- Dá licença ?, pergunto, prestes a puxar a cadeira, ao senhor que, compenetrado,
rabisca um papel branco com pincel atômico preto, no café de uma das lojas mais
“badaladas” de Ipanema.
- Pois não, responde ele, alçando rapidamente os olhos, para logo retornar ao
desenho.
Observo o desenho e o homem,
enquanto sorvo meu cafezinho caro, ultracivilizado porque servido à mesa, numa
cidade em que, até ontem, o conforto do café sentado havia passado. Num segundo,
sinto aliviar minhas eternas dores da condenada coluna lombar.
Tentando uma discrição inusitada,
olho de soslaio os rabiscos. Em vão. Não os decifro. Já o homem... Parece-me ter
seus setenta e muitos anos, é magro, de cabelos grisalhos, lisos e despenteados.
Jeito de estrangeiro. Veste-se com o uniforme ipanemenho dos sábados: camiseta
meio-velhota e bermudão. O calçado não dá para ver no escuro de debaixo da mesa.
Calculo uma sandália ou um tênis, desses que deixam o pé rindo de contente.
Na mesinha ao lado, um meia-idade moreno, “boa-pinta”, levanta-se e esquece na
cadeira um embrulho de presente, cuidadosamente embalado por vendedora de
butique feminina fashion.
Mais que depressa, meu companheiro
de mesa o chama, apontando o esquecimento. Sorrisos iluminam ambas as faces
masculinas. E a minha, por contaminação. Nem parece o Rio de Janeiro de 2003,
cidade de desconfiados retraídos.
Começa, então, o “bate-papo” a
dois, uma vez que o moço esquecido se vai, feliz. Noto os olhos azuis e o leve
sotaque da companhia não escolhida.
- Sou polonês, mas estou nessa terra maravilhosa há cinquenta anos.
Não sei por quê, desembesto a
falar de tudo o que me vem à cabeça. Como se já o conhecesse há muito tempo.
Começo pela minha cisma atual de querer trabalhar em ONG de meio-ambiente, para,
ufanista, poder afirmar: “o Rio de Janeiro continua lindo/ o Rio de Janeiro
continua sendo/ o Rio de Janeiro, fevereiro e março...”, como o (de)cantava
Gilberto Gil, nos meus já-lá-vão muitos anos de moradora do outro lado da Bahia de
Guanabara.
Coisas de antevéspera de
aposentadoria. Ou de cirurgia. Indubitavelmente. Pode ser ainda de gente
saturada dos cada vez mais absurdos problemas da urbe soi-disant maravilhosa.
O homem sorri complacente. Aos poucos, vai me fazendo fechar a matraca,
desenrolando o tecido de sua vida passada. Sem atropelo, sem pressa. Tem a manhã
toda.
- A senhora viu o filme A Lista de Schindler? Aquele famoso do Spielberg? Pois é.
Minha família e eu fomos salvos nessa lista. Eu me recusei a ver o filme. Achei
que não aguentaria.
As palavras de confissão a pároco atento, saem-lhe sem pecado e sem tragédia.
Quando acabou a guerra, ele, bem jovem ainda, resolvera ir para a União
Soviética. Ouvira falar maravilhas do regime comunista autêntico e do Partido do Operário Mais Veloz.
Considerava-se como tal, serrando troncos de árvore mais rápido do que muita
serra elétrica. E adorava a foice e o martelo, por conta da igualdade social,
enfim posta em prática.
Ele vai falando e meu pensamento
segue para lonjuras, sozinho. Também eu sonhara a bandeira vermelha com os
símbolos dos trabalhadores comunistas. Negava veementemente a barbárie da
ditadura estalinista, sem conhece-la de perto.
Nos idos de 1975, em plena Tchecoslováquia ocupada pelos soviéticos mais radicais, eu me arrepiava às
lágrimas com a canção Kalinska, kalinska, entoada por coro de
vozes masculinas, imaginando heróicos soldados soviéticos, em defesa da pátria
contra a invasão nazista.
Sem perceber a invasão à minha frente, aumentava o volume do som a mais não poder, para pavor de meu irmão, que temia as reclamações dos vizinhos tchecos, antissoviéticos ferrenhos. Pudera.
Tanques de guerra estacionados pelas esquinas de Praga justificavam o horror dos
tchecos aos russos.
Alienada, defendia o regime comunista, veia saltada no pescoço ingênuo. Queria convencer os nativos
dominados, de que a União Soviética era o exemplo máximo da igualdade, liberdade, fraternidade.
Nunca o consegui, é óbvio. Vai dizer a povo invadido que seus invasores são gente fina! Só faltava apanhar dos estudantes universitários tchecos, amigos de minha cunhada, também da terra, e
igualmente revoltada.
Disfarço a viagem ao passado e
acordo. Prossegue em tom pseudonatural a narrativa do companheiro judeu.
Dissuadido com vigor, por camaradas soviéticos encontrados no caminho para o
“éden” comunista, o rapaz decidiu-se por Paris. Tinha jeito para desenhar
roupas. Tornou-se um designer. Nada
de extraordinário, é verdade, mas dava para ir levando. Esforçava-se por viver
francesamente.
Mantinha, porém, correspondência com parentes brasileiros. Carta para cá, carta para lá, um belo dia, um sedutor convite para vir ao aniversário de um tio, no Rio de Janeiro. Veio e pronto.
Conheceu Maria. Foi aquela paixão, da primeira a última vista. Para sempre.
Tempos depois, novo encantamento.
Deparou-se com um ator chamado Grande Otelo, num botequim de subúrbio.
– A senhora o conheceu? Tipo raro. Excelente ator. Tomava cerveja com moradores
simples do local: varredores de rua, biscateiros..., quem quer que fosse. Eu
disse com meus botões: “Este é o
país para mim. Um lugar que junta artistas de renome e o povo, em volta de uma
mesa de bar, só pode ser bom”.
Antes que eu o interrompesse em
seu discurso utópico, acrescenta que não se arrepende até hoje. O casamento com
Maria segue firme. Ganhara e ganha a vida na confecção de roupas de homem,
“boladas” por ele próprio.
E não cessa de admirar o povo brasileiro.
Não a moçada a nossa volta no shopping da moda, que essa só lhe serve de inspiração para os desenhos: seus fregueses de amanhã. O povão mesmo. As empregadas domésticas, os porteiros, os
que trabalham nas ruas... Enfim, todos os anônimos que fazem a riqueza impar de
nossa terra. Sem propaganda televisiva. De verdade.
Meu Deus, como aprendo mais e mais
a cada dia! Nessa manhã de sábado, nem se fala. Esqueço canícula de mais de 40
graus, dor lancinante de nervo ciático esmagado por pisar canhestro e velhice
galopante, praia imunda por incúria e dejetos, trânsito de matar.
Sem contar o pavor de assalto e
balas perdidas, governo despirocado, tráfico de drogas dando as cartas...
Debruço-me, por completo, na
história oral do companheiro de cafezinho. Emociona-me, ainda uma vez, porque ao
vivo e através de um sobrevivente do martírio, o Holocausto da Segunda Guerra.
Lembro-me dos inúmeros filmes e documentários pranteados, enchendo-me de
vergonha do século XX.
- Que bom que passou. Estamos no século XXI -, começo a me regozijar, quando me
vem à mente a figura do Bush ensandecido, ameaçador e ridículo. Um Hitler mais
macio no falar, em postura de pseudomocinho de filme de cowboy, salvador mais que fajuto da
democracia mundial.
- Não há grande diferença entre o louco americano e o louco alemão, concordamos. Ambos foram criados e incensados pela indústria bélica e pelo desejo de mais e mais riqueza e poder hegemônico.
A filosofia política do polonês abrasileirado apregoa que o mundo sempre esteve
inapelavelmente dividido entre os que comem, os que não comem e os poderosos. Os
que comem têm, como nós, gradações; os que não comem, também. Os poderosos, os
verdadeiramente detentores do poder, esses, não. Sempre desejam mais. Cada qual
em sua época, tudo clone da alma diabólica do outro.
- E a gente?, pergunto, assustada. Que é que vamos fazer?
- Nós, minha querida, vamos recolhendo pequenas felicidades. Eu, agora, nos meus
netos. Num café ou chá trazido pelo mais novo. Na conversa dos mais
adolescentes, que me é, às vezes, estranha, difícil de entender... E no papo
gostoso com o povo, o sabido povo deste grande país.
Sinto um imenso orgulho, a tomar-me toda, pelas palavras do ex-habitante de um campo de concentração
nazista, pelo partilhar, com um desconhecido de peso, mesa de café e
opiniões.
Também eu passo horas conversando com minha empregada mineira, de jeito preservado, duas vezes por semana. Ou com os marceneiros cearenses, moradores felizes da favela da Rocinha, aquela
imitação de bairro-cidade-explosão sempre crescente, improvisada no morro de uma
das zonas elegantes da cidade, amontoada de casebres, regulamentada pelo
narcotráfico. E, para completar, visitada com assiduidade por turistas
estrangeiros estupefactos, ansiosos por contar aos amigos "curiosidades"
tipicamente brasileiras.
Quanta coisa a aprender com os também sobreviventes favelados, em geral, do Nordeste! Quanto tocar a vida para frente, sem queixume, habituados ao drible constante dos perigos! Quanta gargalhada a compartilhar, apesar de tudo!
Levanto-me do café sem sombra de dor física. Recuperada. Com muita pena. Mais de uma hora de bom papo e nem o estômago, esfomeado de costume, chia. Ficaria ad infinitum, mas o shopping já ia fechar. E tenho que partir por minha causa. Coisas de mulher casada. Despeço-me, saudades precoces, estendendo-lhe a mão mais sincera.
-
Vou ter que sair. É pena, mas... Meu nome é Maria. Como sua mulher. Muito
prazer!
- Ah! Igualmente. E o meu é José.