- Olha quem vem passando lá do outro lado! Será ela mesma? -,
pergunto à amiga, abismada com a imagem deteriorada da mulher.
Conheci Dora aos dezoito anos. Era de uma beleza nórdica! Verdadeira
Ingrid Bergman. Positivamente bela: cabelos dourados e ligeiramente ondulados
a esvoaçarem à altura do queixo; rosto pele de pêssego,
sem a branquidão rósea dos estrangeiros recém-chegados
ao Brasil, sempre tocada pelo sol praiano, naquele tom bronze claro, ligeiramente
avermelhado, próprio das raras louras autênticas brasileiras. Nariz
afilado, boca de carne suficiente para desejos sensuais, dentes alvos e simétricos,
sem os artifícios do século vinte um. Sorriso de gente contente
consigo própria. E os olhos! Duas contas faiscantes azul lápis
lazuli, aprisionando, atraindo. Para toque final, silhueta esbelta, sem
sobras, nem faltas. Uma fauce maigre perfeita.
Sua história eu sabia de cor: durante anos, a mãe tentara engravidar,
mas havia algo que não permitia ao espermatozóide deitar e rolar
no seu útero. Sem explicações científicas, conseguiu.
Nove meses de expectativa, em época de tecnologia fraca. E, numa madrugada,
Dora eclodiu. Um anjo tradicional, nada rotundo, nada barroco. Espécime
da raça ariana, para alemães nazistas se babarem, com pitadas
anunciadas de pimenta baiana. A família, de descendência suíço-alemã,
regozijava-se.
A menina crescia. A cada dia, um traço mais caprichado. A ponto de um
pintor da cidade, à moda Renoir, tê-la retratado em óleo,
sem nada cobrar.
Na escola, coleguinhas amarelavam-se de inveja, professoras rasgavam elogios:
pseudoeducadoras, esquecidas das marcas que a competição acirrada
deixa em ambas as partes.
Nas festas juninas de São João e São Pedro, nenhuma maquiagem
de matuta a enfeava. As tranças grossas do cabelo emprestavam-lhe ares
de fantasia de holandesa dos carnavais de antanho. Se o penteado fosse Maria
Chiquinha, isto é, simplesmente partido ao meio e colhido de cada lado
da cabeça, a cabeleira macia, brilhante e farta queria escapar do laço
vermelho, desafiando seu aprisionamento.
Cresceu uma beldade daquelas: porte de Grace Kelly, talhada, como a atriz-princesa,
para brilhos de nobreza. Vinda de classe média, de cidade de médio
porte, era-lhe natural o jeito discreto, a voz em tom monocórdio e baixo,
a contenção de comportamento.
O status superior chegou com o casamento - jeito das moças de então
para subir na vida. A mãe de Dora nem precisou cansar-se na procura:
os admiradores eram tantos que a escolha do mais adequado é que se tornava
complicada.
Na festa de aniversário de quinze anos, no melhor clube da cidade, Dora
recostava-se à porta da varanda, em seu diáfano vestido de organza
amarelo pálido, irradiando charme até o salão.
Um moço bem vestido e simpático - que é como se chamava
homem bonito na metade do século XX - magnetizado pela aparição,
afastou os pares, chegou até à moça, estendeu a mão.
Sem falar. Ela o olhou , aceitou a mão-convite e lá se foram rodopiar
a valsa, que deveria ser dançada pai e filha.
Aí, o inevitável: caíram de amores um pelo outro. Véu,
grinalda, vestido branco de cauda longa, padre e muitos convivas: casamento
momentoso, um montão de gente no capricho dos trajes especiais. Nada
comprado pronto. Muito menos, alugado, como hoje. Costureiras se esfalfavam
nos cetins e tafetás, tudo seda pura, imitados aos Givenchy, Dior, Chanel
..., retirados das revistas que os mais ricos traziam da França.
O buffet acompanhava os trajes escuros dos convidados, os vestidos de
tons esmaecidos das mulheres e das pequenas damas que antecediam à noiva
no desfile pela igreja. Nada de branco, para não se chocar com a noiva;
nada de preto, para não dar azar aos nubentes. Champanhe, vinhos brancos
e tintos, especiarias de vários tipos, decoração das mesas
em arranjos de filó e flores, salões e garçons alugados
do maior clube da cidade.
Virgem, como todas as mocinhas de família, Dora escolheu lua-de-mel em
Mury, serra verdejante e muita água fresca, de verão ameno. Pertinho
do Rio de Janeiro, de Niterói e adjacências, de quase 40 graus.
Bonito cenário refrescante, ideal para a época de ventilador de
uma só marca, bastante precário. Civilizado Mury de colonização
alemã, exibida nos hotéis e casas de veraneio, de gente loura,
faces avermelhadas pelo sol ou queimada pelo frio da serra. Lá se desconhecia
os termos favela e violência.
O título do filme "Tudo isto e o céu também"
, mais o amor incrementado pelo desejo sexual latente e ainda não consumado
prenunciavam bons augúrios.
Eis que, emboscada à vista, o moço saíra-se mais para o
Belo Antonio, complicado herói de ereção difícil,
de Marcelo Mastroiani, do que para o fogoso galã Clark Gable, de E O
Vento Levou. A beleza acintosa de Dora o inibira. Lua-de-mel sem cor: primeira
decepção da moça; primeira ruga a despontar cruel.
Com o tempo, o casal procurou ajuste. Mas era aparafusar parafuso sem rosca
em madeira dura. Inútil: vida sexual morna. Para piorar, à imitação
ou herança da mãe, Dora não engravidava. Útero infantil-
hipótese aventada, disfarce do sexo apoucado ou do esperma fraco.
Médico de consultório cheio, o homem vingava-se no trabalho, até
não ter hora para dormir. Quanto mais para fazer amor! Ela descontava
carências de sexo e filho na companhia de amigas, nos jogos de biriba
e bingo do clube, nos chás da tarde, com ou sem desfile de modas.
Os cochichos da sociedade local começaram a tender para um outro caso
do marido. Uma amante. Era verdade. Menos bonita e mais efetiva para o relacionamento
sexual, a outra o satisfazia como homem.
Dora, por seu lado, atraía admiradores, que nunca aceitava, por pudica.
Gostava de ser admirada, mas daí a trair o marido frouxo...
E tome cuidados para manter o físico de menina. E tome sacrifícios
do chá puro, sem guloseimas, da alimentação frugal.
Com menos de quarenta anos, no entanto, a jovem senhora percebeu as primeiras
rugas daninhas. Envelhecimento precoce, acentuado pela magreza cultivada, ou
pela insatisfação matrimonial. O olhar, caído e morno,
não mais soltava faíscas de excitação e contentamento.
O cabelo, com pouco brilho, não mais lhe emoldurava a face: antes, encobria-a.
Consequência da vida assexuada, em lar sem filhos: salada de alface
sem azeite nem vinagre, para um espírito ambicioso de emoções.
Sem profissão definida, nem necessidade de cuidar do lar, o espelho-denúncia
lhe gastava muitas horas por dia. Não sabia como deter a decadência
flagrante. Afinal, eram tempos de pouca cosmética e cirurgia plástica
apenas para correção de defeitos graves. Ainda não se ouvia
o ruído das esteiras e bicicletas ergométricas das academias.
Tinha, pois, que se contentar com ginástica sem aparelhos, um ou outro
creme francês importado. Nada, pois, lhe barrava o despedaçar paulatino.
A confirmação, por telefone anônimo, do caso extraconjugal
suspeitado, tristeza máxima. Os sádicos telefonemas lhe feriam
o tímpano e o coração, com pormenores erótico-pornográficos,
insuportáveis para uma mulher ainda bonita e monogâmica, apesar
das tentações.
- Encontros todas as tardes, sua boba! Fazem pela frente, por trás, uma
lambição danada. Se o motel não tivesse paredes grossas,
todo o mundo ouvia seus uivos de prazer.
Apavorada com a ideia de perder a proteção do casamento,
Dora não dizia palavra ao marido. Nada cobrava ao esposo infiel. Arrastou
a solidão a dois, o quanto pôde.
Um dia, o clube em obras não permitia o chá das cinco, nem o jogo.
Dora saiu às compras e retornou bem mais cedo. Entrou em silêncio
tristonho. Pressentia uma noite de solidão. Atravessou a sala, direto
à cozinha para beber água gelada e repousar no quarto até
o jantar. Estranhou a porta do quarto do casal fechada. Certamente, uma lufada
de vento, comum no mês de agosto, pensou.
Entreabriu a porta, sem rangido. Visão de delírio, filme de cinema
pornô, em tempos de sexo papai-mamãe, puritanismo de freira e padre,
preconceitos ampliados pela repressão: em sua cama enorme e confortável,
aninhados nos braços um do outro, seu marido e um rapazola. Inteiramente
nus.
Fechou a porta do jeito que abriu, com extremo cuidado. Puxou bem fundo a respiração
entrecortada, juntou força nas pernas cambaleantes, atravessou a rua
para o primeiro restaurante que se lhe apresentava. Pediu, em voz alta, sem
titubeio:
- Feijoada completa e quindim de sobremesa.