A Garganta da Serpente
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Preguiçosa

(Mara Liz)

- 5 mil toques!

Foram as últimas palavras que ouvi do editor e que me envolveram no mais terrível pânico. Senti no fundo da alma que não seria possível cumprir o prazo, que minha criatividade estava comprometida e eu, naquele momento, antevisse a própria ruína. Respirei fundo tentando afastar o mau pensamento mas ele se repetia martelando minha cabeça como um jingle de sucesso: "a preguiça precisa de você, a preguiça precisa, a preguiça.......".

À preguiça, o inferno!, brindei.

Agora vou dormir bem bonitinha, tranquilinha, e eu tenho a absoluta certeza que amanhã as ideias vão estar de Urano, sem sombra de lerdeza mental.

Dormi, dormi profundamente e sonhei. Em meu sonho eu estava sentada no chão com várias peças de madeira, em diversos formatos, com letras pintadas de preto na superfície. Era um jogo, e neste jogo eu precisava encaixar as peças para formar palavras, só que eu não conseguia encaixar nada que fizesse sentido. Mesmo assim eu insistia, sabia que eu conseguiria, algo iria se encaixar, algo iria fazer sentido uma hora. Então, calmamente, fui montando o quebra-cabeça, algumas palavras foram se formando e veio a fatídica frase: "A PREGUIÇA PRECISA DE VOCÊ"!!!

Acordei sufocada. A mão direita fechada com ódio, as unhas marcando toda a palma me castigavam com vontade de carrasco. Fui até a cozinha, enchi o copo de água e engoli tudo rápido. Acendi a luz do escritório, liguei o computador com dores de parir palavras, frases, 5 mil toques, mas isso parecia um plano bastante distante, dormi ali mesmo, em frente à tela vazia. E dessa vez não sonhei.

O dia chegou, eu cheguei tarde, mais de meio-dia quando me levantei como quem acorda de ressaca, no meu caso uma ressaca mental, nada a ver com preguiça, claro. Jogada no sofá liguei a tevê e tomei a decisão: naquele dia não iria fazer nada, não moveria um músculo, não mudaria um fio de cabelo de lugar. O meu problema era cansaço e nada como um dia relaxante para curá-lo. Não fiz bem?

Pedi massagem pelo telefone para o final da tarde. Todos os pontos tensos seriam devidamente soltos, cada pedaço do corpo untado em suave fragrância, a pele acariciada como peça rara. Se depois disso tudo eu não conseguisse... Bati 3 vezes na madeira!

À noite fui jantar num restaurante chinês e fiz questão de pedir os tais biscoitos da sorte. Sabia que dentro deles haveria uma mensagem que me tiraria desse marasmo, algo animador. Mordi a massa crocante com dentes cândidos, o que não impediu que ela se rompesse em mil… Retirei o papelzinho com cuidado. A mensagem era perturbadora, não tive dificuldades em decifrá-la: "A porta da alma se abre para todos os tipos de energia. A sua se abriu para uma energia lenta, vagarosa, retrógrada, MAS muito aconchegante. Corte-a".

Ah, claro, corte-a! Sabe o que eu acho? Que estou vivendo no meio de uma piada, só pode ser isso. Como é que eu corto uma energia lenta, vagarosa, retrógrada, MAS muito aconchegante? Com faca? Com serra elétrica? Com um golpe de machado? Como se cortam amizades? Com guilhotina? Que absurdo...

Fiquei tão furiosa que pedi a conta imediatamente. Meu amigo ainda disse que eu não tinha entendido nada, que eu só estava vendo um lado da coisa, que eu estava muito rabugenta e, por tudo isso, resolvi deixá-lo falando sozinho.

Talvez fosse isso, ou melhor, exatamente isso, eu estava ficando rabugenta igual ao cachorro do desenho e meu editor deveria ser, obviamente, o Dick Vigarista, sempre armando alguma para eu me dar mal. Só que nesta história eu não dava nenhuma risadinha estúpida no final, quem sabe ele? Preciso mudar isso, me transformar no Manda-Chuva ou no Leão da Montanha, achar a saída de emergência para a esquerda ou para a direita com urgência, mas o Moleza me consola repetindo: "A PREGUIÇA PRECISA DE VOCÊ"!!!

E os dias foram passando, eu sentada em frente ao computador
tentando escrever algo decente e nada aparecia na tela. Busquei explicações nas sessões de terapia para ouvir sempre a mesma coisa:

- Você está pedindo muito de si. Você precisa relaxar, quando você se permitir a isso tudo voltará ao normal, as suas ideias vão voltar, relaxe, relaxe...

Relaxar mais?

Então assumi de vez. Comprei um pôster maravilhoso de um bicho preguiça languidamente pendurado numa árvore e colei em frente ao computador. Ficava horas admirando-o, observando seu olhar de distanciamento, imaginando o cheiro do seu pêlo, quanto tempo ele demoraria para alcançar o topo, quanto tempo ele demoraria para comer uma banana, quanto tempo demoraria para gozar, esse tipo de coisa. Depois comprei dardos e me divertia atirando-os, primeiro em seu corpo peludão e depois onde houvesse espaço. Espaço para quê se nada mais me preenchia? Só aquela maldita...

Ao meu editor sobrou uma folha de papel em branco. À mim não sobrou nada.

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