A Garganta da Serpente
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Sagrado oito

(Milena Martins Moura)

Imagine um homem.

Um homem alto. Ou baixo. Um homem negro. Ou branco. Talvez índio. Oriental. Um homem gordo. Magro.

Não sei. Imagine. É um homem.

Seu nome é Duarte, ou pode ser Mendes. Talvez Saraiva. Talvez Saramago.

Não sei. Imagine. É um homem.

Usa terno e gravata. Talvez bermuda e tênis. Talvez sunga e chinelo.

Não sei. Imagine. É um homem.

É só um homem. Pode ser bom. Ou mal. Incriminável. Inocentado. É um homem.

Ele caminha. Talvez com pernas, muletas, rodas de cadeira, telepatia. É um homem. É só um homem.

Ele vive. Pode não ter nome, roupa, casa, pernas. Mas tem caminho. Suas ações reverberam no horizonte. É só um homem. Que vive.

Ninguém o vê. Ou vê. Cego, mudo, roto. Despercebido. Hábil, pungente, gritante. Vislumbrado. Ele pode ser sabido ou ignorado.

Não sei. Imagine. Ele vive. É um homem.

Algo diz viverás e o ser é criado. Sim, ele vive. Suas ações reverberam. É um homem. É só um homem.

Imagine um homem. Duarte ou Mendes, Saraiva, Saramago. Ele não é assassino. Ele não é ladrão. Ele é um cara calmo. Ou talvez finja ser. Imagine um cara calmo.

Mora numa casa. Ou apartamento. Quitinete. Tem um emprego. Talvez até dois. Ganha bem, ou pouco. Quem sabe se não é desempregado. Pode viver de fazer bicos. Pode até mesmo nem querer viver. Mas ainda vive. Ele vive. E ainda é um homem.

Ninguém jamais ouviu sua voz. Ou ouviu. Há muitos anos. Pode ser que esse alguém já até tenha esquecido. Um homem, seu claustro, seu mistério. É um homem misterioso.

Imagine um homem misterioso. Um cara calmo, mas misterioso. Imagine um homem desconhecido por seus mais próximos. Imagine o desconhecido, eternamente chamado mau.

Um homem. Imagine um homem.

Pintor de feriados. Imagine-o recolhendo a tinta rubra com a espátula e ferindo a tela até sangrar. Imagine um homem observando sua obra desconstrutiva com olhar embasbacado e mãos de tinta fresca. Imagine-o abraçar seu próprio ombro em sinal de aprovação. Imagine-o abrir a porta e sair à rua.

Imagine-o voltar à noite, caminhando, despercebido. Imagine-o vislumbrado. É ele! Sim, ele! Imagine o reverberar errôneo de sua ação. Imagine-o interceptado. É ele! Sim, ele! Desconhecido, misterioso, enclausurado, um homem. Não eu! Outro! Imagine-o desacreditado.

Um homem. Duarte ou Mendes. Delegacia. Uma mulher assassinada. Facadas. Ou estrangulada. Sangue nas mãos dela. Sangue no seu ombro. Culpado. Esfaqueador. Ou estuprador. Ou sequestrador. Ou assaltante. Ou psicopata.

Um homem. Duarte ou Mendes. Tribunal. Uma mulher assassinada. Culpado. Pena longa. Assassino. Um homem, seu claustro, sua pena. Um homem calmo, uma cela. Imagine um homem, imagine a cela.

Duarte ou Mendes, Saraiva, Saramago. Penitenciária. Cela cheia. Prisioneiros. Imagine os prisioneiros. Altos ou baixos. Fracos ou fortes. Não sei. Imagine. Prisioneiros. Esfaqueador, estuprador, sequestrador, assaltante, psicopata. Um cara calmo. Prisioneiros. Imagine um homem andando na calma solitária de um pátio escuro de prisão.

Um homem. Um homem a se indagar. Imagine um homem calmo a se indagar. Esfaqueador? Estuprador? Sequestrador? Assaltante? Psicopata? Seria? Não seria? Poderia ser? Não poderia? Era? Não sei. É um homem. É só um homem.

Um homem cujas ações percutem e reverberam. Um homem misterioso que engendrou seu próprio mistério. Um homem desconhecido que enveredou pelos caminhos do se desconhecer. Um homem.

Pode não ter nome, roupa, casa, pernas. Mas tem caminho. Um homem que não fora, que não era. Mas seria. E tornou-se.

Um homem. Duarte ou Mendes. Absolvição. Inocente. Trabalhador. Um cara calmo. Dois empregos. Ou não. Desempregado. Talvez. Pintor de feriados. Culpado confesso a lhe ocupar o lugar. Um homem, seu claustro, o mundo.

Imagine o culpado. O culpado era jovem. Ou velho. Loiro. Talvez moreno. Alto. Ou baixo. Magro. Talvez gordo. Não sei. Era o culpado. Imagine o culpado. Consciência pesada. Esfaqueador, ou estuprador, ou sequestrador, ou assaltante, ou psicopata. Matou, assaltou. Fugiu, se ocultou. Voltou, confessou. Consciência pesada. Pena merecida. É ele! Sim, ele! A catarse da pena cumprida. Sou eu! Não outro! Eu! A expurgação do mal de quem se sabe mau.

Duarte, Mendes, Saraiva, Saramago. Um homem, seu claustro, o mundo. Misterioso, desconhecido. Um cara calmo. Liberdade. O mundo era desconhecido. Imagine o desconhecido, eternamente chamado mau.

Duarte ou Mendes. Um homem. Um homem em si desconhecido. Um homem cujas ações reverberam. Um cara calmo. Um cara calmo e misterioso. E sua obra desconstrutiva manchada pelo tempo. E sua camisa de marca rubra no ombro a lhe esperar sobre o sofá. Ou cadeira. Ou poltrona. Em sua casa. Apartamento.

Quitinete. Imagine-o abrir a porta e sair à rua.

Imagine-o matar. Por que matar? Matar porque é de sua natureza. Matar porque é desconhecido dentro de si e se crê autoconhecendo em quem não é. Nunca punido. Culpado. Jamais punido. Imagine um homem impune. Imagine o inocente que se perdeu dessa vez, nesse ciclo infinito, nesse sagrado oito, manchas de passos reflexivos na calma solitária de um pátio escuro de prisão.

Não eu! Outro! Imagine ações reverberando no horizonte do prisioneiro. Imagine o prisioneiro. Cela, claustro, mistério e indizível.

Asas para não cairmos ao peso das mãos que nos empurram para o abismo.

(Rio de Janeiro, 6 de junho de 2006)

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