o desmaio.

Ele novamente a acompanhou num táxi até a esquina da casa dela. Não se beijaram para despedir-se "Quando você for livre, você vai me amar tanto como eu a você, vou te esperar" disse ela convencida de que era um augúrio ditado, nos seus ouvidos, pelo desespero.

Aquele calor suave da tarde de julho tremeu no ar como se a esperança fosse o vestido da primavera que se aprontava para chegar.

"Nosso repórter entrevistou algumas das colegas de trabalho, que afirmam que Lopez tinha uma conhecida inclinação pelas situações de infidelidade". Manifestou a voz do locutor de rádio.

Essa voz, como as vozes do aparelho de televisão a miúdo se intrometem em nossos ouvidos junto com os planos diários, as necessidades mensais e os desejos que ano após anos não nos deixam a sós com outros pensamentos que não sejam aquilo que teremos que conseguir, ou em último dos casos, aguentar como possamos. Essas vozes que a gente convida, sem medir até onde chegará sua indiscrição, às nossas vidas uma vez que compramos o aparelho e instalamos em nossas casas. As vozes que opinam, estejamos nós de acordo ou não, e a quem agradecemos o manter-nos informados, alguma que outra piada e a música que gostamos.

"Transcenderam novos detalhes sobre a personalidade da enfermeira Moira Lopez, quem a tarde do passado três de agosto...".

O rádio, dizíamos, tantas vezes desligado com apenas um gesto sem que isso cause em nós remorso de ter que silenciar sua voz. Se a gente tem um rádio já não está mais só, especialmente durante as noites, quando o sono nos espia desde a calçada sem decidir entrar, nos viramos na cama e lembramos que a melhor maneira de afugentar a mania de seguir acordados, é ligá-lo e zombar do deus do sono pela sua indecisão ou seu egoísmo. De qualquer maneira, em algum momento, deverá conceder-nos sua graça e enquanto não podemos fechar os olhos, abrimos os ouvidos à transmissão radial, e por que não, iniciamos um diálogo com o locutor, em voz alta, ainda sabendo que muitas de nossas perguntas não serão respondidas.

"Se soube que anos atrás esta mulher manteve uma relação amorosa com um dos seus chefes ...".

A voz que emite o rádio não demonstra incertezas, temores, nem agitação nas inflexões. Sempre afirma, quando pergunta ou cita as palavras de alguém, parece que sempre está com a razão.

"Moira Lopez se está na delegacia décimo quarta desta cidade, a enfermeira, cuja paixão acabou no assassinato da inocente esposa do seu amante..."

O vento de agosto se assemelhava a um útero que se abre em espasmos para expulsar uma nova vida, sua violência era tanta que tudo sobre o solo do bairro se resignava a deixar-se castigar. Através da janela, Isabel viu como se dobravam os galhos dos paraísos, trazendo à lembrança chicotes de amos perversos. Viu, também, passar em redemoinhos uns galhos de limoeiro e voltou os olhos sobre os novelos de lã, colocados sobre a mesa da cozinha, serviu um café e continuou prestando atenção ao programa radial.

Faltava mais de uma hora para que as crianças voltassem da escola e três até o retorno de Bruno. Tomou cuidado em travar bem portas e janelas, supondo que com esse vento ninguém viria visitá-la.

Ligou o forno e pôs a massa de pão para cozer, também acendeu duas bocas do fogão porque sentiu frio, fosse pelo vento, fosse porque os materiais da casa não retinham muito o calor, fossa porque nesse dia se sentia mais indefesa. Voltou a olhar para o corredor lateral por onde só os íntimos da família entravam sem bater, também o recorriam as abelhas quando iam para o pé de pêssego do fundo, e o cachorro quando ia para sua casa, durante a noite.

Formou grupos com os novelos, segundo a cor que levariam as franjas da blusa de lã que estava tecendo para o filho mais novo, quem parecia crescer mais rápido do que sua irmã, além disso ainda faltava meio mês de agosto.

Estava revisando o ponto de cocção do pão quando escutou as batidas na porta da cozinha e com movimento rápido se cobriu com um xale e retirou o trinco da porta tentando adivinhar "Será meu irmão... do colégio... Carlos precisando de alguma coisa".

Era Moira, a mulher de paixões dilatadas na sua frente, quem não se deixava dominar por ninguém nem sequer por esse vento escravista, ao contrário, era ela quem seria capaz de dominá-lo com sua vontade, como um cavaleiro domina seu cavalo. Trazia um lenço de seda na cabeça, óculos escuros e luvas de couro, lembrando àquelas estrelas de cinema. Mas mesmo assim Isabel a reconheceu. À partir do dia em que a viu pela primeira vez nunca a esqueceria, é que Moira era de lembrança pegajosa. Não houve explicações entre as mulheres, nem lágrimas, nem insultos, mas Isabel se sentiu anestesiada por um estranho frio, como se ela mesma se resignasse deixar agir os dois visitantes, Moira e o vento.

A recém chegada tirou da bolsa uma arma que fez explodir, e rajadas insolentes afastaram as detonações e o cheiro de pólvora. A esposa de Bruno sentiu, pela primeira vez, uma bebedeira como nunca antes e a vontade de Moira penetrando-a no ventre e no peito. Penetrações furiosas que nunca tinha lhe permitido à paixão do seu marido, e como num verdadeiro coma alcoólico, convulsionou e foi perdendo as forças e aumentando a rigidez em todo o corpo.

O mesmo vento cúmplice da sua assassina apagou os gritos, manteve afastados os rostos que pudessem assomar-se sobre o muro e protegeu a chegada e partida de Moira.

Isabel sentiu que seus pés perdiam calor, que o calor do forno aberto foi incapaz de dar-lhe e o corpo foi abanado pelo pó que o mastim de vento exalava com cada latido, ajudando a que seu sangue se coagulasse e desenhasse uma renda vermelha sobre suas roupas. Um redemoinho de pétalas de gerânio se assentou sobre os sapatos para que Isabel fora se deslizando ao longo do fio magro da agonia, como os riachos das serras no inverno se deslizam sobre os leitos pedregosos. Assim, ela foi se despindo de hálito numa uma cerimônia lenta, se despojou de agulhas, colheres, anel, tesouras, pente, roupas, sapatos e quando seus filhos chegaram estava nua de vida.

Moira se deixou cair sobre a poltrona frente à janela, tinha acabado de matar para não renunciar ao melhor que tinha em sua vida e lembra que o corpo robusto de sua vítima, um corpo de mãe, não atinou a defender-se "Você se deixou vencer Isabel, eu te selei de escuridão e você sucumbiu". Nesta altura, longe do remorso, Moira reconhece que matou por questões territoriais e que, mesmo que esteja coberta de escombros, pode atravessá-los, despedaça-los, para não desgalhar sua condição humana. Para fora das janelas, o dia se torna velho e a claridade artificial dos néons começa a iluminar os ombros do seu abatimento.

Uma anciã caminha pela calçada na mesma direção em que o dia se evade, a mulher passa a mão pelas têmporas, como retirando teias imaginárias, as mesmas teias que começam a tecer-se na mente de Moira, armadilhas que se enredam como os limites do dia-noite, como os nós da vida-morte.

Um cachorro magro procura, no labirinto de rastros, os do seu amo, que dificilmente voltará a encontrar, porque os cachorros podem até morrer se nos perdem, nós sobrevivemos a sua perda.

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