A Garganta da Serpente

Mariza Magalhães

O parador

(Mariza Magalhães)

Apareceram ambos assim meio de banda feito um vento enviesado na campina numa manhã de inverno, emergindo da névoa como dois espectros, com ar de gato de tapera. Quando a peonada os avistou da casa da fazenda, ficou a espiá-los de canto-de-olho, entre curiosa e desconfiada.

Apearam dos cavalos, ele primeiro a estender a mão, rígido, para a prenda ainda jovem apear também. Tipo indiático, pele tostada de quem se expõe ao sol, cabelo negro e pesado a esconder parte dos olhos escuros e brilhantes. Ela moça miúda, corpo de menina encoberto pelo vestido de chita desgastado pelo uso, os cabelos trançados com capricho presos no alto da nuca. Nela um quê de doçura e resignação; nele algo de altivez e mistério.

O dono da fazenda, homem temido em toda a região, aguardava a aproximação dos estranhos. Pernas afastadas, rebenque batendo ritmado na coxa. Não tolerava presenças estranhas em suas terras.

O índio aproximou-se, chapéu na mão, atitude de quem já aprendeu a reconhecer patrões, explicando que vinha das bandas do Uruguai com a esposa. Buscava trabalho para ambas. Referências não as tinham, mas se lhe dessem tempo, ele mesmo mostraria sua serventia.

Dr. Djalmo, como gostava de ser chamado, mediu o homem de alto a baixo, no que foi imitado. E nesse primeiro mirar, ambos perceberam a necessidade de respeitar-se mutuamente. Também nesse olhar o fazendeiro concluiu não ser ela de grande valia: servil demais para seu gosto. Ele é homem de valor, topetudo, mas fiel, seu instinto lhe sussurrava o quanto tinha o índio a esconder, mas se tranquilizava, não lhe dizia respeito. Não agora, tudo tem sem tempo, não fosse assim o plantio não teria data certa. Havia pouco perdera seu capataz, homem bom, mas sem pulso e desprovido de iniciativa; gostava de pessoas fortes, e o índio até que vinha em boa hora.

Benino e Alzira foram ficando e Djalmo, em silêncio, observava o homem á distância. O índio, não negava, espicaçava sua curiosidade. Trabalhava como um mouro sem deixar transparecer a menor fadiga ou qualquer emoção. Quando muito, na presença de Alzira, permitia aflorar uma contida ternura, mas por breves instantes. No mais, sempre calado, jamais se dirigia à casa grande a não ser para atender a um chamado. Quando isto acontecia, vinha a passos largos e firmes, com o inseparável e surrado chapéu entre as mãos, no aguardo das ordens, com uma dignidade que causava espanto ao fazendeiro. Domava cavalos como ninguém, maneava bezerros com maestria para a marcação, sangrava os de comer com assombrosa perícia e carneava e reconduzia, sempre sozinho, o gado desgarrado.

Com o tempo, Djalmo pouco fazia, apenas vistoriava a estância. Quando queria saber de algo, chamava Benino, agora seu capataz, seu braço direito, seu homem de confiança. Assim como quando tinha de demitir ou contratar alguém, buscava os conselhos e a opinião de Benino.

Certa feita, Djalmo, enquanto sorvia o amargo á sombra do pessegueiro, tentava imaginar que motivos teriam levado um homem como aquele a se bandear do Uruguai com a roupa do corpo, dois cavalos, a mulher a tiracolo, assim sem mais nem menos. Tentara entabular conversa. O máximo obtido foi um brilho feroz nos olhos do índio, como um lampejo, quando respondeu que, se o doutor não estivesse satisfeito com seus serviços, era só acertar as contas. Djalmo soube que poderia ter a lealdade daquele homem, mas jamais lhe arrancaria uma palavra, desde então nunca mais ousou perguntar nada sobre o assunto. Com o passar dos anos, sequer teve certeza se realmente desejava saber algo.

Quando nasceu o primeiro filho do estancieiro, foi com Benino que deu seus primeiros passos e aprende a montar. Com Alzira aprendeu a balbuciar as primeiras palavras campesinas e, ainda com ela, aprendeu a conhecer e a respeitar a natureza. A mulher, na sua simplicidade, sabia como ninguém e os segredos e mistérios escondidos pela terra. E desfazia-se em zelos e desvelos com aquela criança, como se dela dependesse sua própria vida. Dr. Djalmo e dona Cecília observavam o carinho de Alzira sem trocar palavra, mas seus olhos transbordavam de ternura e de gratidão.

Tempos depois chegava Suzana, a única menina a nascer naquela família, e nos olhos de Benino surgia a mesma meiguice de quando olhava para Alzira. O peão apressou-se a disfarçar e, naquela fugaz ternura, o fazendeiro percebeu uma tênue ponta do véu de mistério levantar-se. Quando Suzana morreu de tifo, aos dois anos, e Djalmo saiu a cavalgar pelos campos, cego de dor, foi o índio quem, com mão firme, sofreou a pleno galope o animal resfolegante e reconduziu o patrão até a casa grande. Alzira, parecendo ainda menor, os aguardava com um chá-de-laranjeira, enclausurada num mutismo dolorido em frente ao grande fogão aceso.

Como se pretendesse aplacar a dor de Djalmo, o Criador enviou-lhe mais um filho guapo e corado, nascido na cidade pelas mãos hábeis de Alzira, trazida às pressas da fazenda. Djalmo jamais acariciava os guris para que não me saiam frescos, dizia, mas inchava de orgulho quando ambos cavalgavam a seu lado seguidos por Benino, o anjo índio, em suas campereadas. Ao nascer do último filho, os primeiros cabelos brancos marcavam as têmporas do fiel Benino e, por essa época, Alzira começou a definhar, sem que ninguém desse por isso. Desde o início do tormento, não se queixou da dor a lhe queimar o ventre como uma adaga em brasa, a tudo suportava em silêncio. Vez por outra, aperreada pela dor intensa, recorria às suas mezinhas.

Ademar, o primogênito, completava dezoito anos e Djalmo programara uma grande comemoração. Coisa assim para mais de trezentas pessoas que a ocasião merecia. Durante as semanas antecedentes á festa, Benino, pessoalmente, se encarregara de todos os detalhes. Coordenara a peonada que caiava árvores e moirões na entrada da fazenda, carneava gado e ovelha, salgava carnes e preparava os espetos de madeira para os assados. À Alzira coube dirigir as negradas no preparo das peradas, figadas e marmeladas brancas ou vermelhas que iam sendo acomodadas nas caixetas alinhadas na despensa. No pátio lajeado, que ligava a casa grande ao resto, as mulheres se revezavam nas grandes pás de madeira, a mexer os doces feitos nos tachos de cobre. De quando em vez, Alzira, perdida nas contas do dia em que começaram as dores, disfarçava e encolhia-se a um canto, a desmanchar-se em suor até a crise amainar. Depois da festa, pareceu esquecer tudo quando Ademar, feliz, cobriu de beijos sua face sulcada pelo tempo e pelo sofrimento físico.

Dois meses após, numa gélida madrugada, Benino Batia energicamente na pesada porta de madeira lavrada da casa grande, rosto desfeito, uma sombra de medo e angústia a perpassar-lhe os olhos escuros. O patrão que desculpasse pela má hora, mas Alzira carecia de um doutor. A muié veia não ta nada bem. Djalmo acordou o filho e ordenou que levassem Alzira de imediato para a cidade: - E me levem ela para o Dr. Ondino que é meu compadre, me deve favores. E exijam um tratamento de primeira.

Alzira suportou com seu habitual silêncio a longa agonia imposta pelo câncer. Benino, na estância, quedava-se horas a fio, olhar perdido no horizonte. Nesses momentos, Djalmo se achegava e apenas lhe passava um amargo.

Pouco havia a fazer, mas Djalmo, numa espécie de gratidão acumulada ao longo de vinte anos, não poupou esforços nem dinheiro no tratamento daquela mulher que criara seus filhos e afinal o surpreendera. Benino agora sucumbia ao peso da idade, afrouxara os garrões com a doença de Alzira. Seu corpo encurvara, seus movimentos vinham com lentidão e em seus olhos pairava uma muda perplexidade.

Ao final de seis meses de inútil peleia, Alzira expirou. Benino encontrava-se na fazenda e não disse um ai, apenas permitiu que seus dedos se crispassem no velho chapéu preso entre as mãos grandes e calejadas.

O corpo foi velado na sala principal da casa da cidade, com todas as honras devidas a um familiar querido. Dona Cecília, inconsolável, olhos vermelhos de um pranto desatado repara, de repente, na luz do vitral vermelho incidindo sobre o rosto de cera da morta emprestando-lhe um ar de santidade. Benino permaneceu ereto ao lado do caixão até o último momento, os olhos secos, a boca apertada num ricto de dor.

Num átimo passaram-lhe pela memória as noites à roda das trempes. Entre um chimarrão e outro, ele e Alzira a narrar causos para as crianças da fazenda num duplo faz-de-conta: de um lado as estórias contadas por ela, do outro a fantasia dos filhos que não haviam tido. Relembra ainda o choro manso de Alzira na ocasião em que haviam perdido tudo o que possuíam num incêndio criminoso. Um aspa-torta, a quem Alzira havia sido prometida ainda menina, num acerto entre famílias para evitar a divisão das terras, fora o responsável pela desgraceira. Quando tudo aconteceu, Alzira estava grávida, e o fogo, o susto e a correria haviam provocado o aborto. Era bem verdade, o autor do crime já repousava a sete palmos, depois que ele, Benino, o carneara. Ainda podia ver o lampejo da lâmina, sob a luz alaranjada produzida pelo fogo naquela noite, e sentir o gorgolejar quente do sangue do cuera em sua mão. Com o outro, morriam também e eram sepultados seus sonhos e o filho que jamais teriam. Restara a fuga com a mulher, dois cavalos e os parcos caraminguás, a roupa do corpo, o correr mundo longe da querência. À sua maneira, queria fazer Alzira feliz e conseguira, sabia disto, ao conquistar um canto na fazenda imaginada sua através dos filhos do patrão, adotados secretamente como seus.

Pois foi também numa madrugada muito fria, no inverno seguinte, quando a neblina espessa ocultava as coxilhas, que Djalmo, da casa grande, viu Benino encilhando o baio. Com o peito apertado por algo impossível de definir, observou o peão montando o cavalo e jogando o pala preto para o lado. O chiru mimetizou-se por instantes na noite, o galope estacou de repente para ressurgir, lento, na neblina. Parou a alguns metros do patrão, olhou-o longamente e, acenando de leve com um grave inclinar de cabeça, empinou o cavalo e, de vereda, sem um som, mergulhou pra sempre na névoa.

Através das lágrimas que lhe toldavam a vista, Djalmo teve a impressão de divisar, na garupa do baio, a franzina prenda a acenar também.

((NA.: Extraídos do livro de contos O ciclo das vontades, editado pelo Instituto Estadual do Livro do governo do Estado do Rio Grande do Sul/2000, laureado com o Prêmio Açorianos em 2001).

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