A Garganta da Serpente
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Como foi que a conheci

(Marcelo Mi Re La)

Minha querida Justine,


Não lembro exatamente o horário... sei que era de tardezinha, não muito tarde pois ainda estava no trabalho. Nunca fui muito afeto a essas coisas de trabalho. Sempre fui responsável às minhas responsabilidades, é fato! Mas sempre gostei de voar... e o serviço público oferece esses obséquios, não é mesmo, cara amiga?

Eu estava estanque em minha sala, apreciando o movimento daquele dia, sem nada para fazer. Observando o vaivém, muitas vezes frenético, outras vezes vagaroso, daqueles que já adquiriram a estabilidade. Hipnotizado por aquela cena nada homérica, fui fazer algo útil: tomar um copo d'água no corredor, abanando o rabo, vadiando.

No meio de tarefa tão insalubre, ouço o barulho de salto, passos apressados... Espichei meu pescoço, arregalei meus olhos, tentando achar a dona daquela pândega toda...

Ai, coração, permita-me revelar com cores verdadeiras aquela cena... Que formosura de moça... que elegância... que era aquilo???

Bela e cheia de delírios... De corpo esguio, pernas torneadas, rosto perfeito e cabelos mais lindos ainda... Ah, Justine... adoro cabelos!!!

Aquela diaba me agradou de imediato. Era como se eu estivesse sido enfeitiçado pela bendita.

Boquiaberto, em ver tanta beleza reunida em uma só pessoa, pensei até em catá-la de borbulhão e dançar um bolero, daqueles bem cafonas pelos corredores daquela organização. Aí lembrei que esse tipo de coisa não é muito meu estilo...

Resolvi calar meus pensamentos e passei a observá-la da maneira mais discreta possível.

E ela se foi... me estiquei ainda mais para olhá-la, até que ela sumiu do alcance de meus olhos, subindo os degraus rumo à sua sala... Sumiu lentamente! Mas tinha que descobrir aonde ela trabalhava...

Durante várias tardes, comadre Justine, fiquei a esperar por sua volta que demorou para acontecer... tive que buscá-la... farejá-la... colocar meu velho instinto perdigueiro, aposentado que estava, de volta à ativa...

E assim o tempo passou... Que angústia, que agonia... Aonde estaria minha musa? Ai, Jesus!!! Será que ela era apenas uma visitante? Amiga de alguém, que trabalhava lá? Namorada, esposa, amante dum Peixoto qualquer? Não, por Deus não... Não poderia ser... Se não estava ficando louco (enfeitiçado estava, mas louco ainda não), tinha a certeza de ter visto um crachá preso em algum lugar da minha bibelô. Guardei aquela agonia só para mim; pensei em comentar com algum colega sobre ela, mas não queria competidores de minha visão (se é que poderia ser possível...).

Fui à sala da Selma e fui tentando descobrir alguma coisa; conversas sem nexo tentando, debilmente, encontrar alguma pista: "E aí Selma, muita gente nova aqui?". "Temos que atualizar o banco de dados na Intranet". "Quer que faça para você?" "Sabe o que é, o tempo teima em não passar". "Ah, não precisa?" "'Tá bom, então..." (cacete!!!).

Ô diazinho mais longo... o tempo não passava e aquele maldito dia não terminava... quem sabe amanhã eu a veria novamente... Fui para casa com uma ponta de desapontamento: já que meu dia de detetive fora frustrado, quem sabe teria um pouco de sorte no outro.

Acordei de sobressalto... É hoje, pensei comigo mesmo!!! Nem que eu pegue o quepe e o cassetete das guardinhas da recepção para trabalhar no lugar delas, para ver quem entra e quem sai de lá!!! Mas de hoje não passa.... Para minha decepção, a manhã passou e não a encontrei... Fui almoçar, cabisbaixo...

Encontrei com meus companheiros de "engorda". Chegando na Dalva, aquele ritual de sempre: O Gil contando suas artimanhas sexuais da noite anterior a altos brados; nem vergonha eu tinha mais, não estava nem aí... ele falando seus impropérios e eu ali, com o pensamento longe... O Nilso falando de seus deleites da informática, sobre o programa espetacular que transformava sons de piano em sons de flauta e outros e vice-versa. Que merda!

E foi no meio desta merda toda que ela surgiu... Como um Messias que vem para salvar seu povo escolhido... Estava igualzinha às lembranças daquele momento mágico, rápido, mas extremamente duradouro!!! Meu coração foi a mil, não sabia o que fazer... Não queria despertar a atenção dos lunáticos à minha volta, mas estava difícil controlar minha emoção: essas coisas são 100% instinto, não têm nada de racional, compreendes, não é, justa Justine?

E ela foi entrando, junto com outras pessoas (sei lá quem... não me importava)... "Ela me viu", pensei... Será??? "Ela me viu sim... olhou de novo". Olhei à minha volta para ter certeza... aí fiquei em dúvida: será que ela tinha me visto, ou tinha ouvido a obscenidade vinda de meu querido colega???

Enquanto íamos pagar a conta, ela foi sentar-se... não me viu...

Ficamos lá fora, falando qualquer coisa e ela lá dentro, comendo qualquer coisa... Queria vê-la mais de perto quando saísse, mas isso não aconteceu. Por um motivo qualquer tive que voltar à minha sala... e perdi nova oportunidade...

Voltei para sala, zanzei pelos corredores e nada!!! Deveria ter tentado olhar o nome dela em seu crachá (sim, existia um, pude ver... mas eu lá ia lembrar disso naquele momento de pura emoção?). Bom, mas sabia que ela trabalhava no Departamento e que almoçava na Dalva.

Agora teria que estabelecer contato... como faria?

Querida Justine... minha vida ficou impregnada daquela que me faz suspirar... Agradeço sua paciência em ler tão insossas palavras... tens sido uma grande psicóloga de minh'alma, amada amiga...

Como farei para estabelecer contato com minha monstruosa inspiração??? Que tolice direi??? Dar-lhe-ei uma cantada à la Don Juan de 5º??? Não sabia o que fazer!!! Aquela ninfa não saia de minha cabeça... seria capaz de fazer um retrato falado da dita para um papiloscopista. Sabia todos seus detalhes...

Em meus pensamentos, era corajoso em minha abordagem. Pensava em frases jocosas e de efeito... mas saberia que no momento que a visse, iria desabar meu castelinho... Mas iria ao encontro dela, não tinha dúvida. Era questão de honra!!!

Justine, minha cara, veja que coisa interessante: naquela manhã recebi um e-mail que, de tão marcante que me foi, guardo a lembrança de seu conteúdo até hoje. Dizia ele:

"Acredite em amor à primeira vista. E à primeira leitura também. Temos sempre que confiar em nossa primeira impressão. É aquela que produz maior impacto, e que pode determinar muita coisa...". O missivista cibernético disse tratar-se de uma frase do Dalai Lama, nunca soube se era verdade.

Pensei que poderia ser um presságio divino, pobre de mim... não sabia o que me aguardava...

Pela manhã, tão longa manhã, nada de minha musa... ai, pobre coração! A tarde iniciou triste, sem inspiração... mas havia esperança. De alguma forma o Dalai Lama tinha preenchido de fé onde havia ansiedade...

E eis que, para o disparar cardíaco, a vejo... ela passou como um tufão, um vendaval, um foguete, um furacão por mim... estava eu na porta da sala de um colega, jogando conversa fora, quando ela veio... lá do final do corredor. Me viu, pude perceber. Tive certeza! Mas abaixou a cabeça e veio correndo muito rápida.... mas para mim em câmera lenta... e sumiu na curva que dava acesso à escadaria....

Ah, minha querida Justine... quem dera pudesse liberar tudo o que senti ao vê-la... não encontro palavras na prosa ou no verso para caracterizá-la. E como poderia? Não sou nem nunca fui poeta...

Minha boa Justine... se você soubesse o que se passa nas profundezas do coração de um homem tocado por um beijo do Cupido... Ah, querida, como queria te explicitar tudo isso... mas não consigo pela minha incompetência gramatical.

Aquela visão, rápida como um flash bastou para acalentar minh'alma. Que beleza era aquela??? Existia??? Era real??? Nunca havia visto nada igual, de tamanha perfeição: os cabelos, da cor da prata, combinavam com os olhos amendoados que combinavam com o rosto de menina e com os seios intensos que combinavam com os lábios carminados que combinavam com seu olhar pueril que combinavam com seu sorriso viçoso que combinavam com minha cara de bobo...

Não consegui, sequer tive a chance, de lhe falar.... Como poderia? Só se corresse ensandecido atrás dela... mas sandeu não sou, mas havia me tornado um. Ah, aquela feiticeira...

Mas estava ainda mais determinado em conhecê-la....

Justine, ah Justine... Não fazes ideia, amiga-anjo, o bem que me concedes ao saber ouvir minhas memórias; mesmo calando-te em teu silêncio, Justine, já alivias meus tremores da lembrança da única...

A feiticeira subiu em polvorosa a escadaria, Justine... fiquei eu lá, comendo sua poeira... meu coração parecia o de um atleta recém saído de uma extenuante prova de maratona... ao mesmo tempo feliz, bobo e inquieto... Não poderia ter deixado passar uma oportunidade dessas! Sabe-se lá, Justine, quando teria outra chance como aquela...

Aquele dia terminou normalmente... Veio o final de semana e junto com ele a ansiedade de passar dois dias distante de minha miragem... Passei a odiar os sábados e domingos!!!

No retorno ao trabalho, alegria ímpar... qualquer oportunidade seria uma dádiva divina... Esperei, esperei e nada!!! Passou-se a semana e nada dela... Amaldiçoei minha falta sorte, amiga amada... Por que é que somos assim?

"Ora, essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos - pomos a culpa de nossos azares no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída a influência divina... Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode", clamara Edmundo. E assim passei a semana... semana maldita!!!, malogrei...

Cabisbaixo, amiga que comigo comunga, a semana seguinte iniciou... fiz planos para falar com ela... odes musicais para cantar à ela, mesmo cantor não sendo. Mas precisava encontrá-la e isso não dependia apenas de mim... tinha que contar com as benesses do Cupido.

Ah, o Cupido... Justine, minha amada Justine... O beijo desse ser vem com tanta força e poder que é impossível controlar seus efeitos... E seu beijo me pegou novamente... estava por ali, à toa, esperando uma flechada sua e ele me pegou... Minha redentora entrou numa sala, próximo àquela em que eu estava... começou o tremor! Parecia que eu sofria de Parkinson... Era hoje!!! Vibrei, torci, rezei, estremeci, amedrontei...

Fui ao encontro daquele monstruoso ser... E Cupido intercedeu por mim... na hora em que passava em frente à sala onde ela estava, abriu-se a porta e ela saiu... majestosa, perfeita... monstruosa, querida Justine! Vi-me cara a cara com ela... poucos centímetros de mim... conseguia sentir seu cheiro e ouvir sua respiração...

Um turbilhão de pensamentos passou pela minha mente... minha vida inteira passou por mim... era como se eu estivesse morrendo naquele instante e renascendo ao mesmo tempo para ela...

Afável Justine, ela, ao me ver, tentou fugir de mim... Não poderia permitir isso novamente e falei a primeira bobagem que me veio à cabeça...

"Oi, você trabalha em Tal lugar?", pergunta imbecil... Eu já sabia a resposta...

"Sim", respondeu ela com seu sorriso matreiro e pueril...

Pensei comigo, Justine, de onde seria possível sair tal beleza e sedução? Se do "céu profundo ou do fundo do abismo pouco me importava... Se de Deus ou de satã não me interessava"... Compreendi Baudelaire! Aquela "fada de olhos suaves, rainha da luz", estava ali... a poucos centímetros de mim... Nada mais importava!!!

Não podia perder tempo em meus devaneios... tinha que falar-lhe alguma coisa... inventei uma mentira:

"Um amigo meu está interessado numa dessas pastas do teu setor... poderia me arrumar uma?". Olha só a tolice que inventei... se você visse, Justine, uma daquelas pastas, entenderia a tolice...

Mas ela foi mais meiga que imaginei... Respondeu que não sabia, mas que iria descobrir e me avisaria... e ela se foi... aquele momento tão rápido foi o marco de meu renascimento, amada Justine...

O dia passou... desta vez mais alegre... tinha vencido o desafio! Falei bobagens, por certo... mas descobri o que queria... seu nome: Fulana de Tal; era o que delatava seu crachá... Minha musa agora tinha um nome... e um nome real... e tinha voz também... e uma voz de anjo ou de sereia... não sabia diferenciar! Há diferenças, Justine?

Naquele rápido e mágico momento ela me ensinou as coisas mais lindas que já aprendi, inesquecível Justine... Aprendi que existem novas emoções, aprendi que a semana tem mais de sete dias (principalmente quando a semana era longa demais... sempre era longa sem a presença dela, minha Justine...), com ela aprendi a valorizar mais as minhas alegrias e a ser mais cuidadoso com meus sentimentos.

Com ela aprendi a ver a luz do lado oculto da lua... Se você soubesse como brilha essa luz, meiga Justine... Mas aprendi, principalmente, que um beijo pode ser mais doce e mais profundo que sequer sonhei uma vez... ela me ensinou isso apenas uma vez, mas foi uma lição que jamais esquecerei...

Ai, inesquecível Justine, quando me concentro para escrever a você, contando-te minha história, meus pêlos se arrepiam... é como se tudo o que sinto pela minha amada viesse à tona novamente. Este sentimento, 'mademoiselle' Justine, é bom e ruim ao mesmo tempo... Luto para não senti-lo, mas ao mesmo tempo não quero perdê-lo. É uma forma de tê-la dentro de mim... Consegue entender isso, minha cara? Se minha loucura a estiver contaminando, certamente entenderá.

Já sabia o nome dela... agora era questão de tempo para tentar manter contato...

Alguns dias depois da minha pífia investida, mas proveitosa, a encontrei pelos meandros de nosso lugarejo de labor... De longe ela me fez um sinal ininteligível balançando os braços... Mas foi o gesto mais gracioso, mesmo ininteligível, que vi... chacoalhava os braços freneticamente falando alguma coisa que continha a mensagem "não"... Deveria ser a "belíssima" pasta que havia pedido a um hipotético amigo; pelo visto não tinha nenhuma, melhor assim...

Voltei à minha sala e, num vai e vem, pensava, repensava se enviaria alguma mensagem à minha fantasmagórica criatura...

Justine, tenho lhe falado que gostaria de poder expressar tudo o que se passa no âmago do coração dum homem... gostaria que você pudesse ver tudo isso para que eu não estragasse esta verdade com meu subjetivismo patético.

Eu me sentia um menino, assustado e alegre... irresponsável! Total instinto, sem nenhuma razão. Aquela feiticeira, minha amiga, havia aniquilado toda a minha vivência e experiência que julgava ter... Bradava a todos que jamais seria subjugado pela paixão... ai! Pobre de mim... Aprendi que jamais devemos provocar aquilo que está fora de nosso controle.

Tocado por Agares, criei coragem e comecei a jornada com minha eterna Rapunzel... Roí as unhas, depois de mandar a primeira mensagem... não sabia se haveria uma resposta... tentei ser superficial, deveria sê-lo! Agradeci pelo empenho dela em tentar me dar o que pedi...

Estava certo que ela responderia com um breve "ok" ou algo do gênero... Mas seu retorno foi pior que esperava: "quem é você?", dizia ela...

Ai, Deus meu... se soubesse minha agonia naquele momento, Justine, talvez entenderia o sentimento dum pobre diabo... Ela não sabia quem eu era... ou pior, estava fazendo de conta que não sabia; que desprezo...

Não deixei me abater, querida Justine, respondi tentando me apresentar à minha vida... e ela foi tão doce em suas respostas... viciei nela plenamente! Sofria de delírios toda vez que não lia suas mensagens... E elas foram ficando cada vez mais intensas...

Um dos momentos de maior alegria em meu curto relacionamento com aquela que não deixo de sonhar, foi quando, conversando pelos nossos computadores, ela perguntou se poderia ligar para mim... Respondi com um seco "claro", fingindo ser duro para demonstrar uma fortaleza que já me havia sido destruída. Na verdade, por dentro, me contorcia num misto de emoções novas... Eu não sei por que, delicada Justine, os homens querem esconder seus sentimentos... mas eu fiz isso... ao menos tentei. Mas acho que não obtive o resultado pretendido.

Sua voz me fez levitar... como poderia, numa única criatura, tudo poder se conjugar de maneira tão perfeita? Algum defeito ela deveria ter... não era possível ser tão bela, tão doce, tão meiga, tão sensual, tão simpática e ainda ter uma voz de me fazer arder em febre...

Os curtos relatos desse diálogo, Justine, guardo na minha memória para sempre... se me permite, continuará ali guardado. Não os comungarei contigo...

Durante algum tempo continuamos conversando de maneira virtual... nunca foi tão bom estar no Departamento... Nunca foi tão ruim ter que ir embora...

Poucas vezes a via, mas sempre conversava com ela...

E assim foi... até que um dia combinamos em almoçar juntos... eis o início de minha febre que até hoje teima em continuar ardendo...

Minha Justine... ai, minha eterna amiga!!!

No ardor da minha febre, minha querida, já quase são, fiquei atordoado com o veneno de minha Serpente... a única, a inesquecível, aquela cujos adjetivos são pobres para expressá-la...

Já tentei de maneira vã descrevê-la para você, minha cara... jamais conseguirei... gostaria de ter o dom de Michelangelo, para quem tão fácil era moldar, numa pedra fria e morta, os rebustos d'algum modelo... Entretanto, falar isso ofenderia, decerto minha senhora, pois o calor desta sereia não combina com a frieza de mármore qualquer... ébano algum, por mais caro que seja cabe em sua formosura... seus olhos, vivos e fogosos, jamais combinariam com a falta de vida dum minério frio e sem graça...

Ah, Justine... nada, coisa alguma, pode se comparar à ela... ela é única, perfeita, inenarrável...

Ela me domou, me seduziu de tal forma que quando fomos ao nosso primeiro "encontro", minha razão ficou em algum outro lugar, menos onde deveria estar... Mas não é assim que acontece, Justine? Quando a paixão vem nos dominar a razão desaparece, a adrenalina sobe e todas nossas reações são instintivas?

A feiticeira transferiu a mim o ônus de escolher um lugar para irmos... Ai, meu Deus... ai, minha Justine... que lugar, no mundo inteiro seria digno à ela??? Nenhum... mas tive que escolher um lugarejo qualquer; fomos à uma tapera, uma caserna...

Descobri nela outro encanto... além de tudo era humilde e se rebaixou ao meu patamar... embora aquele lugar fosse desmerecedor de sua presença, ela se resignou e me fez companhia. Apetite? Não o tinha... como poderia tê-lo??? Sua presença me faz perder a fome, a sede, a razão... Você sabe o que é isso, Justine? Por certo não... sequer deves imaginar o que seja...

Num ímpeto, guiado pelo mesmo Agares que houvera me guiado (e que guiou-me também noutro evento que relatarei posteriormente), ousei romper aquele véu imaculado que nos separara... acariciei seus cabelos... Cabelos? Aquilo não pode ser chamado de cabelo... era seda! A mais pura, a mais virgem, a mais intocada seda que poderia existir...

Olhei seus olhos buscando uma possível aprovação em meu ato ousado e matreiro... neles não vi desaprovação, o que me encheu de alegria profana! Mas também não vi aprovação, o que me encheu de receio meninil...

E ali fiquei... e poderia ter ficado horas naquele movimento suave. A eternidade passaria num piscar de olhos... Mas tivemos que ir embora: o dever nos chamava, embora eu não o escutava; na verdade o ignorava!!! Aquele momento, pensei, tolo que sou, foi o momento mais cálido de minha parca vida... Não sabia o que me aguardava, tampouco o momento que viveria a seguir...

Voltamos ao nosso ofício e por lá ficamos... até que combinamos, depois de muita insistência de minha parte, e solenemente mentir a respeito de um comportamento que jamais teria, que no final daquela mesma tarde iríamos prolongar nosso "encontro"...

Ah, Justine... o dia seguinte chegaria, mas o final daquela tarde não...

A angústia finalmente terminou quando nos encontramos no saguão de nosso trabalho... ela veio, formosa não, mas ainda muito mais formosa que de costume; Ah, Shakespear, venha em meu socorro: "assim que a vi, a amei; assim que a amei, suspirei; assim que suspirei, perguntei-me o motivo; assim que descobri o motivo, procurei o remédio". Mas aonde poderia haver um??? Nunca ninguém havia me contado que haveria algum!!! E se houvesse, duvido muito que me sujeitasse a ele.

Fomos a algum lugar... um lugar qualquer... Justine, eu tinha tanta coisa para falar para ela, tanta coisa a revelar... mas justamente o amor que pode fazer um cão ladrar em versos, roubou minhas palavras; foi voando como aquele maldito pássaro escondido em cima d'algum telhado inalcançável...

Inerte, aproveitei o momento... falei tolices, tentei ser divertido... mas devo ter sido um desastre! E então fomos embora... ela me deixou em frente à entrada de nosso trabalho. Um simples tchau e nada mais... quem sabe no dia seguinte não poderíamos nos ver novamente e começar tudo de novo... NÃO!!!

Justine, o que vou te contar agora trago na minh'alma desde então... nunca ninguém soube, ao menos de minha boca; estou confiando a ti este segredo que me causa tanta saudade... o pequeno relato que te farei venha a ser, talvez, apenas 1 décimo daquilo que senti...

Virei-me para a porta para tomar meu rumo... mas não resisti... Clamei por Agares e, ao me virar para ela, seus lábios, rosados, vibrantes, eram como um convite... um riacho... me seduzindo, me chamando... ouvi o canto da Yara e me joguei nas profundezas daquele oceano... e mergulhei naquela água gostosa... e pude ser envolvido pelos beijos de suas ondas e levado ao sabor de suas marolas... estava me afogando mas não queria ser salvo...

Me entreguei à ela como jamais sonhara poder me entregar... e naquele pequeníssimo tempo que durou o momento mais inebriante de minha vida, tive a nítida sensação de que ela havia se entregado a mim também... talvez como um adeus, não sabia e ainda não sei...

Justine, minha Justine, nuca soube que um beijo poderia ser tão doce... nunca imaginei que um beijo poderia selar minha vida para todo o sempre... Ah, Justine... condenaria minha eternidade por aquele beijo. Entregaria meu corpo ao fogo por aquele beijo...

Suas mãos acariciando meus cabelos, seus lábios bem junto aos meus, sua respiração, quente e ofegante bem junto a minha... que sensação! Nada há de se comparar àquelas sensações... lembro detalhes de cada uma delas... lembro o gosto de seus lábios, a maciez de seus cabelos, o calor de seu ar e o seu cheiro feminino...

Mas tive que ir embora; e ela teve que ir provar seu vestido de noiva, Justine... Sim, ela iria casar!!! Eu? Já era e continuo casado. Ela com o marido dela, eu com minha mulher...

Fui para minha casa... Adormeci, pensando nela. E a vi logo em seguida. Ah! Se tivesse sabido que era um sonho, nunca teria acordado...

Justine, no fundo de cada alma há tesouros escondidos que somente o amor permite descobrir. E que tesouros esta feiticeira me fez revelar...

Ela foi minha vida, meu princípio e fim...

Ela foi meu futuro, presente e passado...

Ela me ensinou a ver a vida com cores mais intensas...

Ela me ensinou o verdadeiro sabor de um beijo...

Ela ordenou e desordenou meus fundamentos...

Ela me orgulhou e me desfaleceu...

Ela foi minha religião...

Sem ela a vida tinha gosto de isopor...

Ela é Roxane quando leio Cyrano,

Ela é Justine quando leio Sade,

Ela é Beatriz quando leio Dante,

Ela é Julieta quando leio Shakespeare,

Ela é minha amada-última quando leio Vinícius...

Mas o que é pior... ela não apenas foi... mas continua sendo...

Ah, Justine... Que tesouros esta feérica carocha me fez descobrir. Tesouros que imaginava não tê-los; tesouros que imaginava existir somente em romances dos mais piegas... Ah, minha adorável Justine... ela foi minha redentora!!! De uma maneira tão simples e sutil mostrou-me a verdadeira alegria e motivo da vida...

O ritmo desse dedilhar era ditado pelo ritmo de minha musa dos ritmos... aquela cujo nome é musical...

Ah, Justine... o olhar dela me acende, a saliva dela me mergulha, o corpo dela me excita, seu olhar me enfeitiça, seu sorriso me comove...

Chorei lágrimas silenciosas, que ninguém jamais soube até esse momento! Estás sabendo agora, minha flor... Mas não foram lágrimas de tristeza, mas de libertação, de gozo, de remição, de resgate...

Quando sonhava com ela, a Rainha de meus Sonhos, queria me perder naquelas fantasias. Acordar não era só perder aquele faz-de-conta, mas era uma crueldade d'algum tétrico demônio...

Mas de sonhos não se constrói uma vida, não é Justine... e o problema é que depois daquele mágico e furtivo "encontro" só construí erros. A inconveniência, por mim tão odiada, de quem eu quero a mais longa distância, me perseguia noite e dia... Não mais sonhava, mas sofria de letárgicos pesadelos...

E assim, dessa forma melancólica nunca mais a vi...

Não quero colocar um ponto final aqui, Justine... Mas há coisas que não dependem somente de minha vontade e meu desejo... mas te assegure que dela ainda não desisti...

Me aguarde, amiga... quem sabe essa história não continua?

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