Dia cinzento. O sol feinho apareceu sem graça e foi-se embora. Não
deu para aquecer a alma. E são apenas quatro e meia da tarde. Em Praga,
quando lá estive em pleno inverno, sentia o coração mais
agasalhado. Era a presença de meu irmão. Hoje, ninguém.
Meu quarto recende a bolor. Ah! Se, ao menos, eu pudesse escrever sobre o tema
com a classe de um Augusto Abelaira!
Procuro ler. Ler é lenitivo para qualquer tempo ruim ou triste fado.
Daí os muitos leitores europeus, que não me deixam mentir. Por
outro lado, a leitura literária me deixa com gosto insuportável
de não fui eu e sim outro que escreveu.
De repente, vem-me à cabeça a história, que não
contei, de uma colega, professora como eu. Pode ser uma saída escrever
sobre ela. Mas, o que terá feito para merecer uma história?
Não era poetisa. Para mim, profissão maior. Nem cantora, tudo
o que eu desejava ser - profissão alegria. Obedecia às palavras
e às regras de nossos pais antiquados: mulher só pode ser dona
de casa ou professora, preceitos preconceituosos, odiados por mim.
Era as duas. Professora de ensino médio e vida mais média ainda,
levava a vidoca de profissional correta, casada, com dois filhos. Nada nela
se exacerbava. Muito menos, a aparência física. Discreta de gestos,
postura e trajes, deixava-se ir às nossas "farrinhas" nos fins
de tarde, discretamente. O máximo da exuberância de participação
social, os jantares do Lions Club com o marido médico.
Ajudava no orçamento da casa, cuidava dos filhos. Parecia bem satisfeita
com seu quinhão: apartamento confortável, em bairro de classe
média de cidade ainda provinciana, casa de campo despretensiosa em Miguel
Pereira para fins de semana, e um certo status, concedido por meia dúzia
de pessoas comuns.
Ia para a escola todas as manhãs, sem uma ruga sequer de insatisfação
ou apreensão, sem pecados, nem devaneios. Os alunos "pintavam",
ela não "esquentava". Plácida, aguentava situações
bem intricadas com comportamento disciplinado quase britânico. Ou seria
laissez-faire de natureza?
O grupo reduzido de colegas-amigas, o bate-papo de fim de tarde, as eventuais
idas aos bares decentes da cidade completavam o quadro de acomodação
nunca ressentida. Salvo no dia em que chegou estranha, excitada mesmo.
- Gente, recebi um telefonema incrível, ontem à tarde. De um "cara"
que eu namorei há uns vinte anos. Ele ficou viúvo e quer me encontrar.
Quê que eu faço?".
O olho dela era diamante ao sol. A pele ficara mais lisa, num passe de mágica.
Nós, boquiabertas, com uma ponta de inveja, só conseguimos aconselhar:
- Veja lá o que você vai arranjar! Teu marido te mata, se descobrir.
Fingindo surdez, ela se encontrou com ele, em sua própria casa, à
hora do lanche.
- Então, como foi?, perguntamos em uníssono.
- Legal! Ele ainda está bem bonitão..., comentou, sem transparecer
emoção.
Lacônica, foi saindo para dar sua aula de sempre, a gente se roendo de
curiosidade.
A vida corria rotineira para todas nós. Casa, filhos, aula, alunos. Entremeio
de pequenos lazeres aqui e ali, o ano se esvaía. Atordoadas com o corre-corre
de fim de ano letivo, em colégio que exigia muito, fomos esquecendo o
episódio extraordinário.
Formaturas, jantar comemorativo, lágrimas e adeus. Mudei-me para outra
cidade, mas continuei professora na mesma escola por algum tempo.
Em março, o reencontro. Tudo recomeçando, sem mudanças
expressivas. Nós, na sala dos professores, os alunos, no pátio,
tagarelando sobre as férias "curtidas" do jeito que podíamos.
Ela tentando interromper, a todo custo, as veias protuberantes no pescoço,
o rosto em brasa.
Finalmente, numa pequena pausa, lhe concedemos a palavra. Estávamos certas
de que o relato tão ansiado seria o de um bate-boca trivial com o marido,
um problema costumeiro com os filhos. No máximo, uma viagem meio boba
com a família.
Estateladas, ouvimos a história (ir)real. Ela levara adiante um tremendo
caso amoroso com o tal ex-namorado. Encontravam-se às quintas-feiras,
chovesse ou fizesse sol. Num ninho de amor de cinema dos anos 40. Só
que filme francês e dos mais picantes. Jeanne Moreau em Les Amants, rolavam
pelos tapetes, faziam amor na banheira, por todos os cantos, gemendo, fremindo.
Daí que a volta ao lar ia se tornando um suplício.
As mais roídas de inveja calaram-se. As mais moralistas, idem. Resolveu-se
tacitamente não puxar mais aquele assunto. Incomodava demais, por não
sabermos qual o comentário mais apropriado à situação.
Morando longe, com filhos doentes, falta de dinheiro, muita aporrinhação,
trabalhando em três escolas, foi ficando impossível, para mim,
viver outra coisa que não significasse trabalho e dever.
O telefonema tarde da noite, de repente, soou um susto.
- Sou eu. Preciso encontrar com você. Tenho mil coisas para contar. Só
você vai ser capaz de me entender.
À imitação de nossas mães, por uma extravagância
nostálgica, marcamos um lanche às 5 da tarde, na Confeitaria Colombo
da rua Gonçalves Dias. Ela apareceu com o mesmo jeitão de mulher
corriqueira, exceto pelo rosto que novamente pegava luz. Foi sentando e falando,
com naturalidade.
- Resolvi sair de casa, sabe? Fui morar sozinha. Meu marido ficou com os meninos.
Aliás, de meninos não têm mais nada. Estou fazendo mestrado.
É um "barato" voltar a estudar. Cheguei à conclusão
de que o élan vital está aí; não pode, nem
deve acabar. E... o sexo, então...
- É AQUELE amante a causa dessa revolução?, perguntei certa
da resposta afirmativa.
- Que nada, minha filha. Depois que saí de casa, o amante foi virando
marido. Ou pior ainda, porque atacado de ciúme. Agora, só quero
mesmo é namorar. Repetição, Deus me livre!
Refleti extasiada: ela era um portento! Acabara-se a matrona provinciana, surgira
"la passionária". Só que sem nenhum alarde. Com
a mesma tranquilidade cotidiana.
No final do ano, encontro as amigas da escola, saudosa do que antes me parecia
tão sem importância. Tudo gostoso e igualzinho. Menos a grande
amante.
- Cadê ela? Risinhos meio desengonçados. Disfarce no ar.
-Você não soube? Ela saiu do colégio. Está ensinando
na faculdade. Tá noutra...
Havia, sem dúvida, um certo constrangimento velado, olhares opacos de
sem-jeito. Logo nos despedimos. Pela primeira vez, economia de verbo.
Em casa, a cena não me saía da cabeça. Por que a escassez
de palavras e reações emotivas? Por que o mistério? Não
resistindo, liguei para ela. Do outro lado do fio a mesma entonação
comedida de mulher ajuizada. Cheguei a pensar que tinha delirado: o caso-paixão,
o ninho de amor, o mestrado...
- Senti sua falta no nosso encontro. Por onde você anda?
- Sabe aquela mudança de vida, aquele namoro descompromissado de que
lhe falei no encontro da Colombo? Você não adivinhou nada? Acho
que encontrei minha segunda metade. Só não moramos na mesma casa.
Não aguento mais casamento! Você já "sacou",
não é? Você sempre foi a mais "pra frente" de
todas nós. Eu queria te contar naquele dia do sorvete das 5, mas... É
uma NAMORADA. Conheci a moça no mestrado. Inteligentíssima. Abriu
minha cabeça mesmo. E linda, inda por cima. Estamos lendo juntas livros,
artigos, tudo o que há de mais avançado. Em meio ao maior amor.
Você sabe, sempre dá tempo para uma "trepadinha". Alugamos
um ninho de amor bem na praia. De frente para o mar. Encontramos lá todas
as quintas-feiras. Religiosamente.