A Garganta da Serpente
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A beldade

(Maria Lindgren)

- Olha quem vem passando lá do outro lado! Será ela mesma? -, pergunto à amiga, abismada com a imagem deteriorada da mulher.

Conheci Dora aos dezoito anos. Era de uma beleza nórdica! Verdadeira Ingrid Bergman. Positivamente bela: cabelos dourados e ligeiramente ondulados a esvoaçarem à altura do queixo; rosto pele de pêssego, sem a branquidão rósea dos estrangeiros recém-chegados ao Brasil, sempre tocada pelo sol praiano, naquele tom bronze claro, ligeiramente avermelhado, próprio das raras louras autênticas brasileiras. Nariz afilado, boca de carne suficiente para desejos sensuais, dentes alvos e simétricos, sem os artifícios do século vinte um. Sorriso de gente contente consigo própria. E os olhos! Duas contas faiscantes azul lápis lazuli, aprisionando, atraindo. Para toque final, silhueta esbelta, sem sobras, nem faltas. Uma fauce maigre perfeita.

Sua história eu sabia de cor: durante anos, a mãe tentara engravidar, mas havia algo que não permitia ao espermatozóide deitar e rolar no seu útero. Sem explicações científicas, conseguiu. Nove meses de expectativa, em época de tecnologia fraca. E, numa madrugada, Dora eclodiu. Um anjo tradicional, nada rotundo, nada barroco. Espécime da raça ariana, para alemães nazistas se babarem, com pitadas anunciadas de pimenta baiana. A família, de descendência suíço-alemã, regozijava-se.

A menina crescia. A cada dia, um traço mais caprichado. A ponto de um pintor da cidade, à moda Renoir, tê-la retratado em óleo, sem nada cobrar.

Na escola, coleguinhas amarelavam-se de inveja, professoras rasgavam elogios: pseudoeducadoras, esquecidas das marcas que a competição acirrada deixa em ambas as partes.

Nas festas juninas de São João e São Pedro, nenhuma maquiagem de matuta a enfeava. As tranças grossas do cabelo emprestavam-lhe ares de fantasia de holandesa dos carnavais de antanho. Se o penteado fosse Maria Chiquinha, isto é, simplesmente partido ao meio e colhido de cada lado da cabeça, a cabeleira macia, brilhante e farta queria escapar do laço vermelho, desafiando seu aprisionamento.

Cresceu uma beldade daquelas: porte de Grace Kelly, talhada, como a atriz-princesa, para brilhos de nobreza. Vinda de classe média, de cidade de médio porte, era-lhe natural o jeito discreto, a voz em tom monocórdio e baixo, a contenção de comportamento.

O status superior chegou com o casamento - jeito das moças de então para subir na vida. A mãe de Dora nem precisou cansar-se na procura: os admiradores eram tantos que a escolha do mais adequado é que se tornava complicada.

Na festa de aniversário de quinze anos, no melhor clube da cidade, Dora recostava-se à porta da varanda, em seu diáfano vestido de organza amarelo pálido, irradiando charme até o salão.

Um moço bem vestido e simpático - que é como se chamava homem bonito na metade do século XX - magnetizado pela aparição, afastou os pares, chegou até à moça, estendeu a mão. Sem falar. Ela o olhou , aceitou a mão-convite e lá se foram rodopiar a valsa, que deveria ser dançada pai e filha.

Aí, o inevitável: caíram de amores um pelo outro. Véu, grinalda, vestido branco de cauda longa, padre e muitos convivas: casamento momentoso, um montão de gente no capricho dos trajes especiais. Nada comprado pronto. Muito menos, alugado, como hoje. Costureiras se esfalfavam nos cetins e tafetás, tudo seda pura, imitados aos Givenchy, Dior, Chanel ..., retirados das revistas que os mais ricos traziam da França.

O buffet acompanhava os trajes escuros dos convidados, os vestidos de tons esmaecidos das mulheres e das pequenas damas que antecediam à noiva no desfile pela igreja. Nada de branco, para não se chocar com a noiva; nada de preto, para não dar azar aos nubentes. Champanhe, vinhos brancos e tintos, especiarias de vários tipos, decoração das mesas em arranjos de filó e flores, salões e garçons alugados do maior clube da cidade.

Virgem, como todas as mocinhas de família, Dora escolheu lua-de-mel em Mury, serra verdejante e muita água fresca, de verão ameno. Pertinho do Rio de Janeiro, de Niterói e adjacências, de quase 40 graus.

Bonito cenário refrescante, ideal para a época de ventilador de uma só marca, bastante precário. Civilizado Mury de colonização alemã, exibida nos hotéis e casas de veraneio, de gente loura, faces avermelhadas pelo sol ou queimada pelo frio da serra. Lá se desconhecia os termos favela e violência.

O título do filme "Tudo isto e o céu também" , mais o amor incrementado pelo desejo sexual latente e ainda não consumado prenunciavam bons augúrios.

Eis que, emboscada à vista, o moço saíra-se mais para o Belo Antonio, complicado herói de ereção difícil, de Marcelo Mastroiani, do que para o fogoso galã Clark Gable, de E O Vento Levou. A beleza acintosa de Dora o inibira. Lua-de-mel sem cor: primeira decepção da moça; primeira ruga a despontar cruel.

Com o tempo, o casal procurou ajuste. Mas era aparafusar parafuso sem rosca em madeira dura. Inútil: vida sexual morna. Para piorar, à imitação ou herança da mãe, Dora não engravidava. Útero infantil- hipótese aventada, disfarce do sexo apoucado ou do esperma fraco.

Médico de consultório cheio, o homem vingava-se no trabalho, até não ter hora para dormir. Quanto mais para fazer amor! Ela descontava carências de sexo e filho na companhia de amigas, nos jogos de biriba e bingo do clube, nos chás da tarde, com ou sem desfile de modas.

Os cochichos da sociedade local começaram a tender para um outro caso do marido. Uma amante. Era verdade. Menos bonita e mais efetiva para o relacionamento sexual, a outra o satisfazia como homem.

Dora, por seu lado, atraía admiradores, que nunca aceitava, por pudica. Gostava de ser admirada, mas daí a trair o marido frouxo...

E tome cuidados para manter o físico de menina. E tome sacrifícios do chá puro, sem guloseimas, da alimentação frugal.

Com menos de quarenta anos, no entanto, a jovem senhora percebeu as primeiras rugas daninhas. Envelhecimento precoce, acentuado pela magreza cultivada, ou pela insatisfação matrimonial. O olhar, caído e morno, não mais soltava faíscas de excitação e contentamento. O cabelo, com pouco brilho, não mais lhe emoldurava a face: antes, encobria-a. Consequência da vida assexuada, em lar sem filhos: salada de alface sem azeite nem vinagre, para um espírito ambicioso de emoções.

Sem profissão definida, nem necessidade de cuidar do lar, o espelho-denúncia lhe gastava muitas horas por dia. Não sabia como deter a decadência flagrante. Afinal, eram tempos de pouca cosmética e cirurgia plástica apenas para correção de defeitos graves. Ainda não se ouvia o ruído das esteiras e bicicletas ergométricas das academias. Tinha, pois, que se contentar com ginástica sem aparelhos, um ou outro creme francês importado. Nada, pois, lhe barrava o despedaçar paulatino.

A confirmação, por telefone anônimo, do caso extraconjugal suspeitado, tristeza máxima. Os sádicos telefonemas lhe feriam o tímpano e o coração, com pormenores erótico-pornográficos, insuportáveis para uma mulher ainda bonita e monogâmica, apesar das tentações.

- Encontros todas as tardes, sua boba! Fazem pela frente, por trás, uma lambição danada. Se o motel não tivesse paredes grossas, todo o mundo ouvia seus uivos de prazer.

Apavorada com a ideia de perder a proteção do casamento, Dora não dizia palavra ao marido. Nada cobrava ao esposo infiel. Arrastou a solidão a dois, o quanto pôde.

Um dia, o clube em obras não permitia o chá das cinco, nem o jogo. Dora saiu às compras e retornou bem mais cedo. Entrou em silêncio tristonho. Pressentia uma noite de solidão. Atravessou a sala, direto à cozinha para beber água gelada e repousar no quarto até o jantar. Estranhou a porta do quarto do casal fechada. Certamente, uma lufada de vento, comum no mês de agosto, pensou.

Entreabriu a porta, sem rangido. Visão de delírio, filme de cinema pornô, em tempos de sexo papai-mamãe, puritanismo de freira e padre, preconceitos ampliados pela repressão: em sua cama enorme e confortável, aninhados nos braços um do outro, seu marido e um rapazola. Inteiramente nus.

Fechou a porta do jeito que abriu, com extremo cuidado. Puxou bem fundo a respiração entrecortada, juntou força nas pernas cambaleantes, atravessou a rua para o primeiro restaurante que se lhe apresentava. Pediu, em voz alta, sem titubeio:

- Feijoada completa e quindim de sobremesa.

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