Imagine um homem.
Um homem alto. Ou baixo. Um homem negro. Ou branco. Talvez índio. Oriental.
Um homem gordo. Magro.
Não sei. Imagine. É um homem.
Seu nome é Duarte, ou pode ser Mendes. Talvez Saraiva. Talvez Saramago.
Não sei. Imagine. É um homem.
Usa terno e gravata. Talvez bermuda e tênis. Talvez sunga e chinelo.
Não sei. Imagine. É um homem.
É só um homem. Pode ser bom. Ou mal. Incriminável. Inocentado.
É um homem.
Ele caminha. Talvez com pernas, muletas, rodas de cadeira, telepatia. É
um homem. É só um homem.
Ele vive. Pode não ter nome, roupa, casa, pernas. Mas tem caminho. Suas
ações reverberam no horizonte. É só um homem. Que
vive.
Ninguém o vê. Ou vê. Cego, mudo, roto. Despercebido. Hábil,
pungente, gritante. Vislumbrado. Ele pode ser sabido ou ignorado.
Não sei. Imagine. Ele vive. É um homem.
Algo diz viverás e o ser é criado. Sim, ele vive. Suas ações
reverberam. É um homem. É só um homem.
Imagine um homem. Duarte ou Mendes, Saraiva, Saramago. Ele não é
assassino. Ele não é ladrão. Ele é um cara calmo.
Ou talvez finja ser. Imagine um cara calmo.
Mora numa casa. Ou apartamento. Quitinete. Tem um emprego. Talvez até
dois. Ganha bem, ou pouco. Quem sabe se não é desempregado. Pode
viver de fazer bicos. Pode até mesmo nem querer viver. Mas ainda vive.
Ele vive. E ainda é um homem.
Ninguém jamais ouviu sua voz. Ou ouviu. Há muitos anos. Pode ser
que esse alguém já até tenha esquecido. Um homem, seu claustro,
seu mistério. É um homem misterioso.
Imagine um homem misterioso. Um cara calmo, mas misterioso. Imagine um homem
desconhecido por seus mais próximos. Imagine o desconhecido, eternamente
chamado mau.
Um homem. Imagine um homem.
Pintor de feriados. Imagine-o recolhendo a tinta rubra com a espátula
e ferindo a tela até sangrar. Imagine um homem observando sua obra desconstrutiva
com olhar embasbacado e mãos de tinta fresca. Imagine-o abraçar
seu próprio ombro em sinal de aprovação. Imagine-o abrir
a porta e sair à rua.
Imagine-o voltar à noite, caminhando, despercebido. Imagine-o vislumbrado.
É ele! Sim, ele! Imagine o reverberar errôneo de sua ação.
Imagine-o interceptado. É ele! Sim, ele! Desconhecido, misterioso, enclausurado,
um homem. Não eu! Outro! Imagine-o desacreditado.
Um homem. Duarte ou Mendes. Delegacia. Uma mulher assassinada. Facadas. Ou estrangulada.
Sangue nas mãos dela. Sangue no seu ombro. Culpado. Esfaqueador. Ou estuprador.
Ou sequestrador. Ou assaltante. Ou psicopata.
Um homem. Duarte ou Mendes. Tribunal. Uma mulher assassinada. Culpado. Pena
longa. Assassino. Um homem, seu claustro, sua pena. Um homem calmo, uma cela.
Imagine um homem, imagine a cela.
Duarte ou Mendes, Saraiva, Saramago. Penitenciária. Cela cheia. Prisioneiros.
Imagine os prisioneiros. Altos ou baixos. Fracos ou fortes. Não sei.
Imagine. Prisioneiros. Esfaqueador, estuprador, sequestrador, assaltante,
psicopata. Um cara calmo. Prisioneiros. Imagine um homem andando na calma solitária
de um pátio escuro de prisão.
Um homem. Um homem a se indagar. Imagine um homem calmo a se indagar. Esfaqueador?
Estuprador? Sequestrador? Assaltante? Psicopata? Seria? Não seria?
Poderia ser? Não poderia? Era? Não sei. É um homem. É
só um homem.
Um homem cujas ações percutem e reverberam. Um homem misterioso
que engendrou seu próprio mistério. Um homem desconhecido que
enveredou pelos caminhos do se desconhecer. Um homem.
Pode não ter nome, roupa, casa, pernas. Mas tem caminho. Um homem que
não fora, que não era. Mas seria. E tornou-se.
Um homem. Duarte ou Mendes. Absolvição. Inocente. Trabalhador.
Um cara calmo. Dois empregos. Ou não. Desempregado. Talvez. Pintor de
feriados. Culpado confesso a lhe ocupar o lugar. Um homem, seu claustro, o mundo.
Imagine o culpado. O culpado era jovem. Ou velho. Loiro. Talvez moreno. Alto.
Ou baixo. Magro. Talvez gordo. Não sei. Era o culpado. Imagine o culpado.
Consciência pesada. Esfaqueador, ou estuprador, ou sequestrador,
ou assaltante, ou psicopata. Matou, assaltou. Fugiu, se ocultou. Voltou, confessou.
Consciência pesada. Pena merecida. É ele! Sim, ele! A catarse da
pena cumprida. Sou eu! Não outro! Eu! A expurgação do mal
de quem se sabe mau.
Duarte, Mendes, Saraiva, Saramago. Um homem, seu claustro, o mundo. Misterioso,
desconhecido. Um cara calmo. Liberdade. O mundo era desconhecido. Imagine o
desconhecido, eternamente chamado mau.
Duarte ou Mendes. Um homem. Um homem em si desconhecido. Um homem cujas ações
reverberam. Um cara calmo. Um cara calmo e misterioso. E sua obra desconstrutiva
manchada pelo tempo. E sua camisa de marca rubra no ombro a lhe esperar sobre
o sofá. Ou cadeira. Ou poltrona. Em sua casa. Apartamento.
Quitinete. Imagine-o abrir a porta e sair à rua.
Imagine-o matar. Por que matar? Matar porque é de sua natureza. Matar
porque é desconhecido dentro de si e se crê autoconhecendo em quem
não é. Nunca punido. Culpado. Jamais punido. Imagine um homem
impune. Imagine o inocente que se perdeu dessa vez, nesse ciclo infinito, nesse
sagrado oito, manchas de passos reflexivos na calma solitária de um pátio
escuro de prisão.
Não eu! Outro! Imagine ações reverberando no horizonte
do prisioneiro. Imagine o prisioneiro. Cela, claustro, mistério e indizível.
Asas para não cairmos ao peso das mãos que nos empurram para o
abismo.
(Rio de Janeiro, 6 de junho de 2006)