A Garganta da Serpente
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Gerações

(Maurício Limeira)

Na fotografia, a avenida Atlântica possuía apenas uma pista. Ciclovia, então, nem pensar. A escola, que depois apareceria num filme de James Bond, ainda não era cercada de grades.

- Você sabe quem foi o Doutor Cícero Penna?

Era óbvio que ele me perguntaria isso. Eu não fazia ideia de quem fosse o tal Doutor Cícero Penna, cujo nome batizara a escola onde cursei todo o primário e o ginásio. Por isso menti.

- Foi o médico de D. Pedro I.

Ele olhava demoradamente as tais fotos. Algumas estavam amareladas, cheirando a coisa velha. Ele as tocava com as pontas dos dedos trêmulos. Eu não entendia por que tanta emoção.

- Aqui - ia dizendo. Isso é quase na Inhangá. Tinha um armazém bem aqui, eu trabalhava nele. Tinha assim a sua idade. Pra economizar o dinheiro da condução, vinha andando da pensão onde eu morava, na Glória, até aqui.

Era sempre assim quando eu ia visitá-lo. Em tal lugar ele trabalhou. Em outro, tivera uma namorada. Na rua Tonelero, perto de onde morou, deram um tiro no Lacerda.

- Você sabe quem foi Lacerda?

Eu não sabia, então ele explicava. Explicava tudo, o velho. Não sei de onde tirava tanto conhecimento. Dava longas aulas que eu jamais pedi, e que a memória ia apagando assim que deixávamos a casa dele.

- E aí? - meu pai perguntava, no carro. Conversaram muito? O que ele te disse hoje?

Eu não lembrava, por isso ia inventando. Meu pai, brigado com o velho, ouvia atento. Acho que com inveja dos momentos que eu passava com o pai dele. Foi quem mais chorou quando, aos 82 anos, o velho morreu. Chorou de gritar, de esmurrar a parede e abraçar-se ao caixão. Eu, além de algum dinheiro, acabaria herdando um punhado de lembranças: fotos, objetos, livros. Mas, na época, joguei tudo fora.

Hoje foi dia de ver meu filho. O garoto, que estuda na mesma escola em que eu estudei, veio perguntar quem foi o Doutor Cícero Penna. Nessa hora engasguei. Não houve como não lembrar, com uma ponta de dor no coração, do velho.

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