A notícia da morte de Dona Pouca correu como um gato famélico
ao encalço de uma lagartixa, causando espanto e consternação.
O populacho das redondezas, cabelos ainda em pé e olhos acordados só
até a metade, acorreu incrédulo à casa da mulher. Na porta
do quarto, também perplexo, seu Filó estendia a mão, frouxa
e magra, num gesto mecânico àquele povo ávido, a dividir
os olhos entre o viúvo seco e a morta obesa.
A mulher, ela própria um despropósito da natureza, sempre gostara
do inusitado, talvez por isso tivesse optado por morrer em pleno sono. Sem mencionar
o susto de seu Filó ao dar com ela, bem morta, num domingo de manhã.
Olhando para aquela montanha de carne e de gordura, espalhada sobre a cama do
casal naquela confusão de lençóis e colcha resolvidos,
o homem pensava que não Fora sempre tamanha abundância física,
aquele exagero de gente. Quando a conhecera, na festa do padroeiro da cidade,
era fininha assim: um graveto de vestido. A cintura, então, quase dava
para abarcar com as mãos e sem nenhum esforço. Também não
era tão voluntariosa ou, o mais provável, não deixara transparecer
através dos olhos claros, azuis como um ovo de porcelana. O que sempre
fora, desde a juventude, inegavelmente carola. Beata sacramentada e de carteirinha.
Contudo, isto não a impedia de bater o pé, de forma dissimulada
e absolutamente pagã, acompanhando com movimento sutil dos quadris ao
ouvir uma boa bandinha, uma música gauchesca bem sacudida ou um até
um samba menos escandaloso. Fazia uma penitência depois, é bem
verdade, mas comia de olhares o maestro da banda, a fingida, os cabelos de cabotino
sempre besuntados de algo definido como banha pelo despeitado marido. Bem feito,
hoje o maestro estava careca feito uma bola de bilhar. Apesar de tudo, era muito
apetitosa, a bisca, e, evidentemente, não deixava á mostra a megera
latente naqueles olhos de piscina. E foi justamente naqueles olhos, o nascer
do encanto de seu Filó. Três meses depois, o namoro já se
encaminhava direto, sem escala, para a porta do casório no enlevo entre
ele e sua eleita, na época pouca mesmo.
No dia do enlace, concorridíssimo pelas esperançosas companheiras
de dona Pouca a devanearem entre longos suspiros e olhares vagos, surgiu a primeira
nuvem, obscurecida de pronto pelo clima da festa. Aconteceu de o noivo, aflito,
esquecer as alianças. Então, no decorrer dos momentos cruciais
daquele vai-e-busca e agora não-sei-o-que-faço, entremeado de
ai-ai-meu-deus, a noiva, inadvertida, deixou escorregar a auréola de
meiguice e, sob os olhos atônitos do sacerdote, deu um safanão
no pobre Filó. O infeliz, pego desacautelado, perdeu o equilíbrio
e precipitou-se sobre o degrau, acabando por testavilhar no joelho do pároco.
Mesmo agarrando-se à batina do padre, o tombo foi inevitável.
Salvou a situação um pirralho afobado ao atravessar a nave com
o dourado símbolo dos laços matrimoniais, apertado de encontro
ao peito sob o terno muito justo.
Dona Pouca, ao notar o silêncio glacial entre os convivas ocasionado pelo
fiasco da sua precipitação, não deixou por menos, tratou
de recobrar a pose angelical desmaiando entre suspiros e óhs. Desviou
a atenção, mas não logrou obter o fim pretendido. À
saída da igreja, os amigos do noivo, entremeando risinhos de mofa, congratulavam-se,
descaradamente, pela sábia decisão de manterem-se solteiros. Decisão
cumprida à risca,aliás, e comentada sem piedade a cada escapada
de Filó até o Beco do Trago para beber uma mísera cerveja,
ás pressas, como se perseguido por um saci encanzinado
Nos primeiros meses, tudo aconteceu como nos romances de Mme. Delly. Transcorrido
o período de carência do contrato de risco de Filó, Dona
Pouca, nada inclinada aos afazeres domésticos sempre impostos na casa
paterna - afinal fora a única mulher de uma prole interminável
- casada, vingava-se dos devidos. Filó, em contrapartida, ainda embevecido
e sempre mergulhado naquele anil traiçoeiro, acomodava-se à situação
e cumpria todos os desatinos comandados por sua diva, em geral esparramada e
lânguida sobre o sofá da sala a consumir doces e guloseimas abiscoitando
a vontade do marido. Assim começou o depósito particular de gordura
de seu Filó, a esta altura sentindo-se o mais desgraçado vivente
de todas as galáxias e tomado por um ódio profundo a lhe roncar
nas entranhas. Não lhe entrava na cachola como diabos fora cair na esparrela
de alguém tão inútil quanto perverso. Jamais poderia ter
concebido um ser semelhante, nem por aproximação. Mas, anêmico
de espírito, o pobre, o máximo de revolta a que se permitia era
pisotear os canteiros da mulher. Seu calcanhar-de-aquiles, seu paraíso,
seu dileto filho. Depois, aterrado, tratava de desfazer o feito. Amaciava o
solo, cobria de adubos, cuidados e súplicas pelo-amor-de-deus-sobrevivam.
Com isto, após cada explosão de incontida ira, os canteiros de
Dona Pouca tornavam-se dia a dia mais lindos. Na cidade inteira não havia
mais viçosos e belos, assim como em toda a região e seus chás
e hortaliças tornaram-se lendários, atraindo visitantes e curiosos
de cidades vizinhas. Nessas ocasiões, fazendo sombra ao insignificante
marido, em todos os sentidos, inchava-se de orgulho e colocava á disposição
seus misteriosos conhecimentos de jardinagem. Enigmática, propunha-se
a embelezar a horta de quem quisesse, adiantando, porém, não abrir
mão de seus segredos. Tradição de família, sabe?
- exagerava. Filó, nesses momentos, estourava a bunda a rir da ingenuidade
da mulher. Por ironia, as esplêndidas plantas eram produzidas pela raiva
dele, transpondo fronteiras da cidade e culminando por garantir maior segurança
e conforto financeiro ao casal com as vendas, também das aveludadas rosas
e dos suaves copos-de-leite. Afora isto, havia o rendimento proveniente do ofício
de desentupidor de canos e esgotos desenvolvido por ele, cuja única certeza
após cada trabalho - literalmente sujo -, era aquele cheiro nauseabundo
de privada em baile na roça, impregnado nas roupas e na pele escurecida
pelo sol, numa coloração de merda. Ao chegar em casa, permanecia
horas a fio mergulhado numa velha banheira aloucada, num canto do pátio
em meio a detritos, no afã de livrar-se do fartum de bosta vencida. Por
entre as madeiras carcomidas da cerca, a criançada ria das suas pernas
de barata e fingia vomitar.
Depois de parar os filhos à sua imagem e semelhança, escarrados
e cuspidos com a sua cara a mesma disposição para o trabalho,
a mulher perdeu definitivamente qualquer parecença com aquela beata longilínea
e terna. Tornara-se por assim dizer, um paquiderme bípede a balançar
a cristaleira, fazendo tinir os cristais á sua passagem. A gordura espalhava-se
da papada ao ventre gelatinoso e balouçante, para continuar seu caminho
nos quadris projetados aos quatro pontos cardeais. Na mesma proporção,
sua língua espichava, faminta e aguda, sempre em busca de maledicências
e fuxicos.
Por essa época um médico, consumidor de suas flores e chás,
cometeu a temeridade de declarar-se preocupado com a saúde de sua fornecedora
habitual e alertou-a para os pergos da obesidade, Entre esses, a possibilidade
de vir a ter problemas com o coração. Assim, deu a ela o elemento
que faltava para colocar-se na posição de vítima, o pretexto
para justificar a preguiça congênita: devia abster-se de esforços
excessivos. Cautelosa, tratou de não aumentar um grama e passou a viver
sob a suposta ameaça de uma saúde abalada. Agora sim, tinha sobejos
motivos para impor sua gorda tirania do alto do sofá, troncho e acabrunhado
sob seu peso. Aos fins-de-semana, rodeada de beatas contritas, subia lentamente
a pequena colina em direção à igreja, acompanhada de perto
por olhares apreensivos e prontos para, dado o sinal de alarme, ao primeiro
vacilo daquele corpanzil afastarem-se a tempo de escapar daquela avalanche de
carnes.
Entretanto, como o diabo não faz nada sem tirar proveito, rindo-se, sorrelfo,
Filó presenciava os escândalos promovidos pelo filho mais velho
na tentativa de extorquir o dinheiro da venda de flores aos domingos; numerário
este guardado a mão-de-defunto pela mulher, atochado no corpinho. Não
raro, dona Pouca ficava girando, qual pião gigantesco, mão no
seio, esbaforida a aumentar a distância entre ela e a sanha oportunista
do filho desnaturado que, consciente da própria agilidade, não
tinha a menor pressa. Nessas ocasiões, ficava parado num mesmo lugar,
batendo os pés como se corresse, apenas para vê-la apressar-se.
Comprazia-se, maldoso, a ver aquela montanha humana tremelicando ao redor do
quintal, e às vezes, o celerado deixava-a completar uma volta inteira
para surgir de inopino e às gargalhadas à sua frente.
A voz chocha do padre tira Filó de seus devaneios e lembranças.
Estende a mão, numa reação automática, e olha para
o outro com uma cara atoleimada:
- Morreu.
- É, parece...
- Mas o senhor precisa ser forte, meu amigo, perdeu uma grande mulher.. - o
padre interrompe-se, percebendo a gafe - Quero dizer, uma esposa e mãe
exemplar, fiel aos preceitos da Santa Madre igreja, um baluarte da fé.
Uma alma preciosa.
O velório encontrou seu Filó esbodegando-se de sono, lutando contra
os bocejos e a vontade de mandar aquela vaca gorda à merda e ir dormir.
Morria durante a madrugada, impunha-lhe aquela banha gelada e sem o menor aviso
ou consideração e ainda o obrigava a ficar ouvindo a ladainha
daquelas miseráveis carolas, a resmungar a noite inteira. Era o fim.
No caixão, plácida, dona Pouca, devido ao inchaço, pouco
a pouco descruzava os dedos balofos.
O sepultamento o, ocorrido em meio a uma chusma lacrimejante e imbuída
de temor divino, deu-se quando o sol ainda torrava grimpas e não sem
um certo embaraço. A mulher intumescera tanto que a tampa do esquife
não fechava nem por decreto. Aperta daqui, aperta de acolá, tentavam
todos, visivelmente constrangidos, lacrar o bendito caixão. Mas era o
tempo exato de apertar um parafuso para outro saltar com estrépito. Naquela
lengalenga, seu Filó, exasperado e rubro pelo esforço, conclamava
aos berros por ajuda, beirando o desespero: ia ou não livrar-se da maldita
gorda? Os outros, interpretando seus gestos como os de um marido inconsolável,
arrasado pela dor, redobravam esforços para manter a morta dentro dos
limites acanhados do seu lar derradeiro. O corpo inchava como um bolo grotesco
sob uma overdose de fermento.
Uma hora depois, esgotadas todas as possibilidades, encontrou-se a solução
final: a defunta seria conduzida em um caminhão cedido pela prefeitura
e os acompanhantes, em vez de tomarem as alças do esquife, sentariam
sobre ele. Assim, finalmente deu-se a cerimônia do sepultamento.
Três meses depois, Filó ainda tirava sua desforra. Substituira
o sofá, impresso pela abundância da falecida, por outro novinho
em folha e passara a comandar os filhos vadios na limpeza de canos e esgotos.
Ah, o mel da vingança. Além de passar o dia todo sobre o sofá
vermelho-vinho de napa, sua única ocupação consistia em
vender flores e chás.
Em menos de um ano, passou a ser quase uma réplica da morta, engordara
como um porco cevado. De vez em quando, exclamava, debochado:
- Que falta faz Dona Pouca!... - e mudava de posição, com ar de
imperador romano, no sofá roto.
Na calada da noite, dois vultos, evitando serem vistos um pelo outro, revezavam-se
na sistemática destruição dos canteiros e no posterior
conserto dos estragos.
(NA.: Extraído do livro de contos O ciclo das vontades, editado pelo Instituto Estadual do Livro do governo do Estado do Rio Grande do Sul/200, laureado com o Prêmio Açorianos em 2001).