Na fotografia, a avenida Atlântica possuía apenas uma pista.
Ciclovia, então, nem pensar. A escola, que depois apareceria num filme
de James Bond, ainda não era cercada de grades.
- Você sabe quem foi o Doutor Cícero Penna?
Era óbvio que ele me perguntaria isso. Eu não fazia ideia
de quem fosse o tal Doutor Cícero Penna, cujo nome batizara a escola
onde cursei todo o primário e o ginásio. Por isso menti.
- Foi o médico de D. Pedro I.
Ele olhava demoradamente as tais fotos. Algumas estavam amareladas, cheirando
a coisa velha. Ele as tocava com as pontas dos dedos trêmulos. Eu não
entendia por que tanta emoção.
- Aqui - ia dizendo. Isso é quase na Inhangá. Tinha um armazém
bem aqui, eu trabalhava nele. Tinha assim a sua idade. Pra economizar o dinheiro
da condução, vinha andando da pensão onde eu morava, na
Glória, até aqui.
Era sempre assim quando eu ia visitá-lo. Em tal lugar ele trabalhou.
Em outro, tivera uma namorada. Na rua Tonelero, perto de onde morou, deram um
tiro no Lacerda.
- Você sabe quem foi Lacerda?
Eu não sabia, então ele explicava. Explicava tudo, o velho. Não
sei de onde tirava tanto conhecimento. Dava longas aulas que eu jamais pedi,
e que a memória ia apagando assim que deixávamos a casa dele.
- E aí? - meu pai perguntava, no carro. Conversaram muito? O que ele
te disse hoje?
Eu não lembrava, por isso ia inventando. Meu pai, brigado com o velho,
ouvia atento. Acho que com inveja dos momentos que eu passava com o pai dele.
Foi quem mais chorou quando, aos 82 anos, o velho morreu. Chorou de gritar,
de esmurrar a parede e abraçar-se ao caixão. Eu, além de
algum dinheiro, acabaria herdando um punhado de lembranças: fotos, objetos,
livros. Mas, na época, joguei tudo fora.
Hoje foi dia de ver meu filho. O garoto, que estuda na mesma escola em que eu
estudei, veio perguntar quem foi o Doutor Cícero Penna. Nessa hora engasguei.
Não houve como não lembrar, com uma ponta de dor no coração,
do velho.