- Família, o menos possível!, afirmava-lhe, convicta, a inusitada
prima. E continuava: - Eu nunca quis ser mãe; muito menos, avó.
Sou as duas. Mas, continuo contra. Inda por cima, me arrisco a ser bisavó.
Hoje com ginástica, caminhadas... elas abundam. Que horror!
Com biografia de dois maridos, sem ser a Dona Flor, de Jorge Amado, porque
um de cada vez, dois filhos do primeiro casamento e vários agregados
à família pequena, adquiridos por força da amizade e de
casamentos de parentes, ela não deixava de concordar com a prima. Por
que será que a gente tem que viver se aporrinhando por causa da família,
desde que a Sagrada - a de Jesus, Maria e José - nos foi impingida pela
fé cristã, via Bíblia católica?
Um redemoinho de complicações vem junto. Para começar,
as turbulências psicológicas consagradas. Relutando em concordar
com Freud, dono absoluto da psiquê humana, até algum tempo pelo
menos, ela tinha que admitir que tudo começava com o papai e a mamãe,
continuando pelos irmãos e talvez, por primos.
Em sua época de criança, papéis bem definidos ao seu redor.
Pai - modelo perfeito a ser imitado pelos pretendentes à mão das
"raparigas em flor". Por dever de gênero, o homem tinha
que suprir as carências materiais da casa, mandar e desmandar, ser temido
e respeitado. Quase Deus. Não deixava de ser uma pesada carga. Pior para
o futuro noivo, coitado! Destino anunciado, nunca conseguia chegar lá.
Pai idealizado, noivo frustrado.
Mãe, por seu lado, via-se obrigada a "desdobrar fibra por fibra
o coração" sem interregno, não importa as discretas
lamúrias diárias ou as pequenas vinganças encetadas por
pensamentos, palavras e obras. Dedicada ao lar com devoção, ao
marido com servidão, aos filhos com ardor. Até que a morte...
Na adolescência da moça, psicanálise entrando feroz, o Complexo
de Édipo tornara-se jargão, moda tão popular quanto a minissaia
nos tempos da inglesa Mary Quant, nos idos de 60-70.
Filha, portanto, fatalmente apaixonada pelo pai, aspirava a um marido que lhe
correspondesse ao pai-modelo. Filho sofria do mesmo mal em relação
à mãe. Perseguia a mãe-modelo em cada namorada. Se a progenitora
do rapaz fosse boa cozinheira, ai da pretendente escolhida. Nunca teria sua
culinária igualada aos quitutes da sogra. Por mais consultas que fizesse
a receitas sofisticadas da cuisine francesa.
Quanto aos irmãos, bem... quando muito amados pelas irmãs, era
batata: incesto puro. E pobre das pessoas desafiadoras ou "doentes",
que ousassem não fazer a saudável e imprescindível transferência
para o/a parceiro/parceira do futuro. Davam, sem sombra de dúvida, em
"bicha" ou "sapatão".
Até mesmo entre primo e prima falava-se de problemas. Dava "bode"
casar. Não apenas pelo perigo da consanguinidade nos descendentes.
Pelo meio-incesto. Tudo grego e fatídico.
Em tempos de sua juventude nada transviada, a moça não tinha nenhuma
dúvida quanto aos famosos complexos, que a perseguiriam, implacáveis.
Não sem uma ponta de remorso, tinha paixão confessa pelo irmão.
Passava por sua namorada. E lembrava-se, com saudade, das dormidas quentes de
brincadeirinhas de criança, com um certo primo, na mesma cama, por ocasião
das férias escolares.
Neurose admitida, ela casou-se cedo. Não podia fugir à fórmula
infalível da felicidade feminina: "crescer e casar pra saber
o que é o amor". Sonho de uma noite de verão, sem querer
plagiar Shakespeare descaradamente.
Foi, entretanto, com médico psiquiatra. Bem diferente do pai negociante.
Apesar de rebelde e questionador, o marido tinha de comum com ela a família
pequena, mas unida até a morte. Ela, ao contrário, cordata, sem
o perceber, foi tornando a família do marido, às vezes, até
mais dela do que dele, arisco que ele sempre fora a convenções.
Se a sogra queria ir às compras, acompanhava-a, pés em brasa,
derretendo no calor do verão de 40 graus de uma época de ventilador
e olhe lá. Só não iriam se a enxaqueca se abatesse sobre
a senhora. Aí ninguém ousava dar um pio a seu redor. Nem os pintos
que efetivamente existiam nos galinheiros das casas. Caluda todos, em silêncio
respeitoso!
Se o sogro desejava ouvir uma certa ópera, toca a procurar o disco de
vinil mais raro: Caruso, Gigli, Tebaldi e outros similares. Gastavam-se tempo
e pernas para achar uma gravação de qualidade inigualável.
O homem tinha o gosto apuradíssimo.
Resultado natural: herdou um marido-osso-duro-de-roer. Incestuoso, sem o admitir,
spoiled fruto de uma família admirável, desejava o impossível
para posses medianas: carro esporte conversível, motor adaptado de corrida;
casarão com quintal e amendoeiras frondosas; discos e livros bem selecionados
forrando paredes e... a mulher mais bela e mais inteligente do mundo. Só
para ele. Tal qual a mãe o fora para o pai.
- Encolhe a barriga! Endireita essa postura! Você está muito "bunduda".
Tem que fazer regime para emagrecer. E ginástica! Eu trouxe até
uns alteres lá do clube. Mãos à obra! Leia mais! Mulher
burra, Deus me livre!
Sem sombra de luta feminista, ela ia engolindo tudo, mesmo que com engasgos
de hérnia de hiato se anunciando no esôfago, paulatinamente.
Marido, família dele, família dela, da qual não conseguia
se desgrudar e, para completar, família constituída após
o casório: dois filhos de peso. Doença de um doía nos outros.
Sucesso ou fracasso repercutiam em cada outro. Como siameses múltiplos
ligados pelo destino.
Depois do rompimento abrupto do casamento de muitos anos, ela jurou que nunca
mais cairia no mesmo tipo de agregação familiar, problemática
para além dos seus limites. Tentou variar de parceiros, sem quaisquer
laços familiares. Passou, incólume, por diversas experiências
fugazes. Nada de problemas importados. Restringia-se aos seus. E bastavam. Pelo
menos, a libertação dos deveres conjugais! Nenhum compromisso.
Casar, nunca mais!
Foi numa festa que conheceu aquele homem empedernidamente solteirão.
Que maravilha! Com esse, cadê o perigo de ligar-se a famílias?
Nem sogra, nem sogro, nem cunhados, nem filhos... Somente ELE, para ser aproveitado
em dias de lazer.
No entanto, como quem não quer nada, nova conexão temida a espreitava
de longe, por detrás do poste pouco protetor da existência. O cônjuge
não desejado foi-se aproximando, sorrateiro: primeiro, como companheiro
de farras; depois, como amante de fim de semana; por fim, como companhia constante
de casa.. MARIDO. E com ele, nova família adquirida. Com seus complexos
de Édipo, incestos e o escambau a quatro.
Caiu na armadilha, feliz.